As religiões diante do desafio das migrações e do refúgio

O drama do refúgio não faz acepção de religião. Envolve ou pode envolver indivíduos de qualquer crença. Os dados do ACNUR, relativos ao ano de 2003, apontam a existência de massas de refugiados ou desplazados em áreas de prevalência religiosa muçulmana, cristã, budista ou de outras tradições religiosas.

 


Roberto Marinucci

 

Jesus disse: “Aquilo que Deus mais ama são os estrangeiros”.

Perguntaram-lhe: “Quem são os estrangeiros?”

Ele respondeu: “Os que fogem [do mundo] com sua fé [intacta].

Eles serão reunidos com Jesus no dia da Ressurreição”.

 

(Dito de Jesus extraído da literatura árabe-islâmica)

 

1 – O drama do refúgio não faz acepção de religião. Envolve ou pode envolver indivíduos de qualquer crença. Os dados do ACNUR, relativos ao ano de 2003, apontam a existência de massas de refugiados ou desplazados em áreas de prevalência religiosa muçulmana (a Palestina, o Iraque ou o Afeganistão), cristã (os Bálcãs ou a Colômbia), budista (o Tibet e o Vietnã) ou de outras tradições religiosas (por exemplo, a maioria dos refugiados africanos).

Aliás, não são poucas as lideranças religiosas que, historicamente, passaram por alguma forma de exílio. Baste pensar em Abraão e sua viagem em busca da terra prometida; em Jesus de Nazaré, que, devido à perseguição de Herodes, teve que fugir para o Egito; em Maomé e sua comunidade, forçados a migrar de Mecca para Medina; ou, mais recentemente, no Dalai Lama, que desde 1959 vive exilado da própria terra, o Tibet.

2- No entanto, apesar de sofrerem perseguições, as religiões, não raramente, foram também protagonistas de atos persecutórios e discriminatórios, inclusive expulsando e exilando pessoas. Inquisições, cruzadas, guerras santas, divisões em castas, violações sistêmicas dos direitos das mulheres, dos negros e dos povos indígenas, repressão das minorias, dos membros de outra religião ou de supostos “hereges”: são estes apenas alguns exemplos de como, às vezes, em nome de Deus, foram perpetrados crimes contra os direitos dos seres humanos e dos povos.

Diante deste quadro, cabe perguntar-se se as religiões podem ser instrumentos de construção de justiça e paz no mundo ou se, ao contrário, são inevitavelmente destinadas a reproduzir ou, até, fomentar as contradições das relações sociais vigentes. De forma mais específica, nos questionamos também se as religiões podem oferecer motivações válidas e contundentes para o compromisso na tutela e promoção dos direitos de migrantes e refugiados.

Ao responderem estas perguntas, enfocaremos tanto as contribuições do cristianismo quanto, num enfoque macro-ecumênico, os aportes fundamentais de outras tradições religiosas. Ao mesmo tempo, quando possível, tentaremos “deixar a palavra” às próprias religiões, utilizado fartamente citações de textos sagrados, documentos oficiais ou palavras de lideranças religiosas.

 

3 – Começamos nossa análise com a tradição judaica.[1] Tendo passado pelo drama da escravidão no Egito, pela diáspora e pela dominação plurisecular de potências estrangeiras, o povo de Israel, em suas Escrituras Sagradas, mostra-se aberto ao compromisso de solidariedade com os demais povos e, especificamente, com os estrangeiros residentes na própria terra.

Para elucidar essa afirmação pode-se lembrar que a Torah judaica inicia com o conto da criação da humanidade inteira e não apenas do povo judaico. Todos os seres humanos foram criados por Jahvé à sua imagem e semelhança. Ademais, após a história da desobediência dos primeiros homens, a Torah relata a aliança estabelecida por Jahvé com Noé e seus descendentes. Cabe sinalizar que esta aliança abrange toda a humanidade, ou seja, tanto Israel quanto os demais povos. Portanto, a fé judaica entende que, até a sucessiva aliança masaica do Sinai, todos os povos da terra foram chamados a servir Deus da mesma forma. Isso explica porque, mais que pela idolatria, Israel questiona os povos vizinhos pela falsa conduta, sendo que há um profundo respeito por aquelas pessoas que, embora não judaicas, tinham temor de Deus. É o caso, por exemplo, de Jó e Ciro. Com o tempo, a necessidade da preservação da própria identidade induzirá posturas cada vez mais polêmicas em relação aos demais povos. Mas isso não reduz o valor da dignidade e igualdade de todos os homens apontadas pela Torah.

