Mulheres migrantes e refugiadas a serviço do desenvolvimento humano dos outros

Gráfico 1

 Escrito por Rosita Milesi e Roberto Marinucci

 

Migram as mulheres no mundo contemporâneo: vendidas como escravas ou fugindo de desastres naturais ou de violência; em busca de renda para o sustento de seus familiares ou à procura de maior autonomia. Migram as mulheres em travessias em que os sonhos e os pesadelos se entrelaçam, em que a vontade de sair se coaduna com o desejo do retorno. A migração, assim, se torna, não raramente, uma experiência de fragmentação, onde nem sempre o coração acompanha os caminhos dos pés. Envolvidas no âmbito produtivo, do trabalho externo, elas raramente abandonam a responsabilidade pelo âmbito reprodutivo, mesmo se, em muitos casos, de forma transnacional, mediante o envio de remessas. Elas assumem, em corpo e alma, o compromisso pelo bem estar – leia-se desenvolvimento humano – não apenas de seus familiares, mas também daqueles de quem cuidam, sobretudo quando envolvidas no âmbito produtivo em trabalhos de cuidado doméstico, enfermagem ou de cuidadoras de crianças. Mas quem cuida do bem estar dessas mulheres migrantes e refugiadas? Qual é o preço que elas pagam para cuidar dos outros? Em outros termos, a pergunta não é apenas se a mulher migrante contribui para o desenvolvimento, mas também se o processo contemporâneo de desenvolvimento contribui para o bem estar – ou desenvolvimento humano – da mulher migrante e refugiada.

Para tratar desta questão dividimos o presente trabalho em três partes: na primeira buscamos refletir sobre a noção contemporânea de feminização das migrações, buscando analisar as diferentes acepções dessa expressão; na segunda será aprofundado, de forma sucinta, o conceito de “desenvolvimento”; finalmente, a última parte abordará o nexo entre migração e desenvolvimento humano a partir de três eixos: o espaço produtivo, o espaço reprodutivo e o espaço público. Nossa visão de fundo é a de que a mulher migrante e refugiada, em geral, contribui muito para o desenvolvimento humano das pessoas ao seu entorno, mas nem sempre isso vem acompanhado de um processo de empoderamento ou desenvolvimento humano da própria mulher.

 

1. “Feminização” das Migrações

A literatura específica sobre migrações internacionais, nos últimos anos, tem destacado o crescimento da migração feminina. Com a expressão “feminização das migrações”, em geral, costuma-se identificar três fenômenos: o aumento quantitativo das mulheres migrantes, a mudança do perfil e a maior visibilidade do universo feminino no âmbito migratório.

No que diz respeito à primeira questão, os últimos dados da ONU, referentes a 2013, revelam que as mulheres representam 48% do total de migrantes internacionais (ver gráfico 1). A porcentagem, na realidade, diminuiu um pouco em relação aos anos anteriores, mas devem ser levadas em conta importantes diversidades regionais. Assim, por exemplo, na Europa, América Latina e Caribe, América do Norte e Oceania, as mulheres representam mais da metade dos migrantes internacionais, enquanto o número é inferior na África e, sobretudo, na Ásia (gráfico 2). Há alguns vários fatores a serem considerados. Em relação à Ásia, a região mais populosa do mundo, a baixa porcentagem de mulheres migrantes é devida, principalmente, ao intenso fluxo de homens migrantes para a região do Golfo Pérsico (na Ásia ocidental, a porcentagem total de mulheres migrantes em relação ao total é apenas de 34,3%). Além disso, existem estruturas e hierarquias patriarcais que tanto em países da Ásia quanto da África dificultam a migração feminina (PARELLA RUBIO, 2003).

Gráfico 1

Gráfico 2

Em termos gerais, diferentes variáveis podem interferir nesses fluxos migratórios femininos: as demandas do mercado de trabalho, as leis imigratórias, a formação de redes migratórias, as migrações forçadas e, inclusive, as estruturações de gênero e características culturais tanto nos países de chegada, quanto naqueles de saída. De forma mais concreta, a reunificação familiar, a crescente demanda do mercado de trabalho doméstico, além da busca por emancipação de estruturas patriarcais podem representar variáveis importantes na configuração dos fluxos femininos.

