O fenômeno migratório no Brasil

O Brasil é um país de migrantes. É bastante comum encontrar nas nossas comunidades eclesiais, no trabalho, entre os colegas de aula ou na parada de ônibus pessoas provenientes de outras cidades, outros estados e até mesmo de diferentes países. Às vezes, quem migrou foram os pais, os avós ou os bisavós. No fundo, se remontamos às origens históricas, somos todos migrantes ou descendentes de migrantes. Essa realidade, que pode ser averiguada pela experiência do dia-a-dia, é o espelho de um país de grande mobilidade humana. Mulheres, homens, crianças, idosos, famílias, trabalhadores com e sem emprego perambulam no país em busca de melhores condições de vida, muitas vezes fugindo de situações insustentáveis, outras vezes perseguindo um sonho, uma terra prometida.

 

Roberto Marinucci

Ir.Rosita Milesi, mscs

 

O Brasil é um país de migrantes. É bastante comum encontrar nas nossas comunidades eclesiais, no trabalho, entre os colegas de aula ou na parada de ônibus pessoas provenientes de outras cidades, outros estados e até mesmo de diferentes países. Às vezes, quem migrou foram os pais, os avós ou os bisavós. No fundo, se remontamos às origens históricas, somos todos migrantes ou descendentes de migrantes. Essa realidade, que pode ser averiguada pela experiência do dia-a-dia, é o espelho de um país de grande mobilidade humana. Mulheres, homens, crianças, idosos, famílias, trabalhadores com e sem emprego perambulam no país em busca de melhores condições de vida, muitas vezes fugindo de situações insustentáveis, outras vezes perseguindo um sonho, uma terra prometida.

 

Uma terra de imigrantes

A história das migrações para o Brasil é, de certo modo, a história do próprio país. Acredita-se que os primeiros povoamentos da América foram realizados cerca de 48/60 mil anos atrás, por povos que vieram pelo norte da Ásia, através do estreito de Bering. De acordo com recentes teorias, o território sul-americano teria sido atingido também por grupos que navegaram através do Oceano Pacífico vindos da Austrália, Malásia e Polinésia. No decorrer do tempo, o Brasil foi povoado por centenas de povos com línguas, tradições culturais e religiões diferentes. Alguns deles – os tupi-guarani – migravam constantemente em busca da “terra sem males”.

Com a chegada dos europeus as causas das migrações mudaram: os deslocamentos transformaram-se em verdadeiras fugas da escravidão, do genocídio, das doenças, da negação das próprias culturas e religiões. Os sobreviventes dessas fugas perdiam o direito de ir e vir, condenados ao trabalho forçado que alimentava o sistema colonial.

No entanto, os europeus não conseguiram dobrar a resistência desses povos. Muitos deles foram extintos. Outros continuam presentes na sociedade brasileira lutando por seus direitos. A mobilidade transformou-se em mobilização. Hoje os povos “ressurgidos” organizam-se para reivindicar os próprios direitos, a partir de utopias alimentadas pela memória da resistência. A luta pela demarcação e garantia das terras, a autodeterminação, a plena cidadania, a educação bilíngüe, o respeito pela diversidade cultural e religiosa são formas para reapropriar-se de sua história e de sua identidade.

No século XVI, os portugueses foram protagonistas do primeiro grande fluxo migratório europeu para o Brasil. Trouxeram as tradições culturais e religiosas da península ibérica e, ao mesmo tempo, introduziram o Brasil no sistema colonial. O hediondo tráfico negreiro foi uma das conseqüências dessa situação. Comprados ou capturados na África, os escravos e as escravas eram tratados como simples mercadoria – “estoques” ou “peças” – e destinados a alimentar o comércio triangular entre Europa, África e Américas, comércio que enriqueceu apenas o primeiro dos três continentes. Estima-se que cerca de 4 milhões de escravos e escravas chegaram no Brasil, principalmente entre os séculos XVII e XIX.

A “imigração” dos escravos e das escravas no Brasil foi forçada, compulsória. As condições das viagens eram terríveis, sendo freqüentes as mortes antes da chegada no lugar de destinação. Assim como os índios, eles perdiam o direito de ir e vir, confinados entre a senzala e o trabalho. A única mobilidade possível decorria da venda por parte dos amos, das perigosas fugas e das andanças dos negros libertos. Existem casos de escravos e escravas que, movidos pela profunda saudade da terra de origem, conseguiram voltar para África, onde ainda hoje conservam traços culturais adquiridos no Brasil.