Conseqüência de tudo isso é a postura de Israel diante dos estrangeiros. Com vigor a Torah estabelece: “Não oprimirás o estrangeiro: conheceis a vida de estrangeiro, porque fostes estrangeiros no Egito” (Ex 23.9). A experiência do sofrimento e da violação de direitos humanos é, para Israel, fonte de compromisso junto àqueles que passam pela mesma situação. No livro do Levítico acrescenta-se “Se um estrangeiro habita convosco na vossa terra, não o molestareis. O estrangeiro que habita convosco será para vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti mesmo, pois fostes estrangeiros na terra de Egito” (Lv 19,34).  Mais adiante, no mesmo livro, lembrar-se-á que “a terra me pertence [a Deus] e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes” (Lv 25,23). Deus é proprietário da terra e ninguém pode considerar propriedade privada o que é dom gratuito de Deus. A acolhida do estrangeiro, nesta ótica, mais que distribuição das próprias riquezas é partilha do que recebemos gratuitamente pela misericórdia divina.

Finalmente, a opção pelos estrangeiros da Torah deve ser interpretada na ótica mais ampla da proteção dos mais fracos e injustiçados. A tríade “órfão, viúva e estrangeiro” revela a opção de Jahvé por aqueles que estão desprotegidos dos próprios direitos fundamentais. Jahvé, dessa forma, apresenta-se como o libertador, o protetor daqueles que vivem “em estado de perigo”.

 

4 – Mais complexa é a análise dos direitos humanos e da proteção de migrantes e refugiados no mundo islâmico. O recente recrudescimento de fundamentalismos lesou a imagem dessa religião, sendo identificada não raramente com a violência, o terror ou a negação sistêmica dos direitos humanos. Os casos da condenação de Salman Rushdie por parte do Imã Khomeini ou o pedido de lapidação de Amina Lawal, na Nigéria, representam apenas uns casos que feriram a consciência moderna de proteção dos direitos humanos.

No entanto, reputamos que qualquer análise do Islamismo deverá levar em conta os contextos sócio-culturais e a pluralidade de tradições e movimentos englobados na expressão “islamismo”.[2] De fato, na opinião de Linda Hogan e John D’Arcy May, assim como nas demais religiões abrâmicas, “a poderosa doutrina da criação (…) garante que a dignidade humana é um valor absoluto no Islã”, embora essa visão “corre o perigo de ser eclipsada pela esmagadora presença da total transcendência de Deus, ao ponto de os muçulmanos poderem opor-se às clausulas de direitos humanos relativas à liberdade religiosa ou à igualdade entre mulheres e homens afirmando que elas infringem os ‘direitos de Deus”[3].

Apesar das dificuldades enfrentadas, principalmente no que se refere à interpretação do Al Corão, é bom não olvidar que também do Islamismo brotaram grupos ou indivíduos comprometidos com a causa dos direitos humanos. Um exemplo, neste sentido, é o misticismo sufista que, embora menosprezado e até combatido pelas correntes “ortodoxas” e majoritárias, desenvolveu uma mística da não violência, subordinando a luta pela defesa do Islamismo ao encontro com a misericórdia de Deus. Desta forma, mesmo não tendo “formulado o princípio do amor aos inimigos, como limite extremo, porém, lançou profundas raízes uma espiritualidade do amor ao próximo e da disposição à reconciliação[4], que são pressupostos para a proteção de refugiados e desplazados.

Na linha do respeito dos direitos humano cabe sinalizar também o testemunho de Sheikh Al-Azhar Mohammed Tantawi lido durante o Dia de Oração pela Paz no Mundo, em Assis, aos 24 de janeiro de 2002:

 

“Allah revelou a religião monoteísta pela felicidade da humanidade. As religiões pregam todos os valores da ética, como a humildade, a justiça, a paz e a prosperidade, bem como a realização de todas as ações benéficas autorizadas por Allah, a cooperação entre todos os povos em favor da benevolência e da piedade, e não para a ofensa e a agressão”.[5]

 

É conhecido também o movimento dos Khudai Khimatgar (“Servos de Deus”) do Noroeste da Índia, fundado por Abdul Ghaffar Khan, cujos ideais orientaram os membros do movimento a professar o princípio da não-violência, a se comprometer na luta pelo bem de todas as criaturas, pela libertação dos oprimidos e pela rejeição do serviço militar. Menos conhecido mas significativo é o caso do dissidente egípcio Nasr Hamed Abu Zaid. Partindo do pressuposto de que “Deus é o maior que todas as inimizades”, Abu Zaid afirmava ser necessário superar a pobreza e a riqueza, estabelecer relações de igualdade entre homens e mulheres, bem como entre as diferentes religiões, interpretadas como caminhos diferentes para o mesmo e Único Deus.[6]

