Vaticano lança Documento sobre Migrações

“As migrações internacionais são vistas e consideradas, com razão, como um importante componente estrutural da realidade social, econômica e política do mundo contemporâneo” (n. 8), assegura a recente Instrução “A Caridade de Cristo para com os migrantes”, publicada sob a responsabilidade do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, da Santa Sé.

 

“A Caridade de Cristo para com os Migrantes”

(Erga Migrantes Caritas Christi)

Ir.Rosita Milesi, mscs

“As migrações internacionais são vistas e consideradas, com razão, como um importante componente estrutural da realidade social, econômica e política do mundo contemporâneo” (n. 8), assegura a recente Instrução “A Caridade de Cristo para com os migrantes”, publicada sob a responsabilidade do Conselho Pontifício da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, da Santa Sé.

No documento, afirma o Vaticano que “nenhum Estado foge às conseqüências de algumas formas de migração que, com freqüência, estão fortemente ligadas a fatores negativos, como a mudança demográfica nos países de primeira industrialização, o aumento das desigualdades entre Norte e Sul no mundo, a existência de barreiras protecionistas e a proliferação dos conflitos e das guerras civis” (Apresentação).

Expressa, outrossim, um “não” à intolerância e ao racismo, afirmando: “A precária situação de tantos estrangeiros – que deveria provocar a solidariedade de todos – causa, pelo contrário, temores e medos em muitos, que sentem os imigrantes como um peso, vêem-nos como suspeitos e consideram-nos como um perigo e uma ameaça. Isto provoca freqüentemente manifestações de intolerância, de xenofobia e de racismo” (n. 6), critica o Vaticano, na Instrução emanada.

Por ocasião do lançamento do novo Documento, o Presidente do Pontifício Conselho, Mons. Fumio Hamao, afirmava que as atuais migrações constituem o movimento humano mais vasto da todos os tempos e assim se expressava sobre esta realidade: “Nas últimas décadas, tal fenômeno, que afeta neste momento cerca de 200 milhões de pessoas, transformou-se numa realidade estrutural da sociedade contemporânea, constituindo um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, cultural, político, religioso, econômico e pastoral”. E, com zelo pastoral por estes que a Igreja Católica deve acolher, assistir, defender e promover assegurava que a Instrução “A caridade de Cristo para com os Migrantes “quer ser uma resposta eclesial às novas necessidades pastorais dos migrantes, a fim de conduzi-los, por sua vez, a transformar a experiência migratória, não somente numa oportunidade de crescimento na vida cristã, como também de nova evangelização e de missão”.

O Vaticano mostra-se consciente da crescente presença de muitos migrantes cristãos não-católicos e de migrantes de outras religiões, em particular da muçulmana, em terras tradicionalmente católica e vice-versa. “Nas relações entre cristãos e membros de outras religiões, reveste-se de grande importância o princípio da reciprocidade, entendida não como uma atitude puramente reivindicativa, mas, sobretudo, como relação fundamentada sobre o respeito recíproco e sobre a justiça nos tratamentos jurídico-religiosos” (n. 64). Considera o fato da grande presença de migrantes muçulmanos na atualidade uma oportunidade para viver “a atitude evangélica que se deve assumir e convida a purificar a memória das incompreensões do passado, a cultivar os valores comuns e a esclarecer e respeitar as diversidades sem renunciar aos princípios cristãos” (n. 65). No documento, o Vaticano alerta também as mulheres católicas a refletirem bem antes de casar com homens muçulmanos. Entre os argumentos utilizados para justificar a recomendação, afirma que as mulheres “são as menos protegidas dentro de uma família muçulmana” (n. 67). Disposições como esta e outras relativas ao islamismo, realizadas com o propósito de debater a situação dos migrantes em todo o mundo, segundo analistas, poderão alimentar a desconfiança entre duas das maiores religiões do mundo.

