As estatísticas demográficas atuais apontam para certa estabilização da migração no Amazonas nos últimos cinco anos. Na realidade, o que vem ocorrendo é um novo movimento migratório com fluxos de migração interna nas correntes, intra e inter-regionais.
Márcia Maria de Oliveira*[1]
As estatísticas demográficas atuais apontam para certa estabilização da migração no Amazonas nos últimos cinco anos. Na realidade, o que vem ocorrendo é um novo movimento migratório com fluxos de migração interna nas correntes, intra e inter-regionais.
No caso específico da Amazônia, há um fluxo considerável de migração interna, num contínuo movimento que continua se direcionando para a capital do Estado e um outro, igualmente significativo, que ocorre na tríplice fronteira: Peru, Brasil e Colômbia. Nesse contexto peculiar, a extensa área de fronteira, tem favorecido fortemente a mobilidade humana determinando um movimento de contínuas entradas e saídas nas áreas limítrofes.
O objetivo deste breve estudo é apresentar a conjuntura migratória que vem ocorrendo, sempre em ordem crescente, na tríplice fronteira e identificar alguns elementos que proporcionam uma maior compreensão da mobilidade humana nesta área característica do Brasil. O texto presente trata-se de um breve recorte, de um outro estudo mais amplo, que advém das constantes reflexões realizadas no interior do grupo de pesquisas do Diretório de Estudos e Pesquisas sobre Migração, Identidade, Cultura e Xenofobia – DEPMICX do que pertence ao núcleo de antropologia do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
Uma das linhas de pesquisa do DEPMICX é a migração estrangeira no Amazonas que acompanha tanto os aspectos da dinâmica populacional quanto as políticas de migração. No que se refere à mobilidade humana na tríplice fronteira: Peru, Brasil e Colômbia, há poucos estudos e pesquisas sobre o processo que vem se acentuando nas últimas décadas. Daí a relevância desta abordagem de caráter preliminar.
O texto se divide em duas abordagens. Primeiramente apresenta alguns aspectos pertinentes do quadro da realidade migratória na tríplice fronteira, suas características e alguns elementos que proporcionam uma análise mais acentuada do contexto. Também situa os três países limítrofes no panorama dos movimentos de migração interna e os processos que convergem na migração internacional. A segunda parte do texto se encarrega de desferir algumas reflexões sobre as políticas migratórias voltadas para essa região específica e a ausência de políticas públicas, por parte do Estado brasileiro, que co-respondam às demandas. Por fim, algumas conclusões preliminares que desafiam e incentivam a continuidade dos estudos desta temática, ora apresentadas em tom de “provocações”, que abre um leque de reflexões futuras, merecedoras de um maior aprofundamento.
OS DESAFIOS CONJUNTURAIS DA MOBILIDADE HUMANA NA TRÍPLICE FROTEIRA: PERÚ – BRASIL – COLÔMBIA.
A mobilidade humana, que se destacou como um fator preponderante no decorrer do séc. XX continua se apresentando como um dos grandes desafios no início deste novo milênio. Em termos relativos, o início do século passado teve um contingente maior de migração internacional. Porém, havia uma outra conjuntura demográfica mundial e os deslocamentos visavam uma alocação mais imediata dos migrantes em outros continentes, como o que ocorreu com a migração de europeus para o continente americano.
Segundo os relatórios da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Internacional para as Migrações (OIM 2000), há aproximadamente mais de 175 milhões de migrantes em todo o mundo.
Cerca de 10% da população mundial, enfim, migra atualmente para se salvar dos pavores econômicos e de suas conseqüências. Desemprego em massa e pauperização tornaram-se condição estrutural do mundo contemporâneo. Os migrantes não constituem mais um “exército industrial de reserva”, mas, sim, integram um “lixo social” de difícil reciclagem humanística (HEIDEMANN, 2004: 28).
A discussão sobre o problema da migração só entra no debate das políticas nacionais localizadas a partir das fronteiras, ou seja, quando o imigrante passa a ser um problema para o país receptor. Omite-se, porém, que é justamente o mesmo sistema, que favorece o crescimento econômico dos países ricos, que empobrece os países pobres de onde partem os migrantes. Pouco se fala de políticas migratórias no panorama internacional a não ser quando se refere à segurança de fronteiras. As políticas de migração são marcadas fundamentalmente pela necessidade de mão de obra barata.
Dentre as várias causas da migração internacional, se destacam os conflitos armados, a opressão política, a pobreza, a ausência de redes de segurança para as necessidades fundamentais,a degradação do ambiente, os desequilíbrios demográficos, os fatores climáticos, o processo acelerado de urbanização e a falta de participação nos processos políticos e muitos outros[2]. Todos esses fatores constituem um conjunto de causas que dão origem a uma emigração de fuga destas condições de vida. Mas na raiz de todos esses processos, está um sistema de dominação econômica, com abrangência mundial,
[…] não se pode falar de migrações, discriminação e resistência sem questionar os fundamentos do sistema produtor de mercadorias. Os mobilizados deslocados, os migrantes, foram socializados indiretamente como membros de uma sociedade produtora de mercadorias. A forma valor e o equivalente geral, o dinheiro, fazem parte de uma grande máquina social, do “sujeito automático” nas palavras de Marx (HEIDEMANN, 2004:29).
Em sua maioria, os movimentos migratórios respondem às necessidades de demanda dos países industrializados por mão-de-obra barata e sem qualificação para agricultura, alimentação, construção, indústria têxtil, serviços domésticos e cuidados com os doentes, idosos e crianças nas casas. Nos Estados Unidos, o destino dos imigrantes em geral são sos trabalhos sujos, perigosos e difíceis e no Japão o destino é mais cruel. Cabe-lhes os trabalhos pesados, perigosos, sujos, exigentes e indesejáveis.
