Brasileiros no Exterior: O Cuidado Pastoral Além-Fronteiras

Na fábula-mito de Higino, retomada contemporaneamente por Leonardo Boff, recorda-nos o autor que Júpiter deu a alma ao ser humano e Gaia o corpo e, por isso, ambos os retomam quando este morre. Porém, foi o Cuidado que moldou aquele ser e, por isso, estará o mesmo cuidado presente enquanto o ser humano tiver vida, fazendo parte de sua essência. Jesus de Nazaré já esclarecia que este cuidado assemelha-se ao de um pastor com suas ovelhas, que não vê limites, que não se restringe a fronteiras geográficas ou políticas.

 

João Paulo Santos[1]

“Não é só questão de trabalhar para os migrantes,

mas de tornar o rosto da Igreja e da humanidade

mais conforme ao Projeto de Deus.

Toda a Igreja é assim desafiada positivamente

pelo fenômeno da mobilidade humana e

convidada a emigrar de seus esquemas tradicionais

para viver em plenitude a missionariedade.”

Paulo VI

Na fábula-mito de Higino, retomada contemporaneamente por Leonardo Boff[2], recorda-nos o autor que Júpiter deu a alma ao ser humano e Gaia o corpo e, por isso, ambos os retomam quando este morre. Porém, foi o Cuidado que moldou aquele ser e, por isso, estará o mesmo cuidado presente enquanto o ser humano tiver vida, fazendo parte de sua essência. Jesus de Nazaré já esclarecia que este cuidado assemelha-se ao de um pastor com suas ovelhas, que não vê limites, que não se restringe a fronteiras geográficas ou políticas.