Apesar da escravidão e das políticas de embranquecimento, os africanos bantos e nagôs conseguiram fincar raízes no território brasileiro, contribuindo de maneira determinante à formação da atual sociedade pluricultural e plurireligosa. A abolição do regime de escravatura e a forte influência cultural, contudo, não significaram o fim da discriminação. Assim como os índios, também os afro-brasileiros tiveram que transformar a recuperada mobilidade espacial em mobilização social, gerando grupos de resistência, conscientização e reivindicação do direito à própria religião, história, cultura.

A partir do século XIX até os dias de hoje, outras populações aportaram no Brasil, com prevalência de italianos, espanhóis, alemães e poloneses. Mas não pode ser esquecida também a imigração de outros grupos que contribuem para a variedade cultural e religiosa do nosso país, como os turcos, holandeses, japoneses, chineses, sul-coreanos, sírio-libaneses, judeus, latino-americanos, entre outros. Não é fácil avaliar as motivações de tal imigração. Em geral, foi determinante a combinação entre fatores de atração (especialmente a demanda de mão-de-obra barata para substituir o extinto sistema escravagista) e fatores de expulsão na terra de origem como, crises econômicas, conflitos internos, questões políticas e perseguições.

Chegando para substituir a mão-de-obra escrava, os imigrantes, não sem sofrimento e provações, conseguiram encontrar o próprio espaço geográfico, social, econômico e político no interior do país. Nas primeiras décadas costumavam priorizar a preservação das próprias tradições culturais, conseguindo, desta forma, evitar o risco de assimilação. Com o tempo ocorreu uma integração progressiva que favoreceu o intercâmbio com as demais tradições culturais presentes no país. As intensas migrações internas das últimas décadas provocaram a difusão nacional de algumas das tradições culturais características desses grupos.

As imigrações dos séculos XIX e XX provocaram, também, importante diversificação religiosa no país. Após um período de monopólio católico, o Brasil começou a ser povoado por grupos pertencentes a denominações cristãs diferentes. Alguns deles preocuparam-se especialmente com o anúncio missionário, enquanto outros deram prioridade ao cuidado dos imigrantes pertencentes à própria denominação. Infelizmente, o encontro entre as diferentes denominações cristãs no Brasil não foi isento de conflitos e disputas, sobretudo após a extinção do regime de padroado, em 1890. Às vezes, travaram-se lutas em busca da preservação ou obtenção de privilégios junto ao Estado. Não sempre se atribuiu a justa prioridade à caminhada ecumênica que já começara na Europa. Mesmo assim, as imigrações e os deslocamentos populacionais internos proporcionaram o encontro com os “outros”, alimentando um clima sempre mais tolerante e dialógico e dando origem a importantes experiências ecumênicas, principalmente no que se refere à defesa da dignidade do ser humano e à superação de todo tipo de violência e opressão.

Cabe lembrar que a imigração proporcionou também a difusão no país de outras tradições religiosas como o islamismo, o judaísmo, várias religiões orientais, entre outras, ampliando assim o já marcante pluralismo religioso do país.

 

Tendências recentes do fenômeno migratório

Nas últimas décadas, o fenômeno migratório no Brasil continuou intenso. O povo brasileiro parece viver num estado crônico de mobilidade que adquire características específicas dependendo dos períodos e dos lugares nos quais se processa. A partir dos anos trinta, as migrações internas seguiram preferencialmente duas vertentes: os deslocamentos para as fronteiras agrícolas e para o sudeste. O êxodo rural assumiu progressivamente proporções sempre mais significativas. Em 1920, apenas 10% da população brasileira vivia em áreas urbanas, sendo que, cinqüenta anos depois, em 1970, a porcentagem já chegava a 55,9%. Atualmente, de acordo com os dados do Censo 2000, 137.669.439 brasileiros residem na zona urbana, o que corresponde a 81,22% da população. Estima-se que nos últimos 35 anos, 40 milhões de pessoas abandonaram as zonas rurais do país. O Brasil transformou-se, em algumas décadas, de um país predominantemente rural, num país majoritariamente urbano. Cabe lembrar que, na maioria dos casos, os deslocamentos para a cidade foram compulsórios, conseqüência de uma política agrária que fechou a fronteira agrícola, modernizou o trabalho do campo e concentrou a posse da terra.