Essas ponderações nos levam para o segundo sentido da expressão feminização das migrações: a mudança do perfil da mulher migrante. Se, no passado, mães, filhas ou irmãs costumavam acompanhar ou se reunir aos homens que viajavam para o exterior e lá permaneciam, hoje, cresce cada vez mais o número de mulheres com um projeto migratório individual, que se deslocam por razões de trabalho, não raramente como principais provedoras do lar. Essa nova tipologia de migração feminina, por vezes, é consequência da emancipação alcançada pelas mulheres nas últimas décadas; já em outros casos, o deslocamento geográfico visa, justamente, essa emancipação. A migração, portanto, pode ser sinal ou instrumento de empoderamento por parte da mulher. Mas nem sempre isso é verdadeiro. Com frequência, as mulheres, embora migrem sozinhas, carregam um projeto migratório familiar: elas devem sustentar os familiares com suas remessas. A incorporação no espaço produtivo, portanto, não elimina a responsabilidade em relação àquele reprodutivo. Essa responsabilidade as coloca em uma situação de maior vulnerabilidade e, não raramente, as obriga a aceitar duras condições de trabalho e tolerar violações hediondas dos próprios direitos, para garantir as remessas.  Em resumo, não há dúvida de que mudou o perfil da mulher migrante, embora essa mudança nem sempre represente uma melhoria em termos de autonomia e respeito dos direitos fundamentais.

Finalmente, é importante enfatizar que a feminização das migrações é produto também de uma maior visibilidade da mulher no contexto contemporâneo, motivada, sobretudo, pela introdução do enfoque de gênero nas pesquisas acadêmicas e na compreensão etiológica dos deslocamentos populacionais. De fato, até o final dos anos setenta, as principais teorias migratórias – estruturalistas e neoclássicas – focavam o trabalhador homem ou os fatores estruturais enquanto determinantes dos fluxos, negligenciando a especificidade da presença feminina nas dinâmicas migratórias. Nos últimos anos, no entanto, em decorrência dos aportes dos movimentos de promoção da igualdade de gênero, das mudanças do mercado de trabalho e do aumento quantitativo da migração feminina, foram introduzidos nas pesquisas acadêmicas critérios analíticos gender sensitive (GRIECO & BOYD, 2003) o que permitiu reconhecer a presença e o protagonismo da mulher migrante, bem como sua peculiaridade na estruturação das dinâmicas migratórias dos fluxos contemporâneos.

De forma específica, a mulher migrante começa a ser compreendida não apenas em seu papel no âmbito reprodutivo, mas também naquele produtivo. Principalmente nos países em desenvolvimento, a mulher continua assumindo seu papel de mãe, filha ou irmã e, ao mesmo tempo, o de “trabalhadora formal”, buscando trabalho/emprego para garantir o sustento da família. Os critérios analíticos das “redes migratórias” e do “grupo doméstico” (PARELLA RUBIO, 2003) são acrescentados aos tradicionais critérios especificamente econômicos a fim de interpretar e analisar as dinâmicas migratórias, desvelando assim a peculiaridade da migração feminina em relação ao trabalho e à família.  Resumindo, nesta terceira acepção da “feminização das migrações” o que mudou radicalmente desde as últimas décadas do século passado é a maneira de analisar a realidade migratória, agora profundamente condicionada pela ótica de gênero.

Finalmente, é bom enfatizar que a categoria de “gênero” deve ser relacionada a outras categorias analíticas, como a etnia, a classe social, a condição migratória e a religião. Em muitos países, a situação migratória irregular, as diferenças éticas, culturais e religiosas representam fatores de discriminação que interferem profundamente na jornada migratória e na contribuição que a mulher pode aportar ao processo de desenvolvimento.

 

2. Sobre Desenvolvimento

Antes de entrarmos no tema específico da relação entre mulheres migrantes e desenvolvimento, consideramos importante uma breve reflexão sobre a noção de “desenvolvimento”, principalmente pela polissemia do termo – fala-se, por exemplo, em desenvolvimento econômico, tecnológico, social, humano, sustentável, etc.

