Por Ir. Rosita Milesi e Paula Coury*
Artigo organizado a partir da apresentação feita à mesa redonda promovida pela Comissão de Políticas Públicas da Associação Brasileira de Linguística, em 6 de março de 2021.
Tomo a liberdade de iniciar relatando alguns casos vivenciados no cotidiano do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), instituição que pertence à Congregação das Irmãs Scalabrinianas, dedicada justamente a este tema da mobilidade humana. Esses casos retratam a importância da comunicação e as dificuldades enfrentadas por imigrantes e refugiados em sua vida cotidiana por não conseguirem se comunicar bem em português. São fatos que, por si, já revelam a importância do apoio linguístico de intérpretes e tradutores na ampla ação junto aos refugiados, migrantes, apátridas, enfim, pessoas em mobilidade.
Em 2020, em certa ocasião, o líder da comunidade indígena Warao em Brasília me procurou com grande preocupação e literalmente assustado. Relatou que uma jovem havia se apresentado à Polícia Federal (PF) para renovar seus documentos e estava sendo presa, mas não compreendiam qual o motivo, o que estaria gerando esta situação, tida por eles como grave. De imediato, entremos em contato com a equipe da PF para entender o que estava ocorrendo. Explicaram-nos, então, que a solicitação de refúgio da jovem havia sido arquivada pelo Conare e que estavam tentando fazer algumas perguntas necessárias para realizar o pedido de desarquivamento do processo. Mas, o idioma, bastante difícil para os indígenas, tornou a tentativa de esclarecimentos, um enorme problema, com deduções alarmantes para eles. Assim, um procedimento administrativo bastante simples (e que é essencial para a garantia de direitos tão básicos quanto a documentação e a proteção do estatuto do refúgio) resultou em uma grande confusão e momentos de medo e apreensão para a jovem que pensou estar sendo acusada e presa.
Outros casos nos indicam a necessidade e o valor do apoio linguístico neste universo dos migrantes e refugiados: – o haitiano (falava creolle… chorava compulsivamente quando suas forças e expectativas se esgotaram, sem que as pessoas o entendessem); – o paquistanês (falava pashtu. Igualmente, as lágrimas foram a linguagem que expressou sua angústia ao ver que nem a PF, nem a empresa, e finalmente, para seu desespero, nem no IMDH conseguia entendê-lo. Buscamos a solução através de uma triangulação telefônica com outra pessoa que falava seu idioma. E ele encerrou seu contato, agradecendo, e expressando um sorriso comovente; – um palestino, idoso (falava árabe. Tentou fugir do Hospital porque não entendiam seu pedido de alimentos que o ajudassem a superar um momento crítico); – família do Afeganistão (falava idioma persa e só com sinais e desenhos foi possível viabilizar a comunicação).
Situações como essas demostram que a comunicação clara, precisa, compreensível é ponto de fundamental importância nos procedimentos básicos da vida diária das pessoas. Vivemos angústias e incertezas quando algum elemento de nossa comunicação com outrem é prejudicado. Tira-nos a certeza de que fomos compreendidos. Turva a confiança de que entendemos o que foi dito. Deixa-nos inseguros de que entendemos o que nos é informado. Enfim, um peso se abate sobre a pessoa que se depara com um idioma estranho, vez que o idioma é elemento fundamental na comunicação e nas relações, por mais simples que sejam, no dia a dia da convivência em sociedade.
Garantir intérpretes a quem, por razões diversas, não conhece ou não domina suficientemente o idioma do país em que se encontra é uma necessidade a ser suprida e uma questão de sensibilidade humana. Assim como temos casos, como os citados há pouco, que retratam a falta que um intérprete pode fazer, temos também relatos positivos de situações em que eles estão presentes.
Cito, a título de exemplo, o caso de um solicitante de refúgio togolês, que se comunicava com dificuldade em francês e melhor ou habitualmente em línguas locais de seu país. Com dificuldades de comunicação, ficou cerca de seis meses no Brasil sem documentação, sem conseguir buscar emprego, sem estudar português e sem ter acesso a serviços e direitos básicos. Quando procurou o IMDH, encontrava-se desanimado, sentindo-se perdido no novo país e sem ver saída para suas dificuldades.
Foi atendido por uma funcionária do Instituto que dominava o francês, de modo a poder orientá-lo em uma língua que ele compreendesse. A expressão em seu semblante foi suficiente para notar o alívio e alegria de receber informações tão importantes para a sua vida em um idioma de seu domínio. Em poucos meses, foram notáveis os avanços em sua integração local: regularizou sua situação migratória, obteve a CTPS, encontrou emprego, começou a estudar português no NEPPE/UnB e a criar vínculos com a comunidade de acolhida.
