O anteprojeto de Lei é, sem dúvida, um primeiro passo, valioso, para a elaboração de uma Lei que responda aos desafios da migração internacional, no respeito aos direitos humanos, ao direito humanitário, à dignidade inalienável de cada ser humano. Ele traz avanços e contempla situações que, de há muito vinham sendo pleiteadas pelos migrantes e pelas nossas organizações que com eles atuam. Mas tem, também, lacunas, limitações, distorções.
Rosita Milesi
rosita@migrante.org.br
O anteprojeto de Lei é, sem dúvida, um primeiro passo, valioso, para a elaboração de uma Lei que responda aos desafios da migração internacional, no respeito aos direitos humanos, ao direito humanitário, à dignidade inalienável de cada ser humano. Ele traz avanços e contempla situações que, de há muito vinham sendo pleiteadas pelos migrantes e pelas nossas organizações que com eles atuam. Mas tem, também, lacunas, limitações, distorções.
Submetido que foi, durante o mês de setembro, à análise crítica da sociedade, recebeu, por parte de um Grupo de Trabalho que constituímos em Brasília (integrado por mais de 15 instituições) muitas sugestões, propostas, reflexões, e, sobretudo, o destaque da alguns princípios a serem considerados na elaboração do proposta legislativa a ser encaminhada ao Congresso Nacional.
Entendemos que as reformulações e modificações do anteprojeto deveriam ser norteadas por alguns princípios básicos que constituiriam um pano de fundo e o espírito de toda a futura Lei.
1) O título de uma lei, como o nome das pessoas, e mesmo das coisas, traz uma postura filosófica, uma identidade, um sentido. A palavra “estrangeiro” (Lei de Estrangeiros) reforça o conceito de alienação, de estranheza em relação à população não nascida em território nacional. A sugestão de trabalharmos por uma Lei de Migração e Naturalização foi uma proposta de aceitação unânime entre os participantes do Grupo de Trabalho;
2) Tutela e promoção dos Direitos Humanos dos Migrantes. Embora haja referências aos direitos em diferentes partes do anteprojeto – o que representa um avanço em relação à Lei vigente – nossa sugestão é que o tema dos direitos fundamentais se torne o eixo norteador de toda a Nova lei de Migração. Propomos, pois, que se introduza no anteprojeto uma parte inicial, situando que a abordagem de fundo, norteadora da postura do Estado brasileiro é a dignidade humana a ser respeitada em todo o ser humano migrante, para, depois, ao longo do texto, aprofundar e especificar os diferentes aspectos a serem protegidos. Essas afirmações, distinguindo e dando primazia à dignidade e aos direitos humanos, são um valor fundamental para os migrantes que chegam, para a causa migratória e se tornam, também, significativas numa época em que muitos brasileiros e brasileiras, que vivem no exterior, sofrem hediondas violações e lutam diariamente para serem reconhecidos em sua dignidade de seres humanos. (Destacamos a aplicabilidade integral do Estatuto da Criança e do Adolescente a todas as crianças e adolescentes residentes no País, independentemente da condição migratória, seja delas , seja dos pais).
3) Valorização da presença dos imigrantes no Brasil. O Brasil é um país cuja história e cultura foram moldadas pelas contribuições de diferentes povos que chegaram em nossas terras, voluntária ou forçosamente. Todos eles, de diferentes maneiras, contribuíram para enriquecer a identidade do nosso país. Por fidelidade a esta nossa história e porque com ela muito aprendemos, é fundamental que a nova Lei aborde a chegada e a presença do migrante menos como um perigo e uma ameaça que como uma riqueza, uma oportunidade, uma chance de crescimento e aperfeiçoamento social, econômico, cultural, político e religioso, tanto para a população brasileira quanto para os imigrantes. Diante do crescimento, em nível planetário, de atitudes xenófobas, etnocêntricas e nacionalistas, sobretudo em relação aos migrantes em situação irregulares, frequentemente estereotipados e criminalizados, o Brasil, com essa nova Lei, tem a possibilidade se tornar um referencial de abertura, acolhida, diálogo e promoção construtiva da presença dos imigrantes.
4) Superação de enfoques economicistas ou seletivos. Nos últimos anos, diferentes relatórios de organismos multilaterais ressaltaram o papel que as migrações internacionais podem assumir para o desenvolvimento dos povos. São aprofundados temas como as remessas, a circulação de mão-de-obra qualificada, o intercâmbio de conhecimentos e tecnologias. Não subestimamos, nem queremos minimizar a importância destes temas. Consideramos, contudo, que uma Lei de Migrações preocupada com os direitos humanos e a dignidade dos imigrantes é chamada a superar um enfoque que possa representar priorização da dimensão econômica ou de categorias de pessoas – migração seletiva -, sobretudo quando isso pode prejudicar, senão discriminar, os imigrantes “não altamente qualificados ou investidores”, isto é, os pobres e com níveis de instrução mais modestos, aqueles que, como muitos brasileiros e brasileiras, saem do próprio país em busca de condições para construir sua vida na simplicidade de um trabalho humilde, mas lícito e digno.