 

5 – No que tange ao grande universo das religiões orientais, um primeiro elemento significativo que encontramos é a Regra Áurea: “O que tu mesmo não queres, não faça a outra pessoa” (Confúcio). Hans Küng[7] conta que perguntaram a Confúcio se existia uma palavra que pudesse servir de norma de ação para a vida inteira. A resposta foi “reciprocidade” (shu), ou seja, cuidado e tolerância mútua. Em breve, meio milênio antes do Sermão da Montanha Confúcio, na China, já traçava uma norma de conduta baseada no respeito recíproco e no amor ao próximo ou “humanidade” (ren).

Na Índia, o bramanismo tem como conceito ético básico a não-violência (a-himsa), do qual decorre a necessidade de não ferir nenhuma forma de vida inserida no grande ciclo do carma. Já o budismo tem origem na busca da superação do sofrimento, o que implica no dever de não provocar dor alheia. Todo comportamento humano deve ser norteado pela bondade, compaixão, alegria compartilhada e equanimidade. Vale a pena aqui lembrar o testemunho do BuddistaGeshe Tashi Tseringproferido durante o Dia de Oração pela Paz no Mundo, realizado em Assis, aos 24 de janeiro de 2002:

 

“Possa eu me tornar a cada momento, agora e sempre, um protetor para os que estão sem proteção, um guia para os que perderam a vida, um navio para os que devem cruzar os oceanos, uma ponte para aqueles que devem atravessar os rios, um santuário para os que estão em perigo, uma lâmpada para os que precisam de luz, um lugar de refúgio para os que precisam de reparo, um servo dos que estão na necessidade. Para toda a duração do espaço, para o tempo que os seres viventes permanecem, até então, passa eu também permanecer e derrotar as misérias do mundo”.[8]

 

Neste âmbito, cabe valorizar também o testemunho do Dalai Lama, que há décadas vive exilado da sua terra. “Talvez o sentido e spiritual do nosso exílio – afirmava numa conversa informal com Leonardo Boff – seja nos obrigar a percorrer o mundo para falar de espiritualidade, de paz entre os povos, de diálogo entre as religiões. É isso que estamos fazendo com profundo empenho e grande humildade”.[9] Longe de querer justificar os crimes sofridos, o Dalai Lama com estas palavras expressa “com-paixão” com a humanidade toda e compromisso pela proteção dos direitos humanos de todos os povos.

No livro “Uma ética para o novo milênio”, ao argumentar acerca da importância do amor e da compaixão para uma ética mundial, o líder religioso budista alega que a felicidade e a harmonia universal podem ser alcançadas apenas “com o amor, partilhando o sofrimento dos outros, identificando-nos claramente com todos, especialmente com os que estão em condições desfavoráveis e com aqueles cujos direitos não são respeitados, ajudando-os a ser felizes. É assim que se constrói a unidade e a harmonia”.[10]

A compaixão, na opinião do Dalai Lama, pode chegar a ponto de sermos “tão tocados pelo sofrimento alheio, mesmo em sua forma mais sutil, que se desenvolve em nós uma irresistível noção de responsabilidade por todos os semelhantes. Isto faz com que a pessoa compassiva se dedique inteiramente a ajudar os outros a superarem tanto o sofrimento quanto as causas do sofrimento[11]. Nesta ótica, uma ética da responsabilidade universal só pode ser fundamentada a partir do princípio de compaixão: “onde o amor pelo próximo, a afeição, a bondade e a compaixão estão vivos, verificamos que a conduta ética é espontânea. A prática de ações eticamente íntegras é natural onde há compaixão”.[12] Esse é o caminho para a superação do sofrimento e de suas causas.

 

6 – Entre as contribuições do cristianismo, queremos enfatizar o trabalho específico em relação à proteção de migrantes e refugiados realizado pelo Conselho Mundial das Igrejas (CMI) e o Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes.

 

6.1 – Há mais de 50 anos, o Conselho Mundial das Igrejas[13] (CMI) proporciona um serviço diaconal em prol das pessoas “desarraigadas”. Até 1999, as atividades eram coordenadas pelo Serviço de Refugiados e Migrantes, sendo que, desde então, a responsabilidade passou à Equipe de Relações Internacionais.