Na atualidade, numa época de hegemonia neoliberal, o desenvolvimento tornou-se frequentemente sinônimo de crescimento econômico. Nesta perspectiva o debate sobre a relação entre desenvolvimento e migrações verte sobre as potencialidades que a mobilidade humana – no caso, feminina – possui para fortalecer o modelo econômico neoliberal e promover o aumento do Produto Interno Bruto (PIB) dos diferentes países.

No entanto, numa perspectiva mais humanista, há segmentos sociais que defendem uma compreensão do desenvolvimento na ótica da promoção da dignidade e da qualidade de vida de todos os seres humanos. Sem questionar a hegemonia da globalização neoliberal e seu projeto, estes segmentos sociais entendem que as migrações podem amenizar as consequências negativas do modelo econômico vigente, contribuindo, desta forma, à realização dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio da Organização Mundial das Nações Unidas (ONU).

Finalmente, a partir de uma abordagem mais estrutural, há quem questione a capacidade do capitalismo de garantir um autêntico desenvolvimento sustentável e uma redução da desigualdade social. Nesta visão, o foco do debate está na denúncia das situações inumanas e na necessidade de encontrar alternativas viáveis de desenvolvimento. As migrações, assim, teriam a capacidade de denunciar as assimetrias da sociedade internacional e, ao mesmo tempo, apontar ou desvelar caminhos, locais e globais, de progresso humano, com vistas à elaboração de um modelo de desenvolvimento mais justo, participativo e inclusivo. Neste caso, o desenvolvimento não é entendido apenas como crescimento econômico, mas, de forma mais ampla, como processo de humanização, que visa à plenificação do ser humano na sua totalidade, corpo e alma. Nas palavras de Paulo VI: “Assim poderá realizar-se em plenitude o verdadeiro desenvolvimento, que é, para todos e para cada um, a passagem de condições menos humanas a condições mais humanas” (Populorum Progressio, 20).

Diante deste quadro, nossa pergunta é: a migração feminina promove ou auxilia um real processo de desenvolvimento, enquanto passagem de condições menos humanas para condições mais humanas? Mas há também outra pergunta que deve se respondida: o processo migratório contribui também para o “desenvolvimento da condição da mulher”, para a erradicação da discriminação de gênero? A questão, em outras palavras, não é apenas se a mulher migrante e refugiada contribui para o desenvolvimento, mas também se o “desenvolvimento” contribui para a promoção da dignidade da mulher migrante e refugiada.

Para o objetivo de nosso trabalho, será importante analisar esse tema a partir de três âmbitos da presença feminina: o espaço reprodutivo (do domicílio, do cuidado com os familiares), o espaço produtivo (do trabalho externo) e o espaço público. Trata-se de três âmbitos em que as mulheres podem desenvolver seu potencial transformador e libertador a fim de promover dinâmicas de humanização.

 

3. Migrações femininas e desenvolvimento

Em nossa percepção, a mulher migrante ou refugiada, em geral, contribui para o desenvolvimento humano denunciando situações de desumanidade, atuando e resistindo com firmeza para o bem estar das pessoas ao seu redor e agindo no espaço público em grupos associativos em busca de seus direitos e dos direitos de outras pessoas em situação de vulnerabilidade. No entanto, esses aportes positivos para os outros, não raramente, têm consequências negativas para suas vidas, sendo obrigadas, por vezes, a passar por situações degradantes de trabalho e de vida a fim de alcançar seus objetivos. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a mulher em mobilidade contribui para o desenvolvimento, mas nem sempre para o “próprio” desenvolvimento.