5) Criação de espaços de diálogo e interlocução, no respeito às liberdades fundamentais. Pressupostos da valorização do migrante são a promoção e o favorecimento do processo integrativo, em todas as suas dimensões – psicológica, cultural, social, administrativa e burocrática -, e, ao mesmo tempo, a criação de espaços que permitam ao imigrante desenvolver suas capacidades e a riqueza de seus aportes. Só nessas condições ele terá a possibilidade de contribuir para o enriquecimento da comunidade e do País. Para isso é essencial que lhe sejam reconhecidas as liberdades fundamentais, como a liberdade de consciência e de religião, bem como a livre expressão de seus pensamentos políticos e ideológicos. Seria uma grave violação da dignidade humana dos imigrantes não reconhecer esses direitos inalienáveis, seja qual for a razão ou a justificativa.
6) Postura de atenção a Situações Humanitárias e de solidariedade: A sociedade e suas relações, as particularidades da vida do ser humano e as condições naturais se encarregam de gerar situações imprevisíveis, inesperadas, mas não a ponto de tornar impossível a tarefa de estabelecer disposições legais para regular as situações e condições que delas decorrem. O anteprojeto procurou avançar em outras circunstâncias, mas percebemos que, especificamente nesta área humanitária, há vazios a serem considerados e para os quais há que se prever soluções legais:
– menores de 18 anos, desacompanhados dos pais ou sem autorização expressa, que possam chegar às fronteiras em função de conflitos, guerras ou mesmo catástrofes naturais. É uma situação extraordinária que, se não for melhor esclarecida pode implicar no impedimento de entrada de menores (talvez em condições de refúgio), colocando em risco sua vida.
– Referimos, também, o caso de pais estrangeiros que, tendo um filho brasileiro, por descuido ou falta de condições, não promovem, de imediato, o processo de permanência; passados alguns anos, o filho venha a falecer; pelo espírito frio da lei, extingue-se, para estes pais, o direito de obterem a permanência no Brasil, pois já não existe a condição de dependência econômica do filho ou filha brasileira.
– Podemos citar, ainda, casos de estrangeiros que, após anos de casamento, são abandonados pelo cônjuge brasileiro ou brasileira, sem darem-lhe causa. São vítimas na separação. Se acaso durante a vigência do casamento não realizaram o processo de permanência, ainda que o casamento tenha perdurado por anos, com a separação, extingue-se para o cônjuge estrangeiro o direito de promovê-la, devendo, pela legislação vigente, deixar o País onde já estabeleceu todos os seus vínculos e relações.
– Destacamos, nesta ótima humanitária, também o caso de pessoas que buscam o abrigo do instituto do refúgio, mas que, por uma razão ou outra, já não podem ou não é o caso de serem contempladas com esta proteção. Entre estes, há casos em que, do ponto de vista humanitário, se revela evidente e notório não ser possível promover uma deportação. Seria inaceitável para qualquer consciência.
– Há, ainda, as emergências em função de catástrofes naturais ou calamidades que demandam a acolhida em uma solução legal, temporária ou permanente, por razões humanitárias e de solidariedade.
A nova lei deveria prever, em tese, alternativas para circunstâncias como as aqui citadas e outras de caráter humanitário. Sabemos que o anteprojeto deixa abertura ao Conselho Nacional de Migração, para decidir e fixar situações tanto para visto temporário quanto permanente, mas entendemos que o princípio de que o Brasil se coloca numa postura de país sensível e aberto à proteção humanitária e solidária, assegurando o espaço de apreciação e decisão destas questões deve ser claro e explícito na Lei.
7) Denúncia e punição de todo o crime contra os estrangeiros. A nova Lei é chamada a tomar posição contra toda forma de exploração, discriminação (particularmente na dimensão racial) ou qualquer outro crime perpetrado contra os estrangeiros, apresentando esta postura do Estado já em seus princípios norteadores. Cabe, aqui, um destaque para as vítimas de tráfico de seres humanos, cuja saúde e integridade psicofísica devem ser cuidadosamente promovidas e tuteladas. O anteprojeto trata rapidamente o tema (art. 144), mas não incorpora, ou não está suficientemente explícito, um dos principais objetivos dos Protocolos (contra o tráfico de Migrantes por Terra, Ar e Mar e Protocolo para prevenir, Suprimir e Punir Tráfico de Pessoas), que é o de proteger e assistir as vítimas, segundo os princípios dos direitos humanos. Isto se traduz na proteção da identidade, no anonimato das vítimas, na assistência legal (com acesso a informações em seu próprio idioma), recuperação física, psicológica e social, garantia de segurança física, entre outros. É fundamental assegurar, nesses casos, que não sejam criminalizados aqueles e aquelas que são vítimas de poderosas redes, contra as quais, a luta mal começou.