Além de sublinhar os valores cristãos do islamismo, o documento trata da questão do respeito aos direitos humanos e afirma: “aspiramos, portanto, que se produza em nossos irmãos e irmãs muçulmanos uma crescente tomada de consciência sobre o caráter imprescindível do exercício das liberdades fundamentais, dos direitos invioláveis da pessoa, da igual dignidade da mulher e do homem, do princípio democrático no governo da sociedade e da correta laicidade do Estado. Haverá, assim mesmo, que chegar a uma harmonia entre a visão de fé e a justa autonomia da criação” (nº 65).

A Instrução afirma que “o fenômeno migratório suscita uma autêntica questão ética, a busca de uma nova ordem econômica internacional para uma mais justa distribuição dos bens da terra. (…) na visão da comunidade internacional como família de povos”. Apela, pois, por um novo e incisivo empenho na educação e na pastoral, na ótica “de uma formação à ‘mundialidade’, isto é, a uma nova visão da comunidade mundial, considerada como família de povos, à qual finalmente são destinados os bens da terra, numa perspectiva do bem comum universal” (n. 8).

A Santa Sé veria com bons olhos a correção dos desequilíbrios criados pela “globalização sem regras” (n. 29) do mundo moderno e assegura que esta correção seria o primeiro passo para resolver os problemas da migração irregular, evitando que o migrante se torne “objeto de tráfico e de exploração por parte de organizações criminosas” (n. 29). A Igreja católica condena “o novo capítulo da escravidão” que se verifica no mundo atual com o tráfico de mulheres e crianças, um pouco por todo o mundo, e considera que é fundamental distinguir, no que diz respeito ao acolhimento de migrantes, os conceitos de primeiro acolhimento (limitado no tempo), de acolhimento propriamente dito e de integração. “Essa integração é essencial para que a pastoral para e com os migrantes, possa tornar-se expressão significativa da Igreja universal, missio ad gentes, encontro fraterno e pacífico, casa de todos, escola de comunhão reconhecida e participada, de reconciliação pedida e dada, de mútua e fraterna acolhida e solidariedade, como também de autêntica promoção humana e cristã” (apresentação).

O texto da Instrução condena, também, “as políticas puramente restritivas, que gerariam, por sua vez, efeitos ainda mais negativos, arriscando de aumentar as entradas ilegais e até favorece a atividade das organizações criminosas” (n. 7). Manifesta a posição de que nenhum país pode resolver sozinho a problemática migratória e a consistência numérica desta mobilidade exige cada vez mais “uma estreita colaboração entre os países geradores e receptores de migrantes, além de adequadas normativas capazes de harmonizar as diversas disposições legislativas, fim de salvaguardar as exigências e os direitos das pessoas e das famílias migrantes e, ao mesmo tempo, as da sociedade de chegada dos migrantes” (n.8).

O documento versa também sobre a questão dos refugiados que transversalmente interfere na questão migratória. “Estas situações críticas alimentam fluxos crescentes também de refugiados e de prófugos, freqüentemente misturados com aqueles migratórios, envolvendo sociedades onde, no seu interno, etnias, povos, línguas e culturas se encontram, porém com o risco de contraposição e de choques.” (n. 1). O tema dos refugiados é tratado com muito respeito pelo Pontifício Conselho, que o insere como algo fundamental para a compreensão humanitária das migrações internacionais, a partir da segunda grande guerra (n. 19) reiterando o compromisso da Igreja de aprofundar a luta pela ratificação e cumprimento de convenções internacionais que buscam garantir os direitos humanos de migrantes e refugiados, em especial a Convenção da ONU sobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes, citada nominalmente no documento: “A este propósito a Convenção internacional sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias – em vigor desde o dia 1º de julho de 2003, e cuja ratificação foi vivamente recomendada por João Paulo II – oferece um compêndio de direitos que permitem ao migrante dar esta contribuição.” (n. 6)

A partir disso, o documento louva as iniciativas cristãs, citando, entre elas, a ação das diversas Cáritas (n. 33), em prol da garantia jurídica internacional dos direitos dos migrantes e refugiados: “a Igreja encoraja a ratificação dos instrumentos internacionais legais que garantem os direitos dos migrantes, dos refugiados e das suas famílias, oferecendo também nas suas várias instituições e associações competentes aquela advocacy que, hoje, é cada vez mais necessária” (n. 6), traduzindo ainda a necessidade de se aprofundar tais laços, introduzindo este tema por ocasião dos Capítulos gerais e provinciais, e nos cursos de atualização e de formação permanente (n. 84)[1].