O espaço reprodutivo

Em primeiro lugar, a contribuição da mulher migrante e refugiada no processo de desenvolvimento humano deve ser considerada a partir do espaço reprodutivo. As mulheres migrantes, geralmente, se afastam de suas famílias, mas continuam responsáveis pelo espaço reprodutivo, familiar. Elas costumam enviar um ingente volume de remessas para suas famílias e com maior constância do que os homens. Muitos estudos têm enfatizado como essas remessas acabam sendo fundamentais para o sustento daqueles lares dos quais as mulheres migrantes são provedoras. Mas não é só isso. Ao tornar-se a principal provedora econômica da família, a mulher migrante pode quebrar determinadas tipificações de gênero que, em muitos lugares, encaixotam o universo feminino no ambiente reprodutivo, numa condição de subordinação em relação ao homem. A migração, a princípio, contribui na luta contra a pobreza e, ao mesmo tempo, para a modificação de formas de descriminação da mulher.

Há também mulheres que migram junto a seu núcleo familiar. Nestes casos, no âmbito doméstico a mulher migrante e refugiada se torna um importante agente no complexo processo de integração na sociedade de chegada. Frequentemente encarregada da educação dos filhos, ela é chamada a encontrar o justo caminho para garantir a continuidade com as tradições culturais e religiosas dos países de origem e, ao mesmo tempo, favorecer a aquisição de traços culturais da sociedade de chegada que permitam o processo integrativo. Essa tarefa de mediação cultural, que, como veremos mais adiante, ocorre também no espaço público, começa no espaço reprodutivo e representa um dos principais desafios e contribuições das mulheres migrantes e refugiadas.

No entanto, a migração feminina é bastante complexa, sendo sujeita a muitas variáveis, como a etnia, a cultura, a religião, a classe social, a situação migratória, entre outras, que podem interferir positiva ou negativamente no processo. Assim sendo, as supracitadas contribuições para o desenvolvimento no ambiente reprodutivo geralmente não ocorrem sem “sofridos efeitos colaterais”: o sustento da família mediante o envio de remessas se dá à custa de duros sacrifícios e condições de vida, muitas vezes, extremamente precárias e austeras – justamente pela necessidade de envio constante de remessas. A “dupla jornada de trabalho”, que a mulher não-migrante enfrenta quando assume contemporaneamente a responsabilidade do espaço produtivo e reprodutivo, é vivida também pela mulher migrante de forma “transnacional”, quando envia remessas para que alguém, no lugar dela, assuma o cuidado dos filhos. Além disso, a distância da família e dos filhos pode implicar o surgimento de graves sentimentos de culpa, que nem sempre, ou talvez quase nunca, são amenizados pelo constante envio de remessas. Finalmente, o ingresso no espaço produtivo não implica necessariamente uma mudança automática dos estereótipos culturais de gênero, pois, às vezes, são os próprios parceiros que decidem a migração da mulher e que gerenciam o dinheiro que enviam.

Em resumo, hoje muitas mulheres migrantes escolhem corajosamente o “cuidado transnacional” do espaço reprodutivo para garantir uma existência digna a seus familiares. Poder-se-ia dizer, também, que muitas delas são obrigadas a migrar, mas a ênfase exagerada na “migração forçada” acaba menosprezando o protagonismo daquelas mulheres que poderiam continuar “sobrevivendo” passivamente em suas terras, mas optam por querer algo a mais. A migração, nesse sentido, se torna, por vezes, um ato de coragem, de resiliência, de luta, embora isso não implique necessariamente um “desenvolvimento” ou um “processo de emancipação” da mulher.

O espaço produtivo

Nos últimos anos, nos países desenvolvidos, mas também em determinadas camadas daqueles emergentes, ocorreram importantes mudanças sociais que geraram novas demandas no mercado de trabalho do cuidado doméstico. A emancipação da mulher tem provocado seu ingresso no mundo do trabalho e uma consequente comercialização ou externalização das tarefas no âmbito doméstico.  Não seria exagerado afirmar que, na atualidade, as sociedades mais desenvolvidas entrariam em colapso sem a presença de milhões de cuidadoras de pessoas e trabalhadoras domésticas. Neste processo há, contudo, um aspecto negativo: a emancipação feminina nos países do Norte do mundo não se deu por uma generalizada mudança das relações de gênero – por exemplo, mediante uma maior participação masculina no âmbito doméstico e de cuidado – ou por uma ampliação dos serviços oferecidos pelo Estado social (welfare state), e sim pela atribuição das tarefas de cuidado às mulheres migrantes. Nas palavras da pesquisadora Parreñas: “para livrar-se do peso do trabalho doméstico, as mulheres [nativas] dependem da comercialização deste trabalho e compram os serviços das mulheres mais pobres e a baixo preço. E em nossa sociedade globalizada, são as trabalhadoras migrantes do Sul que estão liberando cada vez mais as mulheres do Norte desse peso. Todavia, isso traz conseqüências significativas para a relação entre mulheres. O progresso de um grupo de mulheres dá-se às custas da desvantagem de outro grupo de mulheres, porque, no processo de livrar outras mulheres desse peso, às trabalhadoras migrantes do Sul comumente é negado o direito de cuidar de sua própria família” (PARREÑAS, 2002, p. 29).

