É degradante pensarmos na pessoa como mercadoria. Inverte totalmente a essência do que é ser humano e esvazia a pessoa da sua dignidade e do seu direito de ser livre.
Entrevista com Irmã Eurides Alves de Oliveira, publicada na edição 443, do Jornal Mundo Jovem/PUC/RS, fevereiro de 2014.
É degradante pensarmos na pessoa como mercadoria. Inverte totalmente a essência do que é ser humano e esvazia a pessoa da sua dignidade e do seu direito de ser livre. Com a globalização, intensificaram-se os processos de migração e de tráfico humano, uma realidade que interpela todas as pessoas de boa vontade a se indignarem, a se informarem e a buscarem os meios de erradicar esse verdadeiro crime que destrói a vida e os sonhos de muita gente, especialmente de jovens. Entrevistamos a irmã Eurides Alves de Oliveira (ICM), coordenadora da Rede Um Grito Pela Vida, uma rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas, vinculada à Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB) e à CNBB.
- O que a levou a trabalhar com o tema e a causa do tráfico de pessoas?
Sensível à questão dos pobres, que sempre foi a origem da minha vocação, esse compromisso foi se direcionando para a questão das mulheres. A grande incidência da violência doméstica e de uma certa forma da não participação das mulheres nos espaços públicos da sociedade e na Igreja me levou a um engajamento mais direto com a questão das mulheres vítimas da violência. Nós tínhamos muitas congregações trabalhando com a migração, com a violência contra as mulheres, com crianças e adolescentes em situação de risco, ou seja, sujeitos em potencial para o tráfico humano. Eu, pessoalmente, também não tinha noção. Alguma coisa por meio de filme ou aquela ideia estereotipada que temos sobre as mulheres que vão para Europa e são escravizadas, mas algo bem longe de nós. Mas então fizemos uma capacitação e essa foi uma experiência que me tirou o véu. Eu me dei conta de que aquelas pessoas com quem trabalhávamos eram vítimas de violência, da exclusão, das vulnerabilidades. Eram também vítimas em potencial do tráfico e que muitos casos de tráfico estavam acontecendo bem perto de nós e não percebíamos.
- Foi a partir daí que nasceu a Rede Um Grito pela Vida?
Sim. Percebemos que o tráfico de pessoas é um mecanismo de comércio e crime que acontece longe e perto de nós. O tráfico é uma rede organizada do crime. E para enfrentá-lo também tínhamos que ter uma rede organizada de enfrentamento. Daí nós decidimos: vamos formar um grupo e vamos ser uma rede. E saímos dali com um pequeno plano, em que a meta principal era sensibilizar as nossas instituições da existência do problema. Hoje nós temos 22 núcleos espalhados em 19 estados. Os núcleos funcionam de forma descentralizada, com as mais diversas atividades, mas o foco maior é na prevenção, na incidência política e na linha da assistência às vítimas como canais de mediação. Nos nossos espaços não há abrigos ou equipe técnica para assistência. Quando aparecem os casos, fazemos a mediação com a secretaria de saúde, com os órgãos do governo, nas casas de abrigo, nas delegacias de mulheres. Em cada localidade, vamos descobrindo onde estão os canais de apoio a esses casos.
- O que é o tráfico de pessoas?
Eu costumo dizer que o tráfico de seres humanos é a demonstração da irracionalidade do sistema capitalista. Infelizmente, ele é tratado na maioria das vezes apenas como um crime de ordem policial. Mas eu diria que ele é um problema difícil de se definir porque é mais uma das expressões das mazelas ou das práticas desse sistema econômico firmado no lucro e na mercantilização de tudo, especialmente na mercantilização da vida. E aí ele pode ser analisado das mais diversas formas: apenas como crime, apenas como uma questão moral, quando se trata da exploração sexual. Mas nós partimos da compreensão de que se trata de uma prática de violação dos direitos humanos, violação da dignidade das pessoas, que fere profundamente a sua integridade. Então trabalhamos a partir dos direitos humanos violados. Há toda essa dimensão da coerção da liberdade que nós devemos ter no direito civil, que é também, para nós, um direito teológico: Deus nos fez para sermos livres. Outro viés é que se trata de um negócio, que demanda ações socioeconômicas e também ação jurídica e criminalística.
- Então, parece que é um tema muito complexo…
Não é um tema fácil. É uma realidade presente, mas que de uma certa forma fica invisível, porque aparece muitas vezes noutros guarda-chuvas: da pobreza, da exploração, das desigualdades e da discriminação de gênero, da falta de trabalho, do turismo sexual etc. Então, o tráfico de pessoas está presente em muitas situações de vulnerabilidade em que as pessoas vivem. E, sobretudo, é um mecanismo de fazer muito dinheiro, porque hoje é considerado a terceira fonte mais lucrativa do mundo e está junto com as drogas e as armas.
- Como é tratado o tráfico de pessoas pelos governos?