Por fim, na questão de refugiados, assegura a necessidade de ir além de uma ajuda imediata, convocando a Igreja a inserir-se na necessidade de integração, papel essencial de uma pastoral eclesiástica e de leigos católicos em sindicatos, associações e partidos, buscando sempre ampliar a participação política e a garantia de direitos individuais e sociais ao refugiado e ao migrante (n. 87)

O documento, por fim, além de todas suas nuances, nos convoca a ver no migrante uma possibilidade de ação concreta da caridade cristã, buscando dar vida em abundância, na plenitude de direitos, àquele que por tamanho sofrimento, se iguala ao Cristo crucificado, necessitando de um gesto que o ajude a ressuscitar: “As migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas, e quiçá de povos, de todos os tempos. Esses nos levam a encontrar homens e mulheres, nossos irmãos e irmãs, que por motivos econômicos, culturais, políticos ou religiosos abandonam, ou são obrigados a abandonar, as suas casas, para encontrar-se, na maioria das vezes, em campos de refugiados, em megalópoles sem alma, em favelas, onde o migrante partilha com freqüência a marginalizaçãocom o operário desempregado, o jovem desadaptado, a mulher abandonada. Por isso, o migrante está sedento de “gestos” que o façam sentir-se acolhido, reconhecido e valorizado como pessoa.” (n. 96)

Breves informações sobre a Instrução “A caridade de Cristo para com os Migrantes” (Erga Migrantes Caritatis Christi):

A Instrução “Erga Migrantes Caritas Christi” foi lançada pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, no dia 14 de maio de 2004.

A preparação do documento iniciou em 2001, sob o título provisório “De accomodata Pastorali Migratorum Cura” (sobre o adequado cuidado da Pastoral dos Migrantes). A elaboração foi precedida de um levantamento realizado junto às Igrejas locais, para identificar a situação e necessidades concretas das pessoas em mobilidade – migrantes e refugiados – em cada país, objetivando adequar a ação da Igreja na dimensão da solidariedade, justiça, sensibilização, formação, coordenação e evangelização, bem como a divulgação da visão cristã sobre a dignidade e a mobilidade humanas.

A primeira versão do documento foi enviada às Comissões Episcopais de Mobilidade Humana de cada país, as quais contribuíram com suas observações, enviando-as ao Vaticano. Quis a Santa Sé abordar as novas dimensões do atual fenômeno migratório, atualizando suas orientações relativas à atenção pastoral aos migrantes. O documento busca promover atitudes de respeito aos direitos dos migrantes, orienta os bispos, sacerdotes, religiosos e leigos, oferece indicações práticas e objetivas ante questões suscitadas pela migração. Volta especial atenção aos países orientais.

O documento está composto por 104 parágrafos e conclui com um “ordenamento jurídico-pastoral” formado por 22 artigos.

O texto completo da Instrução está disponível no site:

http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/migrants/s_index_generaldocuments/rc_pc_migrants_gendocuments.htm

Brasília-DF, 19 de maio de 2004



[1] “Em suas Cartas circulares aos co-irmãos ou às co-irmãs, e nos encontros comunitários, enfatizem os Superiores, de tanto em tanto, a urgência do problema dos migrantes e dos refugiados, chamando a atenção sobre os relativos documentos da Igreja e sobre a palavra do Sumo Pontífice. A este propósito, também se poderia ter o cuidado de introduzir este tema por ocasião dos Capítulos gerais e provinciais, e nos cursos de atualização e de formação permanente. Também os futuros Presbíteros deverão, ao menos, prever a possibilidade de preparar-se para realizar o seu ministério, ou parte desse, entre os migrantes” (n. 84)