Em princípio, haveria um ganho recíproco: a mulher dos países desenvolvidos garante sua condição de emancipação, enquanto a mulher migrante tem a possibilidade de oferecer melhores condições de vida para seus familiares. Nesta perspectiva, a mulher migrante e refugiada do sul do mundo contribui no processo de humanização cuidando de crianças e idosos, permitindo a emancipação das mulheres autóctones e garantindo também o sustento transnacional das famílias de que são provedoras.

Entretanto, aqui também há graves efeitos colaterais. As mulheres no espaço produtivo ainda sofrem discriminação em termos salariais, sobretudo quando em situação irregular. Trata-se de um problema generalizado, que afeta também as mulheres autóctones e se torna mais agudo em relação às imigrantes. São frequentes as denúncias por parte de sindicatos de que as mulheres migrantes são utilizadas como “exército de reserva” (LONGHI, 2012) para reduzir o custo do trabalho, sobretudo no âmbito da indústria têxtil ou na agricultura, onde formas de trabalho escravo ainda são bastante difundidas tanto em países desenvolvidos, quando naqueles em desenvolvimento.

Além disso, em muitos países, as mulheres migrantes estão envolvidas principalmente no trabalho doméstico de cuidado e limpeza que, com frequência, não é suficientemente valorizado ou regulamentado. Não pretendemos aqui apontar todas as formas de violação de direitos sofridos, mas não há dúvida de que a condição de vulnerabilidade em que a mulher se encontra, sobretudo quando está em situação irregular e necessita enviar remessas, a expõe, por vezes, a condições degradantes de vida e violações de sua dignidade, principalmente quando confinada ao emprego doméstico.

Nesse sentido, a exploração de milhões de mulheres migrantes e refugiadas oriundas de países do Sul do mundo em trabalhos domésticos e de cuidado ou na indústria têxtil e no agronegócio, em nossa opinião, representa uma severa denúncia contra o modelo vigente de desenvolvimento de muitos países, que reproduzem relações neocoloniais e discriminatórias, sem promover o respeito dos direitos humanos e da igualdade de gênero. Em outros termos, o atual modelo de desenvolvimento, antes que a emancipação da mulher, na verdade, promove a importação das mulheres a serem exploradas. Desta forma, a mulher migrante e refugiada, obrigada a aceitar relações discriminatórias e de dominação patriarcal no âmbito produtivo, sobretudo naquele doméstico, desmascara os limites da globalização neoliberal. Em nossa opinião, esta é uma segunda importante contribuição da mulher migrante e refugiada: ela denuncia as falhas do atual modelo de desenvolvimento. Trata-se de um “clamor surdo” – utilizando uma conhecida expressão dos bispos da América Latina na Conferência de Medellín, em 1968 – uma denúncia silenciosa que nos últimos anos está se tornando cada vez mais clara, firme e até ensurdecedora. Aqui entramos no terceiro âmbito de ação: a presença da mulher migrante no espaço público.