A definição de tráfico de pessoas mais aceita mundialmente é a do Protocolo de Palermo, nome pelo qual ficou conhecida a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”, realizada na Itália, em 1999. Ele define que para ser tráfico de pessoas deve haver um recrutamento da pessoa, tirada do seu habitat, do seu país, do seu estado ou município para outro, por meio de coerção, uso da força, engano, ilusão, para além da sua vontade ou com o consentimento a partir do engano e da mentira. A pessoa é levada para uma outra situação que não lhe dá liberdade, para fins de exploração, onde é mantida em situação de escravidão. Essa exploração do tráfico de pessoas tem várias faces: a exploração sexual (86% das vítimas para a exploração sexual são mulheres e crianças, sobretudo adolescentes), em que a maioria é vítima de situação de vulnerabilidade ou porque já sofreu violência familiar, ou já estava no mercado da prostituição e viu nas propostas que lhe faziam a possibilidade de ganhar mais ou o sonho de ir para fora do país. A outra face é a exploração no trabalho, de forma escravocrata, porque infelizmente a abolição passou longe. No Brasil, nós temos mais de 25 mil trabalhadores em situação de escravidão, principalmente nas áreas rurais, trabalhadores da cana, dos empregos temporários, das olarias ou nos grandes projetos.
- Onde vocês buscam inspiração e disposição na realização do trabalho contra o tráfico humano?
A fundamentação principal é que o nosso Deus é o Deus da vida. O nosso Deus é um Deus da liberdade, que não pode compactuar com a exploração e com a escravidão. Podemos perpassar a Bíblia de ponta a ponta e vamos encontrar as ações de Deus sempre como um Deus que defende a vida, muito atento ao clamor e ao sofrimento do povo. O texto que faz a gente não se omitir e não ficar indiferente com essa realidade é do livro do Êxodo: um Deus que vê, que escuta o clamor, que desce e que se põe a caminho com o seu povo, dizendo que não quer o seu povo escravo. Então tem que fazer caminho para libertar o seu povo. Também a profecia de Amós diz que nós não podemos compactuar com a injustiça, com as balanças em função do lucro, que roubam e que sacrificam as pessoas, que vendem o pobre por um par de sandálias. Portanto a venda de pessoas é radicalmente criticada pela profecia de Amós. Sobre mulheres vítimas de exploração sexual nós temos vários episódios bíblicos em que, para Jesus, a mulher não pode ser considerada objeto, não pode simplesmente ser julgada pela sua condição de pecadora. O papa Francisco também dizia que o tráfico de seres humanos é uma realidade vergonhosa nas sociedades que se dizem civilizadas e que ela é a mais intensa escravatura do século 21. E que os cristãos não podem ficar indiferentes a essa realidade.
- O que o lema da Campanha da Fraternidade, “É para a liberdade que Cristo nos libertou”, nos propõe?
São Paulo prega a boa notícia como liberdade, como contraposição a uma pseudoliberdade que escraviza. Se lermos as cartas, vamos encontrar várias recomendações contra a libertinagem, em relação à bebedeira, ao abuso de poder etc. E diz: “isso escraviza, e é para a liberdade que Cristo nos libertou”. Uma das questões que alimentam o crescimento da inserção das pessoas no mercado do tráfico é a cultura do prazer e do consumo. Além disso há o poder midiático de sedução para uma liberdade falsa, que busca a realização de um sonho pautado no ter, no tudo pode, que resulta muitas vezes numa frustração, num sonho de liberdade que vira pesadelo. Temos que trabalhar o sentido da liberdade. Acho que o texto do lema tem muito a ser explorado, porque a liberdade é que garante a vida, e não uma liberdade que causa a morte.
Informação, ação e mediação
O tráfico humano é grande, é presente, mas é pouco visível. Sempre pensamos que está longe de nós. Temos que visibilizar o problema através de informações, de campanhas de sensibilização, debates, encontros. E aí a juventude pode ter uma contribuição enorme. Abrir os olhos, ser inquieto, procurar informação, participar, ser interlocutor de outros jovens. É preciso jogar o tema nas redes sociais, acompanhar as notícias da mídia, divulgar e discutir isso, seja pessoalmente, seja em grupo. Essa é uma tarefa de todos. Esse é um primeiro passo: o problema existe, está aí, e é preciso divulgar.
A segunda via de prioridade é a capacitação de multiplicadores. Espaços onde se trabalha a realidade, os conceitos, a legislação, a orientação de como se pode perceber a realidade. Temos que criar um grande mutirão de formação da consciência, de esclarecimento da realidade, através do qual podemos coibir o crescimento do tráfico de pessoas. Sabemos que é muito difícil resgatar quem já está, mas acreditamos que precisamos investir todas as energias, pois, se não conseguimos resgatar quem já caiu, vamos pelo menos coibir o crescimento e o ingresso de novos.
A terceira fonte de atuação é a mediação, ou seja, articular com organismos nacionais, internacionais, com o poder público, com outras organizações que trabalham com o tráfico ou com situações similares, que possam nos ajudar. Com os centros de direitos humanos que possam subsidiar a questão jurídica, mais formal dos processos. E depois na incidência política, estar junto, provocando, participando.
Em 2005, começou a política nacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas. Essa política se baseou em três eixos: a prevenção, a assistência e a responsabilização dos culpados. Discutimos também a questão das políticas públicas no campo da prevenção, porque uma coisa é você alertar para o problema, outra coisa é você trabalhar isso conjugado com a superação das causas que levam as pessoas a entrar na roda. Temos que trabalhar via políticas públicas: saúde, educação, comida, enfrentamento da violência, cumprimento das leis socioeducativas. Porque, se isso acontece, as pessoas têm menos probabilidade de cair na armadilha do tráfico.