Por Marianna Borges Soares*
O tema dos refugiados nos desafia a aprofundar estudos que vão muito além da situação pessoal de cada solicitante. O contexto mais amplo e de modo especial a realidade e as circunstâncias vigentes no país de origem têm importância muitas vezes decisiva na análise do caso. O Country of Origin Information (COI), em português, conhecido como “Informação sobre o Estado de Origem”, é um instrumento de real importância que deve ser, primeiramente bem aprofundado e, sem dúvida, seriamente considerado pelos órgãos que decidem as solicitações de reconhecimento da condição de refugiado.
De acordo com a definição trazida pela Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, uma pessoa refugiada é aquela “[…] que temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país”[2].
O presente texto é um estudo muito sucinto e breve, que objetiva trazer à reflexão práticas degradantes direcionadas a mulheres viúvas em algumas regiões da Nigéria. Visa subsidiar, com a “Informação sobre o Estado de Origem” (COI), a análise de casos concretos de solicitantes de reconhecimento da condição de refúgio daquele país.
A morte de um esposo ou esposa é um acontecimento muito doloroso para o parceiro ou a parceira sobrevivente. Em algumas regiões do mundo, no entanto, para as mulheres viúvas, esse momento de luto é acompanhado de práticas deletérias de violência de gênero. Particularmente na Nigéria, mulheres temem a viuvez em virtude das práticas degradantes direcionadas a viúvas (harmful widowhood practices, em inglês), que ocorrem em alguns locais do país. Essas práticas foram classificadas como violência de gênero por organizações internacionais[3].
As práticas de viuvez são observadas por quase todos os grupos étnicos na Nigéria, especialmente entre os Yoruba, Igbo e Hausa[4]. Tais práticas culturais têm existido há muito tempo. Elas têm sido passadas de geração em geração e são fortemente marcadas pela questão de gênero, uma vez que que atingem viúvos e viúvas de formas diferentes. As práticas direcionadas a viúvas envolvem diversos graus de sofrimento físico, privações, rituais degradantes, instabilidade emocional, além de trauma psicológico e socioeconômico[5].
O relatório do Departamento de Estado do Estados Unidos da América sobre Direitos Humanos na Nigéria em 2020 identifica como “práticas tradicionais degradantes” (harmful traditional practices) o fato de algumas comunidades do país enxergarem as viúvas como parte da propriedade do falecido marido que deve ser “herdada” por sua família[6]. O relatório observa que, ainda que exista lei federal proibitiva das práticas tradicionais degradantes, tais como a mutilação genital feminina (MGF), casamento forçado, isolamento forçado da família e amigos, ataques de ácido ou outras práticas que afetam negativamente direitos fundamentais de mulheres e meninas, essas práticas ainda ocorrem no país[7].
É comum que a família do marido culpabilize as mulheres pela morte do esposo, enquanto são isoladas e condenadas ao ostracismo pela comunidade. Os relatos mais comuns, tanto nas áreas urbanas quanto rurais, foram no sentido de que viúvas são forçadas a dormir no solo, terem suas cabeças raspadas, forçadas a usar um vestido que simboliza o luto, e forçadas a chorar copiosamente de tal forma a causar feridas em seus rostos. Mais comumente em áreas rurais, viúvas são submetidas a rituais que adquirem diversas formas, incluindo a obrigação de tomar banho e dormir ao lado do corpo do falecido marido[8].
Além disso, geralmente as viúvas são despojadas de suas propriedades e de seus bens, privadas do dinheiro da família sem qualquer consideração sobre como poderão se sustentar e sobreviver. Há sistemas consuetudinários nigerianos que não reconhecem o direito da mulher de herdar propriedade, de forma que muitas mulheres são destituídas de seus bens pelos familiares do marido em caso de viuvez[9].
Outra prática degradante direcionada a viúvas é o chamado casamento levirato, conhecido também como “herança de esposas”. O casamento levirato consiste no casamento da viúva com o irmão do falecido marido, a fim de manter a linhagem da paternidade para os filhos da viúva[10]. A viúva, nesse caso, é vista como propriedade do falecido marido, que dever ser “herdada” pelo seu irmão. Muitas mulheres toleram tal prática por se encontrarem em uma situação de dependência econômica e porque sabem que uma recusa pode custar a sua vida e a de seus filhos[11].