O CMI aborda a temática migratória a partir do conceito de “pessoas desarraigadas”, incluindo nessa definição os que foram obrigados a abandonar o próprio país por causas políticas, ambientais e econômicas.[14] Uma declaração de 1995[15], ao aprofundar as raízes teológicas do serviço diaconal juntos às pessoas desarraigadas, (1) proclama o caráter sagrado de toda vida humana e a bondade da criação, dos quais decorrem a responsabilidade em respeitar a dignidade de cada ser humano, bem como em salvaguardar a criação; (2) lembra dos valores bíblicos do amor, da justiça e da paz que exigem uma resposta das Igrejas em prol dos pobres e excluídos; (3) reafirma o desafio bíblico da construção de uma sociedade sem exclusões, o que implica o testemunho e o serviço junto às pessoas desarraigadas. Dessas bases teológicas procede um tríplice compromisso: 1) defender a vida e a dignidade humana das pessoas desarraigadas; 2) lutar pela justiça e pela paz; 3) ser comunidade junto aos desarraigados.

Na declaração reconhecem-se também as dificuldades e os perigos inerentes à solidariedade profética junto às pessoas desarraigadas, mas, ao mesmo tempo, afirma-se que “la Iglesia debe estar dispuesta a pagar el precio que supone enfrentarse a los poderes establecidos y a los privilégios”. Tudo isso não apenas por mera filantropia, mas por fidelidade à própria identidade crística:

 

“Instamos a las iglesias del mundo entero a que vuelvan a descubrir su identidad, su integridad y su vocación como iglesia del forastero. Se ha reconocido siempre que prestar asistencia a los desarraigados forma parte de la labor de diaconía (aunque haya sido una labor periférica para muchas iglesias). Ahora bien, se trata además de una cuestión que concierne a toda la Iglesia. Somos la iglesia del Forastero – la iglesia de Jesucristo el Forastero (Mateo 25: 31-46)”.

 

O trabalho do Conselho Mundial das Igrejas em prol das pessoas desarraigadas ecoou também nas Assembléias Gerais. Ainda em Amsterdã, em 1948, há uma preocupação contundente com a defesa dos direitos humanos. Os pressupostos religiosos que fundamentam tanto os direitos quanto os deveres (responsabilidades) estão expostos com muita clareza:

 

“A Igreja tem sempre reivindicado a liberdade de obedecer a Deus antes que aos seres humanos (cf. At 4,19). Nós afirmamos que todos os homens são iguais aos olhos de Deus e que os direitos do ser humano derivam diretamente da sua qualidade de filho de Deus. (…) No entanto, nós acreditamos que não haja direitos sem deveres. À liberdade do ser humano corresponde a sua responsabilidade, e cada pessoa é responsável dos seus irmãos na comunidade”.[16]

 

Em Evanston, sete anos depois, reafirma-se o compromisso pela tutela dos direitos humanos e pela assistência aos “refugiados, aos migrantes, aos presos civis e militares ainda não repatriados, e a grupos análogos de pessoas sofridas e oprimidas, independente de origem, raça ou religião”, tendo consciência de que “mais importante que a assistência é, com certeza, uma solução justa e permanente de seus problemas”, solução que só pode ser encontrada com a formulação e aceitação de um ethos universal que tenha a capacidade de “fornecer uma sólida base para o desenvolvimento dos direitos e das instituições internacionais”.[17]

A preocupação com a superação das causas do refúgio encontra-se novamente na Assembléia de Uppsala, em 1968, onde, ao enfocar o drama dos refugiados da África e do Oriente Médio, solicita-se um maior apoio financeiro para o ACNUR e, sobretudo, reivindica-se a erradicação das causas do fenômeno: “Além da ajuda financeira, o pedido fundamental dos refugiados é a justiça. O objetivo, a longo prazo, é de eliminar as condições que geram os refugiados”.[18]

Em Nairobi (Kenya), em 1975, o CMI, após reafirmar o cuidado da Igreja com os direitos humanos que nasce da consciência de que “todas as pessoas são criadas a imagem e semelhança de Deus, são iguais e infinitamente preciosas aos seus e aos nossos olhos[19], faz menção explícita ao compromisso cristão junto aos refugiados:

 

“enquanto discípulos de Jesus Cristo, os cristãos são solidários com todos os que sofrem por causa da própria fé e prática religiosa, bem como pela tomada de posição em prol da justiça política e social. A solidariedade cristã pede uma opção definitiva ao lado dos presos políticos e refugiados. As Igrejas deveriam fazer tudo o que está em suas possibilidade a fim de ajudar e sustentar seus irmãos que sofrem, testemunhando e intercedendo em prol deles”.[20]

 

