A especulação financeira desenfreada e as leis de mercado competitivo acabam ocupando todos os espaços e obscurecem o surgimento de iniciativas de interligação dos povos e das culturas. A ideologia do mercado torna-se a lei máxima e inquestionável e é fortalecida pela difusão do pensamento único e pelo apoio de seus formadores de opinião.
A HEGEMONIA DA GLOBALIZAÇÃO FINANCEIRA
A globalização financeira é uma das marcas da conjuntura do mundo atual. Esta coloca em segundo plano muitos aspectos do processo de aproximação das pessoas e das nações.
A especulação financeira desenfreada e as leis de mercado competitivo acabam ocupando todos os espaços e obscurecem o surgimento de iniciativas de interligação dos povos e das culturas. A ideologia do mercado torna-se a lei máxima e inquestionável e é fortalecida pela difusão do pensamento único e pelo apoio de seus formadores de opinião.
A globalização é um fato em si positivo. A inclusão ou exclusão das pessoas torna-se iníqua quando são decorrentes do desrespeito aos direitos naturais. Isto acontece quando prevalecem sobre esses direitos os critérios estabelecidos pela nova ordem mundial, dominada pelo financeiro e o econômico e pela crescente concentração da riqueza nas mãos de poucos.
A sobrevivência no mundo globalizado, com ênfase no econômico e financeiro, torna-se difícil e complexa. Cresce a competição cujo único critério é o lucro e a prosperidade financeira, em vez de solidariedade e luta pelos espaços de direitos sociais.
A GLOBALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E DO TERROR
Por conta desse desarranjo universal assistimos a uma escalada de violência, sem precedentes na história da humanidade. Os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque mudaram a conjuntura internacional sem ter mudado substancialmente os desafios e as desigualdades.
Em momento algum mudaram as causas e a raízes da desorganização universal e generalizam-se os conflitos.
A convivência e intercâmbio entre árabes e judeus é cada vez mais difícil.
As invasões do Afeganistão e do Iraque mostram ameaça permanente do poderoso arsenal bélico dos Estados Unidos.
Crescem as atitudes fundamentalistas e radicais. Estas são ameaças permanentes ao acolhimento dos que migram e necessitam ter reconhecidos seus direitos de cidadãos universais.
A exclusão e a violência crescem exatamente em nome do seu combate.
A cultura do terror está armando o estado terrorista e que vê com suspeita a livre circulação dos migrantes.
As condições em que vive a grande maioria da humanidade, entregue à pobreza, à miséria e à violência mostram que não mudaram as causas da exclusão.
O terrorismo usa armas inusitadas e desproporcionais. Insiste na lógica da destruição e na semeadura da desconfiança e insegurança. O contraterrorismo, liderado pelos Estados Unidos em aliança com os países ricos e com outros cooptados pela força do dinheiro, encarna uma nova e grave forma de terrorismo de estado que destrói o direito ao acolhimento dos que precisam migrar para sobreviver.
Com a mudança da conjuntura mundial, a tônica passa a ser a luta contra o terror internacional, nos termos definidos pela nação norte-americana.
Esta nova perspectiva não “opõe guerra e paz, mas a paz identificada com os valores de liberdade e democracia – no sentido norte-americano – e o terrorismo fundamentalista islâmico”.[1]
A grande mudança conjuntural foi a globalização da violência. Esta nova situação engendrou um círculo vicioso. O poder hegemônico da globalização financeira liberal criou uma verdadeira camisa-de-força para a humanidade. Esta, por si só, já é uma violência. Agora os Estados Unidos tentam impor ao mundo um dilema difícil de resolver. Polarizam a “violência da globalização liberal e a globalização da violência”.[2]
Ao aceitar este preço que nos está sendo imposto ficará muito difícil entender o que está se passando no mundo de hoje e tornará mais difícil ainda construir a cultura da paz e do acolhimento aos que migram.
Os padrões de liberdade e democracia como entendem os Estados Unidos na verdade constróem cada vez mais barreiras e obstáculos à livre circulação das pessoas.
Até 11 de setembro de 2001 a pauta de luta pela justiça e pelos direitos humanos vinha sendo ditada e alavancada pelos movimentos contra a globalização neoliberal que culminaram na proposta do Fórum Social Mundial. As primeiras reações levaram à tentativa de criminalizar tais movimentos e declará-los “inimigos dos pobres” e dos excluídos.
Na atual conjuntura mundial ainda não são claras as decisões e compromissos éticos que insistam na possibilidade de se romper este círculo vicioso. Urge um salto de qualidade gigantesco para se fugir da barbárie e lançar as bases de uma nova ordem mais solidária.
A década de 90 foi pródiga em conferências mundiais no que diz respeito à preservação do meio ambiente, à garantia do direito das crianças, do direito de morar, do direito de comer e não passar fome, do direito da mulher, do direito de circular e ser cidadão do mundo, dos direitos humanos em geral.
O processo de hegemonia financeira e agora o terrorismo de estado e a sua contra-reação terrorista pervertem todas as iniciativas capazes de articular tais direitos. Tal processo dificultou vislumbrar a síntese daqueles direitos. Havia um amplo espaço novo de possibilidades reais de um novo mundo de direitos, mais solidários e humanamente globais.
Observa-se, ao contrário, que o processo de globalização e o terrorismo afastam e dificultam a articulação das nações conforme sejam os seus interesses econômicos, financeiros e de segurança mais imediatos.
Fortalece-se o abismo entre as nações ricas do norte e as nações pobres do sul. Ampliam-se as barreiras entre as economias, impedindo a livre circulação de mercadorias e de pessoas, tudo isso viciado pela atual hegemonia das nações mais fortes.
Todos se tornam presas fáceis de capitais financeiros especulativos a pretexto de desenvolvimento rápido, porém não durável nem sustentável.
O aumento das distâncias sociais, provocado por esse processo de endividamento, torna mais difícil o aproveitamento dos espaços físicos, sociais e culturais entre as nações para o sadio acolhimento, como valor prioritário, da massa crescente das vítimas de todo esse processo de exclusão.
Tudo isso acontece porque a lógica vigente é a da competição e não a da solidariedade que elimine todas as exclusões.
Nesta conjuntura a questão da mobilização humana e das migrações é tratada apenas como fluxo de mão-de-obra mercantilista a ser aceita ou rejeitada em função de interesses meramente econômicos e financeiros. A redução a simples mercadoria do ser humano que circula pelo mundo por inúmeros e justos motivos é algo degradante e abominável.
O estado hegemônico e viciado pela visão terrorista, infelizmente, é cada vez menos presente como regulador de justas relações sociais e do bem comum. No caso da definição de políticas migratórias entre nações a ausência do estado, como guarda e defesa do bem comum, é ainda mais injuriosa e inquietante.
Sem o amparo de órgãos maiores torna-se difícil saber com quem e o que negociar a favor de justos interesses dos migrantes.
A flexibilização e desregulamentação das leis trabalhistas colocam interesses do bem comum à mercê de interesses das grandes corporações. Eliminam-se conquistas sociais importantes, frutos de longas e laboriosas negociações e de lutas pela direito e dignidade das pessoas.
Nesta conjuntura é urgente que os trânsfugas deste mundo tornem-se sujeitos de direitos universais. A nova maneira de entender a globalização requer a ênfase no direito de cada homem e mulher ser cidadão do mundo e de ser respeitado como tal.
Neste contexto, os fenômenos das migrações e do tráfico humanos são vistos como fluxo de mão-de-obra a serviço de interesse dessa nova ordem mundial mercantilista. O tráfico humano torna-se uma questão definida pelos interesses das leis e exigências do mercado.
Na prática isso induz ao tráfico de vidas humanas, que é a verdadeira perversão das possibilidades de alguém escolher onde ficar e ter direitos de ir e vir, sem controle. Tudo passa para as mãos dos que têm os poderes econômicos, financeiros e bélicos.
A política que define as ondas migratórias, neste contexto, é antes de tudo dominada pelos mecanismos de repressão. Dar um salto de qualidade em direção a uma globalização mais solidária significa também mudar os rumos e os conceitos das políticas migratórias. Urge transitar na direção de políticas públicas de acolhimento e não de repressão.