Nos dias de hoje, o processo de urbanização apresenta características diferentes em relação às décadas anteriores. Embora Rio de Janeiro e São Paulo continuem sendo importantes pólos de atração, torna-se mais expressiva a migração “polinucleada”, com o crescimento de significativos núcleos urbanos também em regiões tradicionalmente rurais. Não é por acaso que o maior crescimento populacional deu-se entre as cidades com mais de 100 mil habitantes. A diminuição relativa da migração para as metrópoles pode ser justificada pela degradação progressiva da vida nas grandes cidades, como comprovado pelo aumento da violência, a menor oferta de emprego, o trânsito caótico, as várias formas de poluição e o ritmo de vida sempre mais estressante. Um exemplo pode ser significativo: na cidade de São Paulo, a quantidade de pessoas que vivem em favelas, ruas, cortiços ou “mocós” (domicílios improvisados) já alcança no mínimo 1,077 milhão de paulistanos, 1 em cada 10 moradores da capital!

Avaliações recentes da mobilidade humana no Brasil apontam para o crescimento das migrações de curta distância (intra-regionais) e dos fluxos urbano-urbano e intra-metropolitanos. Em outras palavras, aumenta o número de pessoas que migram de uma cidade para outra ou no interior das áreas metropolitanas em busca de trabalho e de melhores condições de vida. O êxodo rural continua presente, mas adquirem dimensões sempre maiores os fluxos de retorno, principalmente para o nordeste: entre 1995 e 2000, 48,3% das saídas do Sudeste foram em direção ao Nordeste. Entre 1986 e 1991, a percentagem havia sido de 42,5%. Esse refluxo migratório, contudo, não impede que os Estados com maior redução populacional sejam concentrados no nordeste – Paraíba, Piauí, Bahia e Pernambuco. Já o maior crescimento populacional verifica-se em Estados do Norte e do Sudeste.

Falando dos deslocamentos populacionais do país não podemos esquecer das migrações sazonais, protagonizadas por pequenos proprietários, posseiros ou arrendatários que vendem periodicamente a própria força de trabalho a fim de complementar a irrisória renda e evitar a migração definitiva para a cidade. Habitualmente esses trabalhadores se deslocam em direção às safras agrícolas e são obrigados a passar vários meses longe das famílias, trabalhando em condições extremamente precárias. Entre eles não são raros os casos de trabalho escravo decorrente de dívidas que contraíram pelas despesas de viagem, o aluguel da moradia, a compra dos instrumentos de trabalho e da comida. Há quem considera os deslocamentos sazonais não uma migração periódica, mas um estado constante de migração. De fato, o trabalhador sazonal sente-se estranho seja no lugar de trabalho, que troca com muita freqüência, seja no próprio lar, pelas longas ausências e as novas experiências. Os migrantes sazonais não têm “pátria”. Suas esposas são comumente chamadas de “viúvas de maridos vivos”, sendo obrigadas, na ausência dos maridos, a cuidar sozinhas da educação e do sustento dos filhos, dedicando-se ao roçado e ao artesanato.

A mobilidade feminina, às vezes, possui características específicas. Às causas estruturais da migração, acrescenta-se a violência e a opressão do machismo. Para estas mulheres, o deslocamento espacial constitui uma libertação dos maltratos domésticos, embora o alívio, muitas vezes, seja apenas temporário. “Foi doidice sair, mas doidice maior era ficar”, contava uma mulher que fugiu, com três filhos, da violência do marido. Habitualmente, essas esposas e mães costumam sair do lar levando consigo os filhos e buscando refúgio junto a parentes ou amigos, tendo que assumir sozinhas o sustento e a educação da prole. Os dados do Censo 2000 revelaram um sensível aumento de domicílios sob responsabilidade de mulheres (24,9% do total contra 8,1% de 1991).