Em 1983, em Vancouver, o CMI renova seu compromisso com uma sociedade justa, participativa e sustentável (just, participatory and sustainable society). Focaliza também a necessidade do engajamento eclesial em prol dos pobres e excluídos, engajamento que objetiva a concretização de uma nova ordem mundial. Qualquer outra forma de ação que não vise remover as causas dos problemas é tachado de hipócrita:

 

“Em seu testemunho aos pobres e aos oprimidos, ela [a Igreja] deve ser a voz daqueles que são privados da própria voz. A defesa do direito do pobre, do excluído, da viúva e do órfão por parte de Deus é uma repreensão aos cristãos e às Igrejas complacentes e um contundente convite à conversão e a um novo compromisso em prol da justiça. Pretender dar testemunho aos pobres e querer se colocar do lado deles sem procurar mudar as condições que geram a pobreza é uma atitude hipócrita. As Igrejas devem lutar para a concretização de uma nova ordem internacional, para um mundo mais justo e estar disponíveis a mudar suas estruturas em resposta a isso”.[21]

 

Na mesma Assembléia, ao enfocar a luta pela justiça, o CMI condena a prática daqueles batizados que “utilizam argumentos ‘cristãos’ para defender sistemas multinacionais de exploração, as aplicações acríticas da ciência e da tecnologia e a produção de armas nucleares de destruição em massa. Confessando Jesus Cristo as Igrejas devem confessar inclusive seus pecados; devem reconhecer a própria cumplicidade em relação aos processos de morte[22]. Por isso, “rejeitamos as forças heréticas que usam o nome de Cristo e o nome de ‘cristãos’ para legitimar os poderes de morte[23].

Finalmente, na Assembléia de Harare (Zimbabwe), em 1998, após questionar a globalização neoliberal que “considera os seres humanos como indivíduos mais que como pessoas em comunidade, como essencialmente competitivos mais que como cooperativos, como consumidores e materialistas, mais que como seres espirituais” e que “gera um sistema impiedoso que transforma as pessoas em ‘sobras’ e as abandona se não conseguem competir com os poucos poderosos da economia global[24], afirma-se:

 

“Hoje, entre as principais vítimas da globalização econômica e da proliferação dos conflitos tem, no mundo inteiro, as pessoas desarraigadas: refugiados, emigrantes e deportados com a força no interior do próprio país. O Conselho Ecumênico das Igrejas e suas Igrejas membros há tempo pedem uma melhoria das normas internacionais finalizadas à proteção dos direitos humanos dos refugiados, dos que solicitam o asilo e dos migrantes e deveriam continuar a partilhar seus recursos e a constituir uma rede mundial, regional e local, capaz de garantir uma solidariedade efetiva. Solicitamos as Igrejas a continuar na cooperação com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e a perseguir o melhoramento das normas internacionais e de sua efetiva aplicação – principalmente no âmbito da proteção dos direitos das pessoas forçosamente deportadas no interior do próprio país – um setor no qual existem até agora poucas leis das quais se possam exigir a efetiva aplicação”.[25]

 

O documento de Harare lembra também da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os trabalhadores estrangeiros e membros de suas famílias, pedindo que as Igrejas exijam de seus governos a “solícita retificação”.

Em sentido mais amplo, o CMI assume o compromisso de “condenar” as violações dos direitos humanos, “monitorar” seu respeito e desenvolvimento, “assistir” as Igrejas e os grupos comprometidos na luta em prol dos direitos humanos e “promover” a cultura dos direitos humanos mediante a formação e a comunicação.[26]

 

6.2 – No âmbito católico, o compromisso pastoral junto a migrantes e refugiados é encabeçado pelo Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes instituído em 1970 por Paulo VI com o objetivo deprovidenciar o estudo e a aplicação da pastoral para “as pessoas em movimento”, a saber, migrantes, exilados, refugiados, pescadores, marítimos,aeronavegantes, os que trabalham nos transportes e nos parques de diversões, nômades, circenses, peregrinos e turistas.

Os fundamentos do cuidado pastoral junto a migrantes e refugiados brota, antes de tudo, na preocupação de oferecer assistência espiritual àqueles fiéis que se encontram longe da própria terra, definitiva ou temporariamente. Assim, por exemplo, no Concílio Vaticano II, solicita-se um “específico interesse para aqueles fiéis que, por causa de suas condições de vida, não podem usufruir a cura ordinária dos párocos ou são privados de qualquer assistência; eles são muitos emigrantes, exilados, refugiados, marítimos, …” (CD 18).