Também neste contexto se originam os deslocamentos compulsórios, que eminentemente são de trabalhadores, ora expropriados de suas terras, de seus postos de trabalho e emprego, ora pressionados pela falta de oportunidades etc., que se vêem obrigados a migrar em busca de alternativas de sobrevivência:
As migrações, via de regra, representam a parte visível de transformações invisíveis. A mobilidade humana constitui, muitas vezes, o termômetro que aponta para mudanças ainda em gestação, uma espécie de iceberg de numerosos fatos sociais. A História registra, não raro, que transformações da sociedade foram precedidas ou seguidas de intensos deslocamentos humanos, levando-nos a pensar que os migrantes sejam, na verdade, protagonistas privilegiados dessas mudanças históricas. (MILESI, 2000: 566).
Os migrantes se tornam, nesse contexto, uma espécie de “provocação” que incomoda a “ordem pré-estabelecida” e se transformam em parceiros da luta por um mundo solidário, onde haja espaço para todos viverem com dignidade[3].
A América Latina tem se destacado como um dos maiores palcos de emigração rumo à América do Norte, Europa e Ásia nas últimas décadas. O debate desta temática tem ganhado espaço nas discussões de ordem institucional e nas instâncias não-governamentais. No entanto, muito pouco tem sido feito para a operacionalização de políticas migratórias que contemplem, tanto o fluxo de emigração internacional, quanto o movimento das migrações internas.
Um outro movimento migratório observado na América Latina é a migração entre os países de fronteira. Nos relatórios oficiais, esse dado nem sempre é considerado com a relevância merecida:
A proximidade de países de saída e países de entrada facilita as migrações não fiscalizadas, que são conduzidas por organizações “paralelas” das quais fazem parte conjuntos de passadores e de transportadores que orientam os migrantes para empresários que estão mais interessados em recrutar mão-de-obra dócil e pouco exigente do que em respeitar a lei. Uma certa complacência dos poderes públicos em período de pleno emprego permite, a posteriori, a regularização das condições de estada e trabalho (GEORGE, 1977:166).
No caso dos fluxos migratórios de peruanos e colombianos para o Brasil, a proximidade dos dois países é um dos pontos mais impulsionadores desta corrente migratória. Já no caso dos colombianos, a fronteira surge como sinônimo de fuga provisória, nem sempre com a intenção de um projeto migratório.
Em nível nacional, o Estado Brasileiro apresenta várias limitações no que tange a uma política de migração que lhe permita o “princípio da reciprocidade”, coerente com as exigências que apresenta ao trato de brasileiros no exterior[4].
A legislação migratória do Brasil, a Lei nº. 6.815 data de 19 de agosto de 1980, foi historicamente construída, pautada nas políticas de atração do imigrante que foram, aos poucos, se transformando em políticas de controle, que culminaram em leis profundamente autoritárias e restritivas, editadas pela ditadura militar (SPRANDEL, 2001:98). Foi elaborada sem nenhuma participação da sociedade civil tendo como referência a Lei de Segurança Nacional:
Inspirada neste princípio, ela é restritiva, desatualizada e privilegia somente uma minoria de imigrantes que tenham uma boa profissão e bastantes recursos financeiros. Para o exterior vão brasileiros que possuem profissão e também os menos favorecidos que sonham em melhorar de vida. Ao exigir que estes sejam bem tratados, não podemos deixar de lutar por uma nova lei em nosso país, que respeite os emigrantes que aqui se encontram. Uma lei que seja mais solidária, de acordo com os princípios de nossa constituição e com a Convenção Internacional da ONU sobre a proteção dos direitos de todos os trabalhadores migrantes e seus familiares (BASSEGIO, 2004:60).
Mesmo na fronteira, o presença incômoda do novo, do estranho, do diferente, em fim, do migrante, sempre é acompanhada de reações contrárias por parte daqueles que não admitem sua ação ou intervenção. Nesse sentido, não se pode falar de migração sem também considerar todas as formas de rejeição porque passam as pessoas nessa situação, que envolvem dois problemas fundamentais: a xenofobia e a ausência de políticas internacionais de migração.
Curiosamente, no atual período histórico, em que se difundem os benefícios da globalização e da integração regional e sub-regional, surge uma série de ações nos países receptores de migrantes, que se caracterizam por ser estigmatizantes, discriminadoras e racistas, já que quase todos esses comportamentos se canalizam para os “novos forasteiros”, sejam eles trabalhadores migrantes, deslocados pela violência política ou, em vários casos, refugiados econômicos (MOLINA,2001: 249).
A intolerância expressa contra os migrantes dos países limítrofes, em vários países latino-americanos, também se apresenta como fenômenos xenófobos, ainda que em outras instâncias, que vêm se acentuando cada vez mais. No caso do Brasil, historicamente, vem se reproduzindo, uma prática xenófoba muito sutil, que esconde uma realidade social conflitiva e a institucionalização de uma sociedade marcada pela desigualdade social. No fenômeno das migrações internas que se configura no Brasil desde inícios do século XX, os migrantes continuam carregando o estigma do preconceito social, muitas vezes agravado por sua condição socioeconômica que o obriga a migrar. Esse mesmo estigma é transferido, com um peso muito maior, para o migrante estrangeiro que vive no país, principalmente os latino-americanos.
Pode-se dizer que a presença hispano-americana no Brasil não constitui um fenômeno novo, mas tem se mantido com uma certa regularidade, mesmo a partir dos anos de 1930, quando a maioria dos países da região adotou políticas migratórias protecionistas.Tais medidas visavam, antes de tudo, proteger o mercado da mão-de-obra nacional, o qual começava a expandir-se com o emergente processo de industrialização em alguns países, como o Brasil, a Argentina, a Venezuela, entre outros. No entanto, é a partir da década de 1970 que tal presença começa a ganhar relevância, em razão das transformações econômicas e dos regimes autoritários que se instalaram em grande parte dos países da região. Mesmo sob um regime de exceção, o Brasil passou a ser destino de hispano-americanos, particularmente do Chile, Argentina e Uruguai, os quais tentaram reconstruir as suas vidas no anonimato que uma grande metrópole enseja, como é o caso de São Paulo (SILVA, 2001:490).