Tais práticas podem continuar existindo em grandes centros urbanos, como Lagos, praticadas por famílias que, por ter origens em áreas afastadas onde as práticas são mais recorrentes, continuam seguindo os costumes tradicionais[12]. Diversas instituições locais e normas comunitárias toleram o casamento levirato, fazendo com que essa prática dificilmente seja trazida para debate na esfera pública.
Um relatório do Banco Mundial apresenta dados alarmantes sobre taxas de violência doméstica na Nigéria, que se encontram por volta de 24%, chegando a até 70,9% em algumas regiões. Além disso, aponta que a média nacional para tolerância de violência contra mulheres é de 34,7%, podendo chegar a 73,1% em algumas regiões[13]. Esse alto nível de tolerância é um dos maiores fatores de risco para a ocorrência de violência contra mulheres.
Esse fator implica a deficiência da proteção estatal a mulheres viúvas que são submetidas a práticas degradantes. Há relatos de que a polícia frequentemente se recusa a intervir em questões consideradas domésticas e inclusive culpabiliza as vítimas por provocar o abuso contra elas. Além disso, em áreas rurais, os tribunais e a polícia se mostraram relutantes em intervir para proteger mulheres que formalmente acusaram seus maridos de abuso, nos casos em que os níveis de agressão não excederam as normas consuetudinárias locais[14]. É comum provedores de saúde e autoridades da justiça e segurança “olharem para o outro lado” e ignorarem os casos de violência baseada no gênero[15]. Há informações de que policiais sequer registram casos de violência doméstica quando tomam ciência de uma denúncia, pois consideram tal questão como um problema doméstico, sugerindo que a vítima “resolva o problema em casa”[16].
O Comitê CEDAW da ONU, em suas observações finais sobre o 7º e o 8º relatórios periódicos sobre a Nigéria, se mostrou preocupado com a persistência de práticas degradantes e estereótipos discriminatórios em relação aos papéis e responsabilidades de mulheres e homens na família e na sociedade, que perpetuam a subordinação das mulheres nas esferas pública e privada. Observou, ainda, que tais estereótipos também contribuem para o aumento do casamento infantil, poligamia e herança de esposas e, portanto, para o status desfavorecido e desigual das mulheres na sociedade[17].
Segundo o manual de procedimentos e critérios para determinação da condição de refugiado do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a recusa do Estado em oferecer proteção a uma pessoa pode confirmar ou aumentar o temor de perseguição do solicitante de refúgio e pode ser, com efeito, considerada um elemento de perseguição[18]. Nesse sentido, a omissão do Estado em proteger viúvas contra práticas desumanizantes como as aqui referidas pode ser considerada um fator de perseguição.
Conclui-se, deixando o tema à consideração e outras reflexões pois, diante de tais práticas degradantes a mulheres viúvas na Nigéria e da falta de proteção do Estado dispensada a essas mulheres, é possível afirmar que essas mulheres sofrem um fundado temor de perseguição no seu país de origem, em virtude de pertencimento a um grupo social específico, qual seja, o de mulheres viúvas submetidas a práticas degradantes. Por esse motivo, podem ser consideradas refugiadas, pois se enquadram nos critérios elencados pela Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951, assim como na Lei 9.474/97, a lei de refúgio brasileira.
Brasília, 13 de maio de 2021
* Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF). Atua no Setor de Proteção do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH).
[2] Art. 1º (2) Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto de Refugiados de 1951. Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em: 10/05/2021.
[3] World Bank Group. Gender-Based Violence: An analysis of the implications for the Nigeria for Women Project, 2019, p. 14. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/31573. Acesso em: 16/04/2021; Comitê CEDAW. Concluding observations on the combined seventh and eighth periodic reports of Nigeria. CEDAW/C/NGA/CO/7-8. 24 de julho de 2017, p. 7. Disponível em: https://undocs.org/CEDAW/C/NGA/CO/7-8. Acesso em: 22/04/2021.
[4] Adeyemo, C. Wuraola. “Widowhood and Its Harmful Practices: Causes, Effects and the Possible Way out for Widows and Women Folk”. World Journal of Educational Research (Online) Vol. 3, No. 2, 2016, p. 380. Disponível em: http://www.scholink.org/ojs/index.php/wjer/article/view/656/644.