No entanto, na ótica de uma “missão integral” que envolve “o homem todo e todos os homens”, a pastoral migratória católica focaliza também a promoção da dignidade e dos direitos das pessoas em movimento, a partir de um princípio básico: “o homem é o fundamento, a causa e o fim de todas as instituições sociais – o homem, ser social por natureza e elevado a uma ordem de realidades que transcendem a natureza[27]. Esse princípio básico do Ensino Social da Igreja interage com outros princípios que foram sendo elaborados no desenvolver da reflexão católica sobre o social, como a solidariedade, a subsidiariedade, o bem comum, o destino universal dos bens e a opção pelos pobres, entre outros.[28]

Aplicando esses princípios à mobilidade humana, em 1963, João XXIII podia afirmar que

 

“se deve deixar a cada um o pleno direito de estabelecer ou mudar de domicílio dentro da comunidade política de que é cidadão; e, mesmo quando legítimos interesses os aconselhem, deve ser-lhe permitido transferir-se a outras comunidades políticas e nelas domiciliar-se. Por ser alguém cidadão de um determinado país, não se lhes tolhe o direito de ser membro da família humana, ou cidadão da comunidade mundial, que consiste na união de todos os seres humanos entre si” (PT 25).

 

As declarações de Papa Roncalli confirmavam e reforçavam uma práxis pastoral já orientada pelo documento Exsul familia de 1952 e posteriormente renovada, em 1969, pela De pastorali migratorum cura que esboçava dois princípios norteadores do compromisso católico junto aos migrantes e refugiados: (1) o seguimento de Jesus Cristo que “exilado para o Egito com a família de Nazaré, se viu obrigado a emigrar para terras longínquas de sua pátria[29] e (2) a unidade da família humana, sendo que “as migrações, ao favorecer e promover o recíproco conhecimento e colaboração universal, dão testemunho da unidade da família humana e a aperfeiçoam, confirmando claramente essa relação de fraternidade entre os povos, pela qual uma parte dá e, simultaneamente, recebe da outra”.[30]

No que tange aos refugiados, em 1983, no documento “Para uma pastoral dos refugiados”, o Pontifício Conselho para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes orienta as comunidades católicas a assumir a causa dos refugiados, pois, a Igreja “ao realizar a sua missão salvífica e a defesa da dignidade humana, tem o insubstituível papel de sustentar o espírito destes desarraigados e preservar, em todos seus aspectos, um harmônico equilíbrio”.[31]

Em 1992, o mesmo Conselho, esta vez em colaboração com o Pontifício Conselho “Cor unum”, publica o documento “Refugiados: um desafios à solidariedade[32]. Na apresentação frisa-se que a finalidade do documento é “estimular a solidariedade internacional, não só relativamente aos efeitos, mas sobretudo às causas do drama: um mundo no qual, sendo impunemente desrespeitados os direitos do homem, continuará a segregar refugiados de toda a espécie”. 

De acordo com o texto, na solução do drama dos refugiados “o primeiro ponto de referência não deve ser a razão de Estado ou a segurança nacional, mas a pessoa humana, a fim de que seja salvaguardada a sua exigência de viver em comunidade, exigência que provém da natureza profunda do ser humano” (n. 9). Em outras palavras, “a proteção não é simples concessão feitas ao refugiado; este não é um objeto de assistência, e sim um sujeito com direitos e deveres. Cada país tem a responsabilidade de respeitar e de fazer respeitar os direitos do refugiado do mesmo modo que garante os direitos de seus concidadãos” (n. 11).

Neste sentido, o documento questiona tanto a demonização dos refugiados – não raramente tratados como “bodes expiatórios” – quanto a indiferença, que representa um pecado de omissão (cf. n. 16). Apelando a uma ética universal, o documento afirma, de forma contundente que:

 

“o espírito de solidariedade revela claramente inaceitável o fato de que milhões de refugiados vivam em condições desumanas. Em parte, os cidadãos e as instituições dos Estados democráticos e economicamente desenvolvidos não podem permanecer indiferentes diante de uma situação tão dramática. A inação ou o escasso empenho por parte destes Estados estaria em contradição gritante com os princípios por eles, justamente, considerados à base de sua cultura, fundada na igual dignidade reconhecida a cada pessoa” (n. 20).

 

Quanto às razões propriamente cristãs para a solidariedade com os refugiados, o documento alega que a “Igreja oferece o seu amor e a sua assistência a todos os refugiados, sem distinção de religião ou de raça: respeita em cada um deles a dignidade inalienável da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,27)”. Os cristãos “têm consciência de que Deus, que caminhou com os refugiados do Êxodo em busca de uma terra livre de qualquer espécie de escravidão, continua a caminhar com os refugiados de hoje para realizar com eles o Seu desígnio de amor” (n. 25).