Assim como esse caso, há outros. Os e as imigrantes, refugiados, refugiadas e apátridas que buscam no Brasil uma oportunidade de sobrevivência, de vida em segurança, de uma Pátria que os acolha, necessitam de mediação linguística por tradutores e intérpretes para viabilizarem sua documentação de estada regular no País, para comunicar-se com os órgãos públicos, para terem acesso aos direitos civis, para o tratamento em hospitais. Isto é, nas relações essenciais em vários momentos de sua integração no País.
Para tanto, faz-se necessário garantir o direito destas pessoas de estarem linguisticamente presentes nas situações em que o idioma que elas ainda não dominam é elemento fundamental. Evidencia-se isto em muitas circunstâncias da vida diária -consultas médicas, relações com agentes em órgãos púbicos, ações e audiências em instâncias judiciais, na comunicação quando internadas em hospitais, em eventuais detenções em estabelecimentos prisionais, entres outros momentos cujo elenco muito se estenderia se pretendêssemos esgotá-los.
Em casos mais sérios, onde há indícios de graves violações de direitos, a disponibilidade de um intérprete ou tradutor é fundamental para viabilizar a comunicação entre o agente prestador de serviço e a vítima, a fim de compreender a situação e dar os devidos encaminhamentos. Considere-se, por exemplo, uma situação de violência doméstica em que a mulher não consegue se comunicar em português e, na ausência de intérpretes profissionais, depende do esposo para traduzir e intermediar o atendimento. Em tal situação, torna-se muito difícil – se não impossível – realizar o atendimento individual que seria necessário para que a vítima pudesse se manifestar e receber a atenção devida para responder a suas necessidades. Algo similar pode ocorrer também em situações de tráfico de pessoas, em que a vítima não consiga se comunicar no idioma local sem a intermediação do agente explorador. Muitas vezes, a única comunicação são as lágrimas.
Outra situação que se pode destacar são as entrevistas de elegibilidade realizadas pelo Conare. Trata-se do procedimento por meio do qual o Comitê conhecerá os fatos que motivaram o solicitante de refúgio a fugir de seu país, para, restando demonstrado tratar-se de uma situação de fundado temor de perseguição nos termos da Lei 9.474/1997, reconhecer-lhe a condição de refugiado, protegido pelo Estado brasileiro. É, portanto, um procedimento que pode ser decisivo para a vida da pessoa e no qual a qualidade da comunicação tem papel determinante.
Ciente disso, o Conare tem reunido esforços para tentar suprir a demanda por intérpretes nas entrevistas de elegibilidade, destacando-se a parceria com o projeto de extensão universitária Mobilang (desenvolvido pela Universidade de Brasília/UnB). Essa parceria possibilitou a criação de um banco de intérpretes voluntários, que colaboram com o Comitê. Entretanto, a oferta voluntária não é suficiente para suprir toda a demanda e, não havendo a obrigatoriedade de disponibilizar intérpretes, muitos solicitantes de refúgio que não dominam o português acabam enfrentando grandes dificuldades para contar sua história na entrevista, podendo mesmo ser prejudicados por essa barreira de comunicação.
O PL 5182/2020 traz a proposta de responder a esta necessidade de garantir o apoio indispensável para que as pessoas que o necessitem tenham as condições de ver viabilizada sua comunicação através de profissionais especializados, quais sejam tradutores e intérpretes. Objetiva estabelecer que todos os órgãos públicos que prestam atendimento direto ao cidadão deverão contar com a presença obrigatória de intérprete comunitário ou, segundo a circunstância, de tradutor, para auxiliar as pessoas que não falam ou não dominam o idioma português brasileiro em nível suficiente para compreender e garantir seus direitos e um atendimento digno e sereno.
Considerando situações reais que vivenciamos em nosso trabalho de atenção a migrantes e refugiados, resta demonstrada a importância de que este PL seja convertido em lei. São louváveis as iniciativas voluntárias, como o já mencionado projeto Mobilang, e muito se pode aprender a partir de tais experiências. Entretanto, desenvolver políticas públicas nesta área é essencial para suprir esta demanda tão importante.
Não se pretende que deva haver intérpretes de diferentes idiomas disponíveis em cada local onde há serviços sendo prestados à população migrante. Porém, uma política pública viável seria, conforme proposto no PL 5182/2020, a constituição de núcleos especializados de tradução e de interpretação comunitária especialmente organizados para atender às demandas específicas de cada área.
De fato, constituiria um grande avanço dispor de um banco de intérpretes e tradutores profissionais acionáveis (mesmo remotamente) pelos agentes públicos, segundo a demanda e em momentos de necessidade.
Enfim, modalidades há, e a criatividade para implementá-las também. O ponto de partida é ter a política pública.
Brasília, 06 de março de 2021
* Ir. Rosita Milesi é Diretora do IMDH. Paula Coury é Gerente de Integração do IMDH.