Finalmente, não podemos deixar de mencionar os brasileiros e brasileiras que migram para o exterior, colocando em risco, muitas vezes, a própria vida na tentativa de ingressar em países com maiores oportunidades de trabalho. São freqüentes também as migrações para países limítrofes. Muitos permanecem na terra estrangeira. Em muitos outros casos verifica-se um movimento de retorno ou um constante vaivém de pessoas nas zonas de fronteira. Os migrantes que vivem ou que voltam, após uma experiência no exterior, não raramente são objeto de diferentes formas de discriminação e exploração, terminando como “forasteiros” tanto na terra de chegada que na de origem.

Quanto a imigrantes, atualmente, em situação regular, no Brasil é importante referir que permanece inferior a 1% da população total brasileira. Dados do Departamento de Polícia Marítima, Aérea e de Fronteiras, de abril de 2000, afirmam que viviam no país, na ocasião, 947.765 estrangeiros, 80% deles residentes na região sudeste, a mais rica do país. Não existem, no entanto, dados sobre os que se encontram em situação irregular (ilegais, indocumentados, clandestinos). Dentre esta população imigrante cabe destacar a presença de cerca de 3 mil refugiados. Apesar de não ser um número expressivo em relação ao número total – de acordo com o ACNUR, no mundo existem 22 milhões de refugiados – a disponibilidade em acolhê-los é um importante testemunho de que o Brasil pode dar da própria pobreza.

 

Conclusão

A mobilidade humana é um fenômeno amplo e complexo. Abrange numerosos atores sociais pertencentes a uma pluralidade de classes, etnias, culturas e religiões. As causas e as motivações que levam aos deslocamentos são variadas, tendo conseqüências bastante diversificadas, dependendo dos diferentes contextos sócio-culturais e da singularidade de cada pessoa. Cabe frisar, contudo, que as migrações em si representam um fenômeno basicamente positivo. Não podemos esquecer o direito humano de ir e vir, as funções sociais e econômicas dos deslocamentos, a relativa melhoria das condições de vida da fuga de situações de opressão ou de catástrofes ecológicas, as novas oportunidade abertas e o enriquecimento cultural decorrente do encontro entre diferentes povos, culturas e religiões.

Entretanto, deve-se lembrar também que, freqüentemente, por trás das migrações escondem-se aspectos negativos ou conflitivos, como a expulsão do lugar de residência, o desenraizamento cultural, a desestruturação identitária e religiosa, a exclusão social, a rejeição e a dificuldade de inserção no lugar de chegada. Hoje, em geral, a migração não é conseqüência de uma escolha livre, mas tem uma raiz claramente compulsória. A maioria dos migrantes é impelida a abandonar a própria terra ou o próprio bairro, buscando melhores condições de vida e fugindo de situações de violência estrutural e doméstica. Este é um grande desafio, pois “migrar” é um direito humano, mas “fazer migrar” é uma violação dos direitos humanos!

Na atual conjuntura nacional e internacional, os migrantes transformaram-se num verdadeiro “estorvo” ou “massa sobrante”, que, contudo, é explorada quando interessa ao sistema ou como mão de obra dos países ou regiões desenvolvidas. O sistema econômico neoliberal, que concentra as riquezas nas mãos de poucos, cria muros para excluir os pobres. Interpretada nesta ótica, a migração representa a busca, por parte dos excluídos, de alguma fenda que permita o acesso parcial a alguns dos benefícios produzidos pelo sistema. Os deslocamentos dos excluídos lembram o movimento dos cães ao redor da mesa em busca de algumas migalhas.

Além disso, hoje, em vários contextos, o migrante tornou-se um verdadeiro “bode expiatório”, sendo considerado o principal culpado por um conjunto de problemas que afetam a nossa sociedade, como a violência e o desemprego. Esta culpabilidade da vítima visa ideologicamente esconder as verdadeiras causas estruturais da exclusão social e, ao mesmo tempo, inculcar no próprio migrante um sentimento de frustração, de fracasso, de inferioridade que, não raramente, inibe seu potencial de resistência e reivindicação.

Enquanto cristãos, somos chamados a iluminar, com a luz do Evangelho e a fraqueza do nosso testemunho, o mundo da migração, reconhecendo e valorizando suas riquezas, denunciando todas as formas de violência e acolhendo, com ternura, seus protagonistas, os e as migrantes.

 

Brasília-DF, novembro de 2002