O espaço público

Embora relegada tradicionalmente ao âmbito doméstico, a mulher está assumindo um papel cada vez mais protagônico, não apenas no mundo do trabalho, mas também no espaço público da sociedade. Isso vale também para mulheres migrantes e refugiadas que se organizam em associações ou movimentos para reivindicar seus direitos ou atuar para a promoção da dignidade de crianças, de mulheres, de migrantes ou, mais em geral, de pessoas em situação de vulnerabilidade. Neste caso não nos referimos a grupos organizados que atuam em favor das mulheres migrantes, mas de grupos de mulheres migrantes. A distinção é importante a fim de evidenciar a presença pública e o protagonismo das diásporas femininas, ainda que nas situações concretas a colaboração ou o apoio de mulheres autóctones se torne importante, senão fundamental, para que o grupo associativo possa efetivamente realizar suas finalidades. Vamos apresentar alguns exemplos da ação comunitária e associativa das mulheres migrantes.

Na Argentina, a AMUMRA – Asociación Mujeres Unidas Migrantes y Refugiadas en Argentina, começou suas atividades devido às dificuldades que um grupo de mulheres peruanas encontrava para garantir o direito à instrução superior de seus filhos. Com o tempo, se agregaram ao grupo de migrantes de outras nacionalidades e os objetivos se ampliaram, indo além da questão da educação e da regularização migratória. A AMURA atuou diretamente nos últimos anos em prol da criação de uma lei de estrangeiro (Ley de Migración de 2003) e, atualmente, desenvolve trabalho de informação, conscientização, advocacy, principalmente de mulheres migrantes e refugiadas em situação de violência e vítimas de tráfico (trata) ou trabalho escravo.

Interessante é também a Asociación de mujeres inmigrantes Malen Etxea (mulher em língua Mapuche), na Espanha, que além de atuar pela promoção de direitos, visa também à inserção social, à integração, ao diálogo intercultural, bem como à cooperação entre países. Vale a pena enfatizar estes últimos aspectos: em muitos lugares as associações de mulheres migrantes atuam no serviço de mediação intercultural e cooperação internacional. Não são serviços exclusivos de mulheres ou de migrantes. No entanto, são atividades que elas costumam desenvolver com extrema propriedade pelo conhecimento da cultura (religião, idioma) da terra de origem, o conhecimento – mais ou menos aprofundado – da cultura da terra de chegada, pelo desejo de comunicar as riquezas culturais do próprio país e pelo cuidado nas relações interpessoais que, com frequência, as caracteriza. Neste sentido, seria muito importante, em termos de políticas públicas, investir em cursos específicos de cooperação internacional e mediação cultural para mulheres migrantes e refugiadas.

Além disso, a participação em atividades associativas pode ajudar no “desenvolvimento” das mulheres na medida em que as afasta do isolamento em que muitas vezes vivem por razões culturais ou profissionais – principalmente as mulheres que residem no lugar de trabalho. Sobre esse assunto, é interessante mencionar a pesquisa de Pia Karlsson Minganti (2010) sobre o papel da mulher muçulmana na Suécia: tradicionalmente excluída de importantes espaços sociais e religiosos, a mulher muçulmana, no país escandinavo, assumiu gradativamente um papel social diferente enquanto “guardiã” ou “embaixadora do Islã”. Tal mudança ocorreu possivelmente pela pressão da sociedade sueca por uma maior valorização das mulheres em espaços públicos e teve como resultado, entre outros, a transformação da mulher em referencial privilegiado para práticas de mediação intercultural e inter-religiosa junto à sociedade receptora.

Talvez seja o espaço público o lugar em que a mulher migrante e refugiada produz tanto o desenvolvimento da sociedade, em termos de processos de humanização, quanto o desenvolvimento da mulher enquanto superação de discriminações, estereótipos e estruturações de gênero.

 

Conclusão

As migrações internacionais são um fenômeno complexo caracterizado pela crescente intensidade, pluricausalidade e multiplicidade dos atores envolvidos. Entre estes atores as mulheres migrantes e refugiadas contribuem para o desenvolvimento humano denunciando com suas próprias vidas as falhas do projeto neoliberal de desenvolvimento, resistindo corajosamente a fim de garantir condições dignas de vida para seus familiares e engajando-se em associações e grupos organizados a fim de reivindicar direitos. Entretanto, é importante sublinhar que, nem sempre, essas ações garantem a promoção da autonomia, dos direitos e da auto-realização das próprias mulheres. Como já referido, a denúncia, na maioria dos casos, se dá “na cruz”, tendo repercussão pública e política apenas na presença de alguma “caixa de ressonância”. A promoção do bem estar dos familiares ocorre, com frequência, pela renúncia ao próprio bem estar. Finalmente, a presença protagônica no espaço público, embora extremamente preciosa e em aumento, é ainda pouco difundida, dependendo muito da solidariedade e apoio de grupos autóctones.