Entre as principais tarefas eclesiais – no caso das Igrejas locais – o documento sinaliza as seguintes: “contato pessoal, defesa dos direitos de cada indivíduo e grupo, denúncia das injustiças que estão na base do mal, ação pela adoção de leis que garantam a proteção efetiva dos mesmos, educação contra a xenofobia, instituição de grupos de voluntariado e de fundos de urgência, assistência espiritual” (n. 26). No que se refere às paróquias, orienta-se para a sensibilizar “os membros face ao drama dos refugiados, exortando a acolhê-los como Jesus ensinou: ‘era forasteiro e me recolhestes’ (Mt 25,35)” (n. 27).

Desta forma, as comunidades eclesiais são chamadas a

 

“não considerar os novos chegados como uma ameaça à sua identidade cultural e ao seu bem-estar, mas como um estímulo a caminhar juntos com estes novos irmãos ricos de dons particulares, num processo incessante de formação de um povo capaz de celebrar a sua unidade na diversidade. (…) A comunidade cristã deve vencer o medo e a desconfiança relativamente aos refugiados; deve aprender a ver neles o semblante do Redentor” (ibidem).

 

Finalmente, o texto realça a importância da “colaboração entre as várias Igrejas cristãs e as várias religiões não cristãs nesta obra de caridade” que “levará a novas etapas na procura e na realização de uma mais profunda unidade da família humana. A experiência do exílio poderá se tornar um momento privilegiado de graça, assim como aconteceu para o povo que, exilado no deserto, conheceu o nome de Deus e experimentou seu poder libertador” (n.34).

 

7 – Como se depreende das reflexões anteriores, as religiões mundiais, em sua maioria e apesar das contradições, desenvolvem uma reflexão ética do cuidado com o meio-ambiente e o ser humano, principalmente o mais pobre e perseguido. Esta ética do cuidado pode ser resumida na assim chamada “Regra de Ouro” que orienta a uma relação de reciprocidade com o próximo.[33] Citamos, a seguir, algumas formulações dessa Regra presentes em escritos sagrados ou palavras de líderes religiosos:

 

“O que tu mesmo não queres, não faça a outra pessoa” (Confúcio, Dito 15,23)

“Não faças aos outros o que não queres que eles façam a ti” (Rabi Hillel, Shabbat 31a)

“Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Jesus de Nazaré, Mt 7,12)

“Ninguém é crente enquanto não desejar a seu irmão o que deseja para si mesmo” (Islã, Quarenta Hadith de na-Nawawi, 13)

“Os seres humanos deveriam ser indiferentes às coisas mundanas e tratar todas as criaturas do mundo como eles mesmos desejariam se tratados” (Jainismo, Sutrakritanga I, II, 33)

“Um estado que não é agradável ou aprazível para mim também não será para ele; e como posso impor ao outro um estado que não é agradável ou aprazível para mim?” (Budismo, Samyutta Nikaya V, 353.3-342.2)

“Não se deve agir em relação ao outro de modo desagradável para si mesmo: é esta a essência da moralidade” (Mahabharata XIII 114,8).

 

A difusão da Regra de Ouro em tradições geográfica e culturalmente tão diferentes revela que, em geral, todas as religiões buscam e motivam seus seguidores para a harmonia e a solidariedade nas relações inter-pessoais, sociais e cósmicas. O verdadeiro fiel evita produzir ou reproduzir o mal, principalmente em relação àquelas pessoas que, por diferentes razões, são mais sofredoras e excluídas. Às vezes, chega-se até a pregar o amor ao inimigo. Além disso, cabe não esquecer que as religiões advogam o cuidado com a vida – não apenas aquela humana – defendem um comportamento ético básico (não matarás, não roubarás etc.) e, sobretudo, nos deixaram exemplos e testemunhos éticos exemplares, como são as vidas de Gandhi, Martin Luther King, Madre Teresa de Calcutá, Dom Oscar Romero, entre outros.

Finalmente, apesar das diferenças e das contradições, a relação mística que as religiões estabelecem com a Transcendência, o Ser Supremo, o Totalmente Outro, as torna aptas e receptivas ao encontro com o “outro” humano, seja ele um refugiado, um exilado, um estrangeiro, um migrante indocumentado, um preso político, um discriminado pela cultura, raça ou religião etc. Esta capacidade de encontro solidário com o “outro” humano é, ao mesmo tempo, um dom que as religiões recebem e uma tarefa que elas são chamadas a realizar com firmeza e profecia. É a contribuição que elas podem oferecer à causa dos migrantes e dos refugiados.

 

 



[1] Cf. BOROWITZ, Eugene. La Torah scritta e orale e i diritti umani. Em: Concilium XXVI, 2/1990, pp. 43-54.