8) Um aspecto que é quase uma particularidade, mas que desejamos ressaltar como princípio é a proteção aos trabalhadores migrantes, com garantia de proteção aos seus direitos como trabalhadores em vários aspectos, sobretudo no que se trata aos direitos humanos, à informação, à própria cultura, ao acesso à justiça, e outros, independentemente de encontrar-se em situação regular ou não. Neste âmbito dos direitos dos trabalhadores se insere, também a possibilidade do estrangeiro de participar da administração ou representação de sindicato ou associação profissional. Entendemos que vedar esta possibilidade é incompatível com o direito de livre associação e organização sindical. O art. 8º do Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais[1] fala sobre o direito de qualquer pessoa de formar e aderir a sindicatos de sua escolha. Igualmente, os Convênios da OIT sobre a matéria – Convenção 87, 98 (liberdade de organização sindical), 135 (sobre representantes dos trabalhadores) em nenhum momento prevêem a exclusão dos estrangeiros dos sindicatos nos países onde residem e trabalham. O direito de livre organização é garantido por sua condição de trabalhadores e não está vinculado à nacionalidade.
9) Compromisso com os Brasileiros e Brasileiras no Exterior: merece ser contemplada como um compromisso do Estado a atenção a estes que já são, segundo estimativas, mais de 3 milhões. Trata-se de traçar princípios(não é o caso de particularidades) que devem nortear a política de proteção dos emigrantes e suas famílias, a garantia de direitos fundamentais aos brasileiros residentes em territórios estrangeiros (acordos bilaterais ou multilaterais e ratificação de Convenções), do direito de retorno, da garantia de condições de exercídio dos direitos políticos, dos contatos com seus familiares, das questões de repatriação, da disponibilização de serviços de efetiva assistência jurídica e recursos para isto, assim como o amparo às famílias dos emigrantes e sua reunificação no território brasileiro.
10) A Cidadania Universal intrínseca a todo o ser humano.Encoraja-nos contribuir para que o anteprojeto avance na perspectiva de uma lei que se propõe a assegurar os direitos de cidadania universal dos migrantes, configurada no conjunto de direitos inalienáveis, intrínsecos a todo o ser humano, cujo respeito e proteção não podem variar por que a pessoa nasceu aqui ou ali, ou porque é portadora desta ou daquela nacionalidade. São o patamar da dignidade humana que ninguém e nenhum país tem o direito de violar ou subestimar. Reagimos com indignação e lamentamos o avanço, no mundo atual, de legislações xenófobas e atitudes abomináveis, pelo conteúdo e forma com que tratam os migrantes. Por outro lado, constata-se também que há espaço para legislações exemplares. Seja, pois, um princípio central deste proceso de elaboração do anteprojeto a composição de um conteúdo capaz de legar à causa migratória e ao migrantes uma herança legislativa coerente com os princípios do respeito integral à pessoa do migrante, enfatizando o aspecto central dos direitos humanos e a dimensão da cidadania universal.
Desejo encerrar esta parte, citando o Sr. Antonio Guterres (Alto Comissário da ONU para Refugiados), que há poucos dias, em seu discurso de encerramento da 56ª ExCom[2] dizia: “Há diferenças de opinião e até a expressão de legítimas contradições. Mas, tudo em espírito construtivo, sim, o espírito construtivo que é a chave para o sucesso quando lidamos com questões substantivas e complexas, visando a um consenso significativo e não a um denominador comum insignificante”.
O que nos une é uma causa, em função da qual estamos num processo de construção coletiva, onde o debate vem se estabelecendo, norteado pela vontade de proteger, de assegurar a defesa de direitos e o estabelecimento de normas de convivência, na convicção, como diz Guterres, de que a todos seja assegurado o direito de ter um lugar que elas ou eles, mulheres ou homens, chamam de lar ou de Pátria.
Brasília, 18.10.2005
[1] Art. 8o – 1. Os estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir: a) O direito de toda pessoa de fundar com outras sindicatos e de filiar-se ao sindicato de sua escolha, sujeitando-se unicamente aos estatutos da organização interessada, com o objetivo de promover e de proteger seus interesses econômicos e sociais. O exercício desse direito só poderá ser objeto das restrições previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades alheias; c) O direito dos sindicatos de exercer livremente suas atividades, sem quaisquer limitações além daquelas previstas em lei e que sejam necessárias, em uma sociedade democrática, ao interesse da segurança nacional ou da ordem pública ou para proteger os direitos e as liberdades das demais pessoas;
[2] Sessão do Comitê Executivo do Programa do alto-comissário das Nações Unidas para Refugiados, Genebra, 07out05.