Neste sentido, a solidariedade junto a mulheres migrantes e refugiadas passa por vários caminhos. Colocamos aqui algumas ideias a título de sugestões:
1) Ser caixa de ressonância do grito de denúncia das mulheres migrantes contra o atual modelo de desenvolvimento que, no lugar de caminhar rumo à igualdade de gênero e à superação das desigualdades sociais, incentiva a importação de mulheres a serem exploradas;
2) Denunciar o modelo de desenvolvimento que, em lugar de buscar a superação das desigualdades sociais, promove a migração, o tráfico de mulheres para a exploração sexual, para explorá-la no trabalho, com jornadas exaustivas como empregadas domésticas, com baixos salários, muitas vezes sem seguridade social, violando seus direitos humanos e laborais.
3) Considerar o tema das famílias transnacionais e avançar no acompanhamento pastoral, social, jurídico e cultural, tendo presentes as diversas situações de sofrimento que vivem as mulheres migrantes e que afetam tanto a elas quanto a seus filhos e familiares. Ter presente e ampliar a atenção a situações particularmente sensíveis: crianças desacompanhadas, crianças desaparecidas mães separadas de seus filhos – acompanhá-las, dar-lhes oportunidade, através de nossas instituições, a contatos com seus filhos, de levantar sua autoestima, alimentar sua esperança, sua fé, ao invés de considerá-las “mães desnaturadas”, como soe acontecer, porque saíram em busca do sustento e de um futuro melhor para seus filhos.
4) Atuar pela garantia à reunião familiar e defender soluções dignas relativas à nacionalidade, à superação da Apatridia, situações estas que agridem direitos básicos e fundamentais do ser humano.
5) Incidir com propostas de políticas públicas para a regularização migratória, para a atenção a necessidades específicas das mulheres, para sua integração social e laboral em condições de «trabalho decente», são aspectos necessários para que a mulher migrante se aproprie do processo de desenvolvimento social, econômico, cultural e político como sujeito social.
6) Incentivar a presença pública e o associativismo das mulheres migrantes, junto com mulheres autóctones, especialmente como espaço de diálogo intercultural, de integração e de emancipação.

 

Bibliografia

GRIECO, Elizabeth M.; BOYD, Monica (2003). Women and migration: incorporating gender into international migration theory. Disponível em: <http://www.migrationpolicy.org/article/women-and-migration-incorporating-gender-international-migration-theory>.

LONGHI, Vittorio (2012). La rivolta dei migranti: un movimento globale contro la discriminazione e lo sfruttamento. Golfo Persico, Stati Uniti, Francia, Italia. Palermo: :duepunti Edizioni.

MINGANTI, Pia Karlsson (2010). Matrimoni contestati. Giovani musulmani in contesto transnazionali. Mondi Migranti, n. 2, 2010, p. 117-130.

PARRELLA RUBIO, Sònia (2003). Mujer, inmigrante y trabajadora: la triple discriminación. Barcelona: Anthropos.

PARRENÃS, Rachel Salazar (2002). Entre as mulheres – Desigualdades de trabalho doméstico e de gênero entre as migrantes na nova economia global. Concilium 298 – 2002/5.

VIETTI, Francesco et alii (2012). Il paese delle badanti. Una migrazione silenziosa. Torino: SEI.

 

 

Rosita Milesi é Membro da Congregação das Irmãs Missionárias de S. Carlos, Scalabrinianas. Advogada, Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH). rosita@migrante.org.br

Roberto Marinucci é Mestre em Missiologia, consultor do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH). Diretor da Revista REHMU.