[2] Cf. ACAT. Fundamentalismos, integrismos: uma ameaça aos direitos humanos. São Paulo, Paulinas, 2001 (aqui, pp. 43-112).

[3] Construção da dignidade humana no diálogo inter-religioso. Em: Concilium XXXIX, 2/2003, p. 77.

[4] HÄRING, Hermann. Apostar no que é bom. Superando a violência em nome das religiões. Em: Concilium XXXIII, 272/1997, p. 127.

[5] Disponível em: http//www.vatican.va

[6] HÄRING, op. cit. pp. 133-135.

[7] KÜNG, Hans. Religiões do Mundo. Em busca de pontos em comum. Campinas/SP, Verus, 2004, p.117.

[8] Extraído de: Guida al modo di vivere del Bodhisattva, Shantideva

[9] Apud BOFF, Leonardo. Espiritualidade. Um caminho de transformação. São Paulo, Sextante, 2001, pp. 22-23.

[10] DALAI LAMA. Uma ética para o novo milênio. Rio de Janeiro, Sextante, 2002, pp. 146.

[11] Ibidem, p. 139.

[12] Ibidem, pp. 146-147.

[13] O Conselho Mundial das Igrejas é “la mayor y más representativa de las muchas expresiones organizadas del moderno Movimiento Ecuménico, cuyo objetivo es la unidad de los cristianos. El CMI agrupa a más de 340 iglesias, denominaciones y comunidades de iglesias en más de 100 países y territorios de todo el mundo que representan a unos 400 millones de cristianos, incluidas la mayoría de las iglesias ortodoxas, gran cantidad de denominaciones de tradiciones históricas de la Reforma Protestante como anglicanos, bautistas, luteranos, metodistas y reformados, así como muchas iglesias unidas e independientes” (Disponível em: www.wcc-coe.org. Acesso em maio de 2004).

[14] “Las personas abandonan sus comunidades por múltiples razones y reciben diferentes nombres: refugiados, desplazados internos, solicitantes de asilo, migrantes económicos. Como iglesias, debemos dar aliento a todos aquellos que las graves condiciones políticas, económicas y sociales obligan a abandonar su patria y su cultura, sin importarnos las etiquetas que les impongan los demás. Las personas desarraigadas son todas aquellas que se ven empujadas a abandonar sus comunidades: las que huyen por culpa de las persecuciones y de la guerra, las que sufren el desplazamiento forzoso a causa de la degradación ambiental y las que se ven obligadas a buscar su subsistencia en una ciudad o en el extranjero porque no logran sobrevivir en su aldea” (Ibidem).

[15] Cf. Ha llegado el momento de optar por la solidaridad con los desarraigados. Declaración adoptada por el Comité Central del CMI en 1995. Disponível em: http://www.wcc-coe.org/wcc/what/regional/uprooted/momentsp.html. Acesso em maio de 2004.

[16] CONSIGLIO ECUMENICO DELLE CHIESE. Enchiridion Oecumenicum. Assemblee Genrali – 1948-1998. Dehoniane, Bologna, 2001, n. 38.

[17] Ibidem, nn. 144-148.

[18] Ibidem, n. 485.

[19] Ibidem, n. 919.

[20] Ibidem, n. 925.

[21] Ibidem, n. 1120.

[22] Ibidem, n. 1209.

[23] Ibidem, n. 1226.

[24] Ibidem, n. 2294.

[25] Ibidem, n. 2226.

[26] Ibidem, n. 2039.

[27] JOÃO XXIII, Mater et Magistra, 219.

[28] Cf. CONGREGAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO CATÓLICA. A Doutrina Social da Igreja na formação sacerdotal, 29-42.

[29] PAULO VI. Pastoralis migratorum cura, motu próprio.

[30] SACRA CONGREGAZIONE PER I VESCOVI. De pastorali migratorum cura, n.2.

[31] PONTIFICIA COMMISSIONE PER LA PASTORALE DELLE MIGRAZIONI E DEL TURISMO. Per una pastorale dei rifugiati, 14.

[32] Cf. CONSELHO PONTIFICIO “COR UNUM” – CONSELHO PONTIFÍCIO PARA A PASTORAL DOS MIGRANTES E ITINERANTES. Os refugiados. Um desafio à solidariedade.

[33] KÜNG, Hans. História, importância e método da Declaração para uma Ética Global. Em: KÜNG, Hans – SCHMIDT, Helmut. Uma ética mundial e responsabilidades globais. Duas declarações. São Paulo, Loyola, 2001, p. 74.