Durante muito tempo, o destino mais procurado dos imigrantes latino-americanos no Brasil era a cidade de São Paulo, talvez por ser a maior cidade do país, ou por apresentar maiores possibilidades de emprego, ou por sua extensão e localização, por sua pluralidade, ou por tantos outros atrativos que somente uma grande metrópole pode oferecer e que, de certa forma, fascinava, e continua fascinando, contingentes migratórios. Porém, a partir da década de 1990, outras capitais e algumas cidades de médio e grande porte do Brasil, também passaram a ser ponto de referência para a migração de hispano-americanos. Considerando que a partir da metade do século, começou a ganhar grande ênfase no cenário brasileiro, a migração interna, com grandes fluxos de deslocamentos regionais, pode-se apostar na hipótese de que esse mesmo processo transcorreu também nos países visinhos.
Os deslocamentos internos de correntes migratórias são compreendidos a partir dos processos de urbanização das grandes cidades, principalmente das capitais e os maiores centros urbanos, no início da industrialização do país que conseqüentemente, desencadeou um processo contínuo de grande êxodo rural agravado pela ausência de políticas agrárias voltadas para os pequenos produtores rurais e o crescimento do latifúndio, dentre outros fatores. Essa mesma realidade se repetiu, praticamente em todos os países da América Latina, cada um, obviamente, com suas atenuantes peculiares. Justamente nesse panorama é que entra em cena o Estado do Amazonas no rol dos caminhos da migração estrangeira, sendo que o ponto de concentração dos fluxos migratórios é a capital do Estado, a cidade de Manaus.
O Estado do Amazonas que, em 1960 apresentava uma população calculada em 721,200 habitantes, após a implantação da Zona Franca de Manaus, saltou para 1.449,100 habitantes em 1980 e no último senso de 2000, apresentou um total aproximado de 2.812,557 habitantes, no tocante ao processo de urbanização, se apresenta como o mais complexo da Região Norte. O que se observa é uma exacerbada concentração populacional apenas na sua capital determinando uma total discrepância com relação aos demais Estados não só da Região como também de toda a Federação.
A concentração populacional na capital do Amazonas: um caso atípico
Boa parte dos migrantes que adentram as fronteiras brasileiras via Amazonas, se dirige para a capital do Estado. Nesse panorama, a cidade de Manaus se destaca como um dos principais pontos de aglutinação de migrantes na Região Norte. Com seu crescimento exorbitante, com seus novos habitantes movidos pela esperança de dias melhores, atraídos pela ilusão e fascínio, ou o fausto da cidade grande.
Atualmente a cidade de Manaus concentra cerca de 53% da população de todo o estado, o que a torna um caso atípico com relação a outras capitais nacionais, segundo os dados do censo 2000 do IBGE, atingindo um crescimento médio de 3,74%, se destacando em nível nacional. Com relação ao Estado, a cidade apresenta um crescimento ainda maior, com uma média de 4,94% ao ano na última década. Por isso, se faz necessária uma análise preliminar das taxas de crescimento para se poder identificar qual a dinâmica migratória que esta revela.
É evidente que os fluxos migratórios tiveram significativa influência nesse crescimento demográfico. Destes, destacam-se os movimentos de pessoas oriundas do próprio Estado, colocando o problema do excessivo efeito de centrifugação que Manaus exerce sobre o interior relativamente despovoado. Por outro lado, o rápido crescimento populacional coloca o problema da pressão sobre a infra-estrutura de serviços urbanos, sobre a qualidade e as condições de vida da população, bem como sobre o mercado de trabalho.
A cidade de Manaus passou por vários períodos de crescimento populacional relacionados ao crescimento econômico como, por exemplo, o período do sistema mercantil extrativista da borracha. No entanto, há autores como o geógrafo José Aldemir de Oliveira, que contesta, em sua obra sobre a cidade, a visão equivocada de que esse período haja sido determinante para o desenvolvimento da cidade de Manaus e do Estado do Amazonas. O látex alimentou, sim, o fausto capitalista, as belas moradias, a boa-vida dos senhores endinheirados, dentro de um círculo espacial fechado, restrito aos seus interesses, e não para a maciça população (OLIVEIRA, 2003:14).
A concentração do contingente populacional na cidade de Manaus pode ter muitas variáveis explicativas. Mas, a principal causa parece ser a concentração de capital e de investimentos. Praticamente toda a economia do maior Estado da Federação está centralizada na sua capital. Daí se justifica a corrida desenfreada das correntes migratórias para uma única direção.
[…] o espaço urbano foi sendo produzido apenas como o lugar da produção e, em decorrência desse entendimento, as políticas públicas voltadas para a solução dos problemas urbanos não se constituíram como meios capazes de superar a visão de cidade funcional. As políticas públicas eram aplicadas numa cidade e para uma cidade enquanto espaço das relações econômicas. É preciso destacar que, para além das atividades econômicas, a cidade é também o lugar de morar, de trabalhar, de circular e de cuidar do corpo e do espírito. E as políticas públicas devem ser o instrumento de ação direcionadas à produção de uma nova urbanidade que privilegie a criação de espaços públicos (OLIVEIRA, 2003: 103)
As precárias condições que forçam os pobres para a migração são igualmente encontradas na grande cidade, só que em doses muito maiores. As políticas públicas adotadas em Manaus se encontram voltadas para o bem estar de apenas uma camada da sociedade. A grande maioria da população é relegada ao descaso público que, de forma descarada, só se aproxima dessas camadas populares, com objetivos eleitoreiros, em época de campanha política.
O avanço das ocupações urbanas que vem ocorrendo, desde a década de 1970, é uma clara denúncia da ineficácia do poder público que não apresenta uma política de habitação para o Estado. O problema se agrava na capital onde há, segundo especulações, um déficit habitacional de cerca de 50 mil residências.
Além do problema da moradia, os migrantes enfrentam inúmeros outros problemas agravados pelo desemprego e pelo elevadíssimo custo de vida que a cidade apresenta. Nesse cenário se evidenciam inúmeras tentativas de regresso ao “torrão” de origem, quando a situação se torna insuportável. Porém, em muitos casos, a situação é tão grave que não há condições nem mesmo de re-migração.