[5] Adeyemo, C. Wuraola. “Widowhood and Its Harmful Practices: Causes, Effects and the Possible Way out for Widows and Women Folk”. World Journal of Educational Research (Online) Vol. 3, No. 2, 2016, p. 380-381. Disponível em: http://www.scholink.org/ojs/index.php/wjer/article/view/656/644.
[6] U.S.DoS. 2020 Country Report on Human Rights Practices: Nigeria, p. 32. Disponível em: https://www.state.gov/reports/2020-country-reports-on-human-rights-practices/nigeria/. Acesso em: 16/04/2021.
[7] U.S.DoS. 2020 Country Report on Human Rights Practices: Nigeria, p. 31-32. Disponível em: https://www.state.gov/reports/2020-country-reports-on-human-rights-practices/nigeria/. Acesso em: 16/04/2021.
[8] Ezejiofor, Austina Obinna. “Patriarchy, Marriage and the Rights of Widows in Nigeria”. UJAH: Unizik Journal of Arts and Humanities Vol. 12 No. 1, 2011, p. 151. Disponível em: https://www.ajol.info/index.php/ujah/article/view/71750. Acesso em: 19/04/2021.
[9] U.S.DoS. 2020 Country Report on Human Rights Practices: Nigeria, p. 32. Disponível em: https://www.state.gov/reports/2020-country-reports-on-human-rights-practices/nigeria/. Acesso em: 16/04/2021.
[10] Afolayan, Gbenga Emmanuel. “Widowhood practices and the Rights of Women: The case of South-Western Nigeria”. International Institute of Social Studies. The Hague, 2011, p. 2. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/280313345_Widowhood_Practices_and_the_Rights_of_Women_The_Case_of_South-Western_Nigeria. Acesso em: 16/04/2021.
[11] Afolayan, Gbenga Emmanuel. “Widowhood practices and the Rights of Women: The case of South-Western Nigeria”. International Institute of Social Studies. The Hague, 2011, p. 2. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/280313345_Widowhood_Practices_and_the_Rights_of_Women_The_Case_of_South-Western_Nigeria. Acesso em: 16/04/2021.
[12] Immigration and Refugee Board (IRB) Canadá. Responses to Information Requests (RIRs) NGA101045.E. Nigeria: Levirate marriage practices among the Yoruba, Igbo and Hausa-Fulani; consequences for a man or woman who refuses to participate in the marriage; availability of state protection. 2006, p. 1. Disponível em: https://www.justice.gov/sites/default/files/eoir/legacy/2013/12/18/NGA101045.E.pdf. Acesso em: 16/04/2021.
[13] World Bank Group. Gender-Based Violence: An analysis of the implications for the Nigeria for Women Project, 2019, p. 12. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/31573. Acesso em: 16/04/2021.
[14] U.S.DoS. 2020 Country Report on Human Rights Practices: Nigeria, p. 31. Disponível em: https://www.state.gov/reports/2020-country-reports-on-human-rights-practices/nigeria/. Acesso em: 16/04/2021.
[15] World Bank Group. Gender-Based Violence: An analysis of the implications for the Nigeria for Women Project, 2019, p. 13. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/31573. Acesso em: 16/04/2021.
[16] World Bank Group. Gender-Based Violence: An analysis of the implications for the Nigeria for Women Project, 2019, p. 31. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/31573. Acesso em: 16/04/2021.
[17] Comitê CEDAW. Concluding observations on the combined seventh and eighth periodic reports of Nigeria. CEDAW/C/NGA/CO/7-8. 24 de julho de 2017, p. 7. Disponível em: https://undocs.org/CEDAW/C/NGA/CO/7-8. Acesso em: 22/04/2021.
[18] ACNUR. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. “Manual de Procedimentos e Critérios para Determinação da Condição de Refugiado de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao estatuto dos refugiados”, p. 21. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Manual_de_procedimentos_e_crit%C3%A9rios_para_a_determina%C3%A7%C3%A3o_da_condi%C3%A7%C3%A3o_de_refugiado.pdf. Acesso em: 10/05/2021.