No caso do Brasil agrava-se o quadro cultural daqueles que já são excluídos por motivos internos e culturais próprios da nossa sociedade. Estes excluídos são os que mais têm necessidade de circular pelo país e fora dele. Passíveis, portanto, de tráfico humano.
Em síntese, na atual conjuntura internacional, marcada pela globalização financeira e pela globalização da violência, a política de migrações torna-se uma política de contenção dos fluxos humanos.
O mundo de hoje teria tudo para dar um grande salto de qualidade rumo à solidariedade e à superação das políticas migratórias de exclusão.
A hegemonia do pensamento único do mundo globalizado pelo poder econômico e pela violência insiste, porém, apenas em dar voz e direitos de ir e vir, sem controles, aos que detêm os poderes econômicos, financeiros e bélicos.
CAMINHO E ESPERANÇA
Urge recuperar o espaço social como resultado da tomada de posição política capaz de retificar os excessos da mercantilização do mundo e do crescimento da cultura do medo.
Urge colocar a dignidade da pessoa humana, capaz de se interligar com outras, no centro das políticas migratórias. Tais políticas precisam, em nome da dignidade fundamental da pessoa humana, superar as barreiras de raça, nação, cultura, sexo.
Os laços humanos da pessoa e do cidadão são patrimônio da humanidade. Tais laços, na prática, são desconhecidos pelo processo de globalização em curso.
É necessário enfatizar que a nova perspectiva de direitos universais do cidadão não pode dar espaços para alimentar as exclusões, os racismos, a indiferença para com o drama humano do migrante. Todas as nações deveriam ser capazes de ter portas abertas a todo e qualquer ser humano. O egoísmo das nações é o grande obstáculo para a prática da cidadania globalizada e solidária.
Urge enfatizar esse novo aspecto dos direitos humanos: o direito de ser cidadão do mundo.
É preciso acreditar que grande desafio é o de como construir essa cidadania do mundo, voltada para a superação de todas as barreiras que limitam a livre circulação dos migrantes.
Trata-se de criar condições para acolher quem livremente escolhe o lugar e as pessoas com quem queira viver. A solidariedade cidadã é maior do que os atuais limites impostos.
É necessário articular as políticas públicas globais para superar as discussões estéreis e ideológicas e serem eficazes na promoção dos direitos do cidadão do mundo.
Destaque-se o que a experiência tem mostrado: as atuais políticas públicas são adotadas para criar barreiras às aspirações à cidadania universal e não para facilitar a realização destes sonhos.
Vamos enfatizar o critério novo para realizar as novas aspirações: acolher o cidadão migrante que tem direito de viver, não importa onde, como ser humano. Tal atitude independe da discussão se isso venha ou não perturbar a ordem econômica estabelecida.
O critério novo seria o de instaurar uma profunda revolução no egoísmo das nações, particularmente das mais ricas, a começar por políticas públicas que não se restrinjam à globalização financeira.
Esta revolução se ampliará pela articulação de ações propositivas e articuladas sob forma de redes autônomas e interligadas, superadas a fase de reações e medidas contra os excessos da globalização financeira.
A iniciativa propositiva do Fórum Social Mundial aparece como um novo e adequado espaço para ampliar as discussões e as realizações da cidadania universal. Isso, certamente, levará a repensar as ações mobilizadoras das organizações não governamentais (ONGs) e outras iniciativas semelhantes, particularmente no âmbito das igrejas e da sociedade civil organizada.
É urgente que se proclame o direito fundamental de o homem ser cidadão universal. Será a versão moderna da palavra eterna de Jesus a iluminar gerações e gerações: “o sábado foi feito para o homem e não o homem para servir ao sábado”. Ou seja, o mundo globalizado, verdadeiramente solidário e universal, é para o cidadão universal e não o cidadão universal para servir à atual globalização, onde prevalece a hegemonia do dinheiro, da competição desenfreada de mercado e da violência.
Brasília, 29 de setembro de 2003
Pe. Virgílio Leite Uchôa