O “lugar” da nova etapa da vida, a terra dos sonhos produzida no imaginário do migrante é extremamente frustrante. As pessoas se submetem a situações de extrema violência contra seus direitos básicos. A fome e a miséria são companheiras inseparáveis dos migrantes nas ocupações urbanas. As pessoas são privadas do seu direito mais elementar: o exercício da cidadania que “significa a oportunidade de uma vida decente, com acesso ao trabalho e aos serviços básicos: água, energia, educação, transporte e saúde” (OLIVEIRA, 2003:103).
O estudo sobre os migrantes peruanos e colombianos que adentram no Amazonas e se estabelecem em Manaus, propicia uma abordagem da migração internacional à luz deste pequeno recorte, visualizando, nesta realidade migratória específica, alguns elementos que contribuem para a compreensão da migração internacional em situações localizadas.
Várias entrevistas aplicadas ao longo deste estudo contribuíram para aprofundar algumas destas temáticas, mas na origem desta investigação, estão os dados apresentados pelo Serviço Pastoral dos Migrantes da Arquidiocese de Manaus[5]. Dentre os migrantes estrangeiros cadastrados no setor de atendimento desta instituição, atualmente, a grande maioria, cerca de 70%, é de peruanos e colombianos. Boa parte destes se encontra em situação irregular, ou seja, vivem na clandestinidade.
O banco de dados do SPM contém informações sigilosas sobre peruanos e colombianos que conseguem “burlar a lei de migração” encontrando alternativas de sobrevivência mesmo de “forma ilegal” nesta cidade: aqueles que ingressaram no país via fronteiras clandestinas e não portam documentação de entrada legal (passaporte com visto de entrada)[6], aqueles que entraram de forma legal mas que deixaram esgotar seu tempo de estada permitido pela lei sem conseguir dar entrada ao pedido de permanência[7] em tempo hábil, e também aqueles que deram entrada em seu processo de pedido de permanência mas que tiveram seu pedido “indeferido” (negado pelo Ministério da Justiça) por diversos motivos, dentre eles a falta de documentação necessária.
Partindo dessas informações e aprofundando os dados e a realidade migratória e com o suporte de uma abordagem teórica mais específica, vêm à tona a dificuldade de se perfazer uma estimativa da presença quantitativa de peruanos e colombianos em Manaus:
De fato, os levantamentos convencionais, como os censos demográficos, a Contagem da População e as PNADS, não parecem se mostrar instrumentos aptos à coleta de informações a respeito deste contingente populacional, o que se atribui, entre outras possíveis causas, à própria fuga à prestação de informações por parte daqueles que se encontram em situação de clandestinidade, sujeitos ao risco de deportação a qualquer momento, dependendo apenas de um descuido (SANTOS, 2001:487)
É muito evidente a dificuldade que as instituições, tanto pastorais quanto oficiais, apresentam em “quantificar” o fluxo migratório dos peruanos na cidade de Manaus. Vários fatores contribuem para inviabilizar esse levantamento numérico. As instituições que atuam diretamente com migração têm seus bancos de dados específicos de acordo com sua finalidade e seu campo de atuação. Todo um contingente de migrantes em situação irregular, os clandestinos, não constam nos dados oficiais, daí a tarefa inglória, ou melhor, impossível de uma estimativa confiável. Por essas limitações, este estudo omite a análise de dados quantitativos para não correr o risco de esbarrar em contradições, considerando que outros fatores qualitativos sejam mais importantes que os numéricos.
A mobilidade humana na tríplice-fronteira no contexto das migrações internacionais
Os ponto de referências e de convergência na tríplice-fronteira são as cidade de Santa Rosa (lado do Peru), Tabatinga (lado do Brasil) e Letícia (Colômbia). São cidades de pequeno porte, perdidas nos confins dos três países. No entanto a cidade de Tabatinga destaca-se como porta de entrada no território brasileiro, para onde direciona o movimento migratório dos outros dois países. Há problemas similares vivenciados pelos três países nessa área específica. O narcotráfico impera em todos com proporções diferentes em cada um. O desemprego e o trabalho informal também são característicos do trio.
Vista a partir do ângulo do movimento migratório, a tríplice-fronteira não é o lugar da permanência de migrantes de nenhum dos países. Funciona apenas como porta de entrada e de saída nos três sentidos. Poucos migrantes se estabelecem nessas cidades. Alguns permanecem por algum tempo, como é o caso dos colombianos na condição de “desplazados”, mas sempre com o intuito de regressar a seu país assim que houver oportunidade. Mesmo estando muito próximos, cada país apresenta uma conjuntura diferenciada nos setores sociais, políticos e econômicos que são determinantes no itinerário migratório. A fronteira do lado brasileiro segue sendo aquela para onde se converge a migração dos outros dois países.
Características da migração peruana na tríplice-fronteira
Para melhor compreender os fatores que deslocam as populações de diversas regiões do Peru para Manaus, é importante identificar as etapas de migração porque passaram esses migrantes dentro de seu próprio país até se estabelecerem.
De forma similar ao que transcorreu no Brasil, no Peru, a migração interna mais acentuada data do início do século XX. A estrutura econômica e social do país foi determinada fortemente por seus antecedentes de uma sociedade que conservou os valores do tipo feudal, mantendo uma espécie de separação entre o branco, a burguesia dominante e os indígenas, e, conseqüentemente, um dualismo cultural: uma cultura da corte ocidental (legado dos colonizadores) e uma outra cultura indígena com uma grande população espalhada por toda a região andina, com uma economia de subsistência, deixados à margem do desenvolvimento do país (PONCE, 1970:65).
Vários fatores podem ser identificados nesse percurso migratório até a fixação de um significativo número de migrantes peruanos na cidade de Manaus – fatores históricos: a influência da cultura na decisão de migrar; fatores geográficos: a idéia de fronteira ou limites geográficos e também os fatores econômicos. No entanto, o sangrento período da ditadura do general Velasco Alvarado[8] destaca-se como um dos elementos que mais interferiu nos processos de migração até os dias atuais:
La situación del Perú está agravándose en el aspecto económico en los últimos años. Pero, antes, tuvimos un tiempo de veinte años de violencia y situación de terrorismo. Hubo mucha migración interna por eso. De diferentes ciudades andinas a la Costa y después a la Selva. La Selva es una región un poco más tranquila para uno escapar de ciertas situaciones de peligro político. En situaciones de violencia, especialmente en tiempo de terrorismo del 1980 hasta 2000, hubo mucha muerte por causas políticas. Mucha gente salió del Perú en búsqueda de una tierra un poquito más tranquila, donde se pudiera vivir y escapar de estas situaciones. Todavía, muchos peruanos que siguen saliendo de Perú hasta hoy día, lo hacen ya terminados sus estudios, con su carrera, con más posibilidades de conseguir trabajo fuera del país. Pero muchos peruanos no tienen la misma posibilidad. Ellos tienen trabajos más simples, poco remunerados, pero no son especialistas, no son profesionales, van a sufrir demasiado en cualquier otro país y en Manaus por supuesto”[9].
Os fluxos migratórios, originados na região da Selva peruana, se deslocaram, num primeiro ciclo, dentro dos próprios limites regionais. Considerando que a distância para a capital limenha era absurda para as possibilidades de traslado das populações, a migração se deu, primeiramente, dos pequenos povoados e aldeias interioranas para as maiores cidades da região tais como Arequipa, Iquitos, Yurimaguas e Pucallpa. Somente num segundo processo migratório é que houve um novo direcionamento desse fluxo, em larga escala para o Chile e para a Amazônia brasileira. A entrada com maior relevância de peruanos em território amazonense se deu a partir de meados da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990[10].
A escolha da cidade de Manaus como alternativa de migração, ou a permanência temporária em outras cidades do interior do Amazonas, no itinerário migratório, na maioria dos casos analisados, deu-se por aquela mesma “ilusão do fausto”, do ideário de crescimento econômico e do pseudo-progresso que fascinou igualmente a tantos migrantes nacionais provenientes de outras Regiões do Brasil.
Um problema muito sério nesse vai-e-vem na tríplice-fronteira é o acesso ilegal de pessoas que entram no país sem documentos. A fiscalização federal de fronteiras é intensa em algumas áreas, porém, considerando a vastidão da Selva Amazônica, é humanamente impossível manter um controle 100% eficaz nessas condições de traslado permanente.
En los años dorados del narcotráfico, muchos peruanos ey colombianos campesinos se metieron con el narcotráfico no por opción pero porque los jefes los obligaron a esto o entonces porque no hubo otras formas de sobrevivir en las zonas de peligro sin meterse con esto. En este ciclo, mucha gente se ha vinculado en este mercado ilegal de drogas, tienen conocimiento de sus facilidades de ganar plata aunque con riesgos terribles principalmente para aquellos que estuvieron vinculados a ser mulas. A parte de esto, hay una práctica de discriminación contra los peruanos por esto histórico. En las cárceles de Tabatinga y de otras ciudades de frontera, casi 95% de los detenidos son personas relacionadas con narcotráfico. Esto generaliza un gran problema para los gobiernos de los tres países[11].
A maioria quantitativa dos migrantes peruanos que vivem em Manaus apresenta algumas características em comum: são originários da Selva Peruana; apresentam um histórico de migração interna no Peru e, não raras vezes, também nos municípios do interior do Estado do Amazonas; não têm qualificação profissional; o nível de estudos é baixo; pertencem a etnias indígenas peruanas; migram com toda a família em busca de qualquer tipo de trabalho e de melhores condições de vida; a média de filhos é em torno de três; se submetem a qualquer situação que lhes proporcione algum ganho para o sustento da família; são muito explorados pelos nacionais que ora o fazem porque sabem que não vão denunciar a situação de exploração no trabalho por causa de sua clandestinidade e ora o fazem porque sabem que são pessoas extremamente dedicadas ao trabalho.
Boa parte dos peruanos que vivem em Manaus em situação de clandestinidade[12] está inserida no mercado informal de trabalho (OLIVEN,1996:26). Sem documentação, não têm carteira assinada e são constantemente explorados pelos nacionais e também pelos próprios conterrâneos que se aproveitam de sua fragilidade para explorá-los de forma descarada[13]. As vítimas de exploração, na maioria dos casos, não denunciam os fatos por medo das autoridades e porque desconhecem os seus direitos e a legislação brasileira que proíbe todo e qualquer tipo de trabalho em condição de escravização ou exploração sumária. Na condição de clandestinidade, as pessoas passam a uma rotina de vida marcada pelo medo constante de serem identificadas pelos agentes de fiscalização da Polícia Federal.
Características da migração colombiana na tríplice-fronteira
Toda a Região conhecida como Alto Solimões faz fronteira com a Colômbia. Em muitos casos, como ocorre entre as cidades de Tabatinga e Letícia, a única demarcação territorial é uma determinada rua[14] que estabelece um limite jurídico e geográfico entre os dois países. No cotidiano das relações, as pessoas passam por esse limite a todo o momento e este não estabelece uma “separação” territorial segundo os moldes jurídicos. Apesar das similaridades, existem diferenças determinantes entre um país e outro mesmo numa fronteira tão convergente. O contexto de migração em que se insere a Colômbia talvez seja um dos marcos determinantes desta diferenciação. É o que informa a diretora da Pastoral Social do Vicariato Apostólico de Letícia, Nelcy Jaimes Grimaldos:
El Departamento del Amazonas se ha venido desarrollando a través de unas mal llamadas “bonanzas”, que determinaron la actual realidad social que viven sus habitantes. En su orden fueron las caucherías, las maderas, la pieles, el narcotráfico y la politiquería. Las dos últimas han sido las que han llevado y continúan marcando la pauta para el deterioro de la sociedad y la quiebra económica de la Región; a pesar de esfuerzos, que se realizan para enmendar la situación. Actualmente campean problemas como, la drogadicción, desempleo, prostitución; hacinamiento, enfermedades crónicas y de transmisión sexual, desnutrición, violencia intra familiar, pérdida de identidad cultural, desplazamiento de indígenas hacia Leticia, igualmente el desplazamiento de familias provenientes especialmente del vecino país Perú y el de familias del interior de nuestro país en situación de desplazamiento forzado, como consecuencia del conflicto armado Colombiano[15].
Quando se localiza a Amazônia em específico, há muitas similaridades latentes e outras que só se configuram no imaginário de pessoas ou grupos. O fato de o Estado estar na Fronteira entre os dois países, dá a idéia de uma proximidade que poderia ir além da posição geográfica. Entretanto, a mesma floresta que cobre parte da Selva Peruana e Colombiana e se configura na grande Floresta Amazônica, quando se depara com o estado brasileiro já esconde, no seu interior, diversos grupos e etnias que não são os mesmos que vivem “do outro lado” da fronteira geopolítica, com algumas exceções de povos que vivem sobrepostos às fronteiras como é o caso do Povo Tikuna. Os mesmos grandes rios que nascem no Peru e baixam para a Amazônia brasileira, não banham os dois países na mesma proporção. Uma, é a realidade entrecortada por suas águas no Peru e outra, muito diferente, é a realidade das cidades, vilas, aldeias e povoados banhados pelas mesmas águas do “lado de cá”. O mesmo poderia ser dito do grande Rio Solimões que divisa o Brasil da Colômbia.
O contexto migratório no qual a Colômbia se insere é muito diferente do que ocorre no Brasil e no Peru. Conforme relata Grimaldos:
En las diferentes formas de Movilidad Humana que se dieron en esta frontera tripartita; siendo los Gobiernos de las tres Naciones los directos responsables por el abandono que tradicionalmente han sometido a los pueblos de fronteras. Ayudados históricamente por los Países “Desarrollados” con su política capitalista. Actualmente los problemas sociales se multiplicaron por la explosión demográfica sin planificación; falta de políticas que garanticen la permanencia digna de los moradores rurales en sus tierras; al igual que la ausencia de planes, programas y proyectos para hacer frente a la actual situación.
Na Colômbia, os problemas sociais e econômicos que, em definitivo são os grandes promotores da migração compulsória, se agregam aos problemas da violência estabelecida pelo narcotráfico, que vem promovendo o “desplazamento” de milhares de colombianos nas últimas décadas. Diferentemente da categoria de refugiados, os “desplazados” pela violência vivem os horrores da fuga desesperada para escapar da morte e das ameaças constantes nos territórios dominados pelos narcotraficantes em constante conflito, ora com o exército nacional, ora com os paramilitares, ora com os guerrilheiros. Em meio ao “tiroteio instituído”, se encontram milhares de famílias que, ou sedem aos apelos dos ditames estabelecidos, ou pegam nas armas e tomam partido, ou fogem deixando suas terras, vilas e cidades em busca de garantia de sobrevivência, como é apontado por Grimaldos:
Os “desplazados” determinam uma categoria migratória peculiar. Estão sempre na condição do provisório. Almejam ardentemente regressar a suas casas, mas são impedidos porque os conflitos permanecem acirrados[16]. Muitos adentram nas fronteiras brasileiras. Na Região Amazônica não existe ainda nenhum suporte para migrantes nesta condição de “desplazados”. Trata-se de um desafio muito grande. Seria uma questão de governos mais que de instituições que atendem migrantes:
Al ser empujados los grupos armados adentran hacia la frontera con Brasil. Aquí en Leticia ha crecido mucho la población de desplazados que intentan entrar en Brasil. Bajan por el río Caquetá y por el río Putumayo, existen la bonanza de la politiquería en Leticia, Leticia se ha convertido en una ciudad receptora (Grimaldos, 2005).
Trata-se, acima de tudo, de um problema eminentemente político. Por outro lado, o governo brasileiro também não apresenta nenhuma garantia de permanência para essa categoria migratória. São tratados como todas as demais categorias. E o fato de serem colombianos já os coloca numa situação muito fragilizada pelo fato de que, do lado brasileiro, quem lida com os migrantes é a mesma Polícia Federal encarregada de caçar e prender os traficantes que, categoricamente, são classificados como “colombianos”. Desta forma, o simples fato de ser de nacionalidade colombiana, já se torna um empecilho para uma possível permanência ou estada no território brasileiro. São tratados com estrema diferenciação e, na maioria das vezes, caçados e rechaçados de volta a Colômbia.
Na tríplice-fronteira, quando o peruano ou o colombiano adentra ao condado brasileiro, as barreiras restritivas se estabelecem e já começam a demarcar os territórios. Logo de cara, o peruano em situação de migração, ou o colombiano em situação de “desplazamento” já se depara com a política de migração estabelecida pelo Estado Nacional Brasileiro que contradiz todos os tratados da chamada “política da boa vizinhança” a começar pela exigência do visto de permissão de entrada no país vizinho. Como já foi dito a política migratória vigente no Brasil nos últimos vinte anos, apresenta-se como uma política altamente restritiva e discriminatória porque privilegia uma minoria de imigrantes especializados em detrimento de uma grande maioria menos qualificada. Já na travessia o migrante constata que a cidadania sonhada em outro país esbarra com aquela que lhe é concedida pelas políticas migratórias estabelecidas.
Outra restrição evidente na tríplice-fronteira que estabelece uma diferenciação sumária em relação aos outros dois países é estabelecida pela língua falada. O Brasil é o único país da tríplice fronteira onde não se fala o espanhol. Esse “pequeno detalhe” tem sido, ao longo dos anos e dos ciclos migratórios um fator determinante que dificulta e até mesmo inviabiliza a entrada de migrantes hispano-americanos no Brasil. Muitos peruanos e colombianos, afirmaram nas entrevistas realizadas ao longo deste estudo, que o entrave da língua retardou a decisão de tentar a vida no Brasil por muitos anos. Antes de vir para cá, quiseram tentar a vida em outros países hispano-americanos e só depois de se esgotarem as possibilidades, é que optaram pelo Brasil. Apesar da similaridade entre as duas línguas faladas, as diferenças semânticas são muito profundas e requerem uma dedicação desmedida para a sua fluência.
Se por um lado, no âmbito do jurídico e do econômico, os imigrantes hispano-americanos sofrem o cerceamento de direitos, em razão da condição liminar em que vivem, por outro eles procuram ser sujeitos de sua própria reprodução cultural, conquistando espaços na sociedade local. Tais espaços são vitais para desencadear o processo de reconstrução de identidades, na medida em que o grupo torna-se mais visível e, conseqüentemente, os conflitos com os brasileiros também começam a emergir (SILVA, 2001:496).
A realidade vivida pelos migrantes peruanos e colombianos no Amazonas, denuncia as várias lacunas da política de migração brasileira com suas leis arcaicas calcadas nos interesses puramente econômicos e comerciais que nunca esteve aberta à migração de hispano-americanos.
A contagem populacional deste contingente migratório, adentrando diariamente nas fronteiras brasileiras, se faz necessária porque determinaria um conjunto de medidas a serem tomadas pelos três governos que mantém tratados comerciais em larga escala, mas não apresentam uma política comum de migração estrangeira.
A concentração da migração na cidade de Manaus se apresenta como um sintoma dos problemas de uma conjuntura mais ampla que, por falta de alternativas viáveis, pela inoperância das políticas públicas do Governo, pela ausência completa do Estado na busca de soluções e saídas para os problemas sociais e inúmeras outras lacunas, terminam desembocando no movimento migratório. O crescimento populacional da cidade de Manaus, nas últimas décadas, é apenas a ponta de um iceberg que esconde uma realidade migratória muito maior que extrapola os elementos desta análise.
Breves conclusões ou “provocações”
Ao finalizar este trabalho, vale ressaltar que um dos documentos de conclusão do Fórum Social das Américas[17] mais precisamente a mesa que se encarregou da discussão sobre as migrações, apresentou os seguintes destaques: é inaceitável reduzir o direito à cidadania a uma circunscrição geográfica; é necessário denunciar a comercialização das migrações; é imprescindível a urgência de se construir uma cidadania latino-americana e uma anistia migratória geral; é inaceitável que os Estados, por um lado privilegiem os migrantes mais qualificados, e por outro, fechem os olhos diante da migração clandestina com todas as suas conseqüências; é necessário reconhecer o direito de migrar em busca de melhores condições de vida; a regularização legal, não pode contemplar somente os interesses nacionais, mas também o bem-estar de todas as pessoas, em especial dos migrantes; os migrantes são sinais de potencialidade. Eles são sujeitos que podem formular mudanças sociais profundas porque desestabilizam a ordem pré-estipulada, apontando para a urgência de justiça social no mundo.
Por outro lado, os governos latino-americanos parecem não querer admitir que a mobilidade humana na América Latina se configura como um sério problema social com agravantes econômicos e políticos. A complexidade da realidade leva os dirigentes a tratar a situação com medidas de emergência ou com paliativos provisórios, como é o caso da assinatura temporária dos tratados de amizade entre os países limítrofes; as interferências direcionadas a situações particulares como é o caso das rotas do tráfico de trabalhadores ou o tráfico internacional de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial que permeiam toda a Amazônia (LEAL, 2002). Não é possível continuar tratando essa realidade sem estabelecer políticas migratórias sérias e eficazes.
Para finalizar, vale ressaltar que esse tipo de discussão precisa ter continuidade. Todas essas abordagens preliminares, sobre a mobilidade humana na tríplice-fronteira, revelaram que a arte de aceitar, acolher e conviver com o outro, o diferente, o “estrangeiro”, sempre será um grande desafio. Mas esta é uma tarefa necessária de ser realizada, todos os dias, em nossas relações cotidianas e nas estruturas das sociedades que, sempre se enriquecem econômica, cultural, social e politicamente, com a presença incômoda, provocadora e inovadora dos migrantes.
OBRAS CONSULTADAS
BASSEGIO, Luiz. “As Migrações no Contexto da Globalização”. In: Migração, discriminação e alternativas. Serviço Pastoral dos Migrantes – (apresentação André de Witte). São Paulo: Paulinas, 2004.
Consejo Episcopal Latinoamericano, CELAM; Secretariado de Pastoral de la Movilidad Humana, SEPMOV. La Movilidad Humana em América Latina y el Caribe – guía Pastoral. Bogotá, Colômbia, 2003.
GEORGE, Pierre. As migrações internacionais. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.
HEIDMANN, Dieter. “Os Migrantes e a crise da sociedade do Trabalho: humilhação secundária, resistência e emancipação” In: Migração, discriminação e alternativas. Serviço Pastoral dos Migrantes – (apresent. André de Witte). São Paulo: Paulinas, 2004.
MILESI, Rosita. et al. “Entidades Confessionais que Atuam com Estrangeiros no Brasil e com Brasileiros no Exterior”. In: Migrações internacionais: Contribuições para Políticas. Brasília: CNPD, 2001.
MOLINA, Lucrecia. Conferência Mundial contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e a intolerância correlata. São José da Costa Rica:Instituto Interamericano de Direitos Humanos, 2001.
NETO, Helion Povoa. “Rejeição e criminalização das migrações na nova ordem internacional após o 11 de setembro”. In: Migração, discriminação e alternativas. Serviço Pastoral dos Migrantes – (apresent. André de Witte). São Paulo: Paulinas, 2004.
OLIVEIRA, José Ademir de. A cidade doce e dura em excesso. Manaus: Valer / Governo do Estado do Amazonas / EDUA – Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003.
OLIVEN, Ruben George. A Antropologia de grupos urbanos. Petrópolis: Vozes, 1996.
SANTOS, Carlos Augusto dos; BRASIL, Marília C.; MOURA, Hélio A. “Persona Non Gratae? – A imigração indocumentada no Estado do amazonas”. In.: Migrações internacionais: Contribuições para Políticas – Brasil 2000. Brasília: CNPD, 2001.
SILVA, Sydney A. da. “Hispano-americanos no Brasil: entre a cidadania sonhada e a concedida”.In: Migrações internacionais: Contribuições para Políticas – Brasil 2000. Brasília: CNPD, 2001.
SPRANDEL, Márcia. O Parlamento e as Migrações Internacionais. In: Migrações internacionais: Contribuições para Políticas – Brasil 2000. Brasília: CNPD, 2001.
VAINER, Carlos B. “Deslocados, reassentados, clandestinos, exilados, refugiados, indocumentados… as novas categorias de uma sociologia dos deslocamentos compulsórios e das restrições migratórias”. Migrações internacionais: Contribuições para Políticas – Brasil 2000. Brasília: CNPD, 2001.
[1] * Márcia Maria de Oliveira – socióloga, pertence ao quadro de pesquisadores do Diretório de Estudos e Pesquisas sobre Migração, Identidade, Cultura e Xenofobia – DEPMICX do núcleo de antropologia do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas – UFAM e é mestranda do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura no Amazonas – UFAM. Faz parte da equipe de coordenação colegiada do Serviço de Ação, Reflexão e Educação Social – SARES, coordenando a escola de formação sócio-política da instituição.
[2] Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e os Itinerantes: Nota Introdutória das Separatas dos discursos do Santo Padre e das declarações da Santa Sé sobre os refugiados e os deslocados (de 01 de Fevereiro de 2002 à 31 de Janeiro de 2003)
[3] Dom Demétrio Valentini, bispo de Jales e presidente do SPM – Serviço Pastoral dos Migrantes: carta pastoral elaborada para o encarte dos escritos para a 19ª Semana Nacional dos Migrantes – junho/2004.
[4] Conforme o posicionamento da Comissão Nacional de Direitos Humanos em janeiro de 2004 no decorrer do traslado de cerca de mil brasileiros deportados dos Estados Unidos.
[5]Trata-se de uma instituição pastoral ligada ao Serviço Pastoral dos Migrantes que é um dos setores das Pastorais Sociais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. O SPM Manaus atua no atendimento diário aos migrantes nacionais e estrangeiros, acompanhando sua problemática, agilizando situações emergenciais (alojamento, tratamento de saúde, localização de parentes ou amigos, formação de lideranças para atuarem na atividade pastoral, orientação para os estrangeiros quanto à sua documentação e estada legal no país, etc.).
[6] Conforme a Lei Nº 6.815, de 19 de Agosto de 1980 – Art. 4º Ao estrangeiro que pretenda entrar no território nacional poderá ser concedido visto: I – de trânsito; II – de turista; III – temporário; IV – permanente; V – de cortesia; VI – oficial; e VII – diplomático.
Parágrafo único. O visto é individual e sua concessão poderá estender-se a dependentes legais, observado o disposto no artigo 7º; Art. 5º Serão fixados em regulamento os requisitos para a obtenção dos vistos de entrada previstos nesta Lei.
[7] Conforme a Lei Nº 6.815, de 19 de Agosto de 1980 – Art. 113. O prazo de residência fixado no artigo 112, item III, poderá ser reduzido se o naturalizando preencher quaisquer das seguintes condições: (Renumerado pela Lei nº 6.964, de 09/12/81)
[8] O golpe militar de 03 de outubro de 1968. Uma vez instaurada a longa ditadura militar que seguiu até 29 de agosto de 1975, o país começara um dos períodos mais sangrentos de sua história.
[9] Depoimento do Mons. Alberto Campos Hernandez, OFM, bispo do Vicariato San José del Amazonas – Perú, concedido no dia 07/10/2004, por ocasião da realização da 1ª Conferência Episcopal dos países Amazônicos realizada em Manaus de 06 a 10 de outubro de 2004.
[10] A maioria dos migrantes entrevistados nesta investigação declararam que sua entrada em território da Amazônia brasileira se deu há menos de 10 anos. A década de 1990 aponta o maior número de entradas nos arquivos da sede local do Serviço Pastoral dos Migrantes da Arquidiocese de Manaus.
[11] Depoimento de Fernando López coordenador da equipe itinerante “Três fronteiras” que acompanha a problemática na tríplice fronteira: Brasil, Peru e Colômbia. concedido no dia 07/10/2004, por ocasião da realização da 1ª Conferência Episcopal dos países Amazônicos realizada em Manaus de 06 a 10 de outubro de 2004.
[12]Há casos de peruanos que vivem em Manaus desde inícios da década de 1980 e nunca conseguiram legalizar sua situação.
[13] No atendimento jurídico do SPM, há uma equipe que conta com auxílio de advogados(as) encarregada de orientar os migrantes sobre seus direitos e acompanhar os processos no Ministério do Trabalho. As denúncias quase sempre são de exploração do trabalho dos migrantes clandestinos que temem entrar com processo jurídico e serem automaticamente entregues à Polícia Federal.
[14] A Rua da Amizade do lado brasileiro; Calle de la amistad do lado colombiano. É a avenida principal das duas cidades que liga os dois países de uma maneira muito natural.
[15] Conclusiones del 1o Encuentro de Pastoral de la Movilidad Humana en la triple frontera Perú-Colombia-Brasil (realizado em Tabatinga / AM nos dias 25-26/02/2005).
[16] Como demonstra o quadro apresentado por Grimaldos:
EVENTO |
ACTORES |
CAUSAS |
CONSECUENCIAS |
TENDENCIAS |
cultivos ilícitos y conflicto armado |
guerrillas, auc narcotraficantes colonos, indígenas |
abandono estatal, perdida de valores culturales presión grupos armados, presión consumidores |
narcotráfico enriquecimiento ilícito de pocos, muertos, drogadicción, prostitución violencia intrafamiliar |
contaminación ambiental, trafico de estupefacientes desplazamiento forzado, repliego de grupos armados, desplazamiento hacia las cabeceras urbanas, especialmente hacia Leticia, hacinamiento perdida de identidad cultural |
Corrupción politiquera |
instituciones publicas |
procesos de desarrollo secuelas del narcotráfico y politiquería |
mal gasto del recurso publico pobreza conflicto para la convivencia pacifica violencia intrafamiliar, desempleo, inseguridad alimentar, madres cabeza |
empobrecimiento acelerado, feminización de la pobreza, dependencia y mendicidad, hacinamiento, desnutrición crónica desempleo, perdida de identidad cultural, desintegración del núcleo familiar |
[17] Ciudad de Quito – Equador: 24 de junho de 2004. O Fórum reuniu várias entidades relacionadas com várias temáticas sociais, dentre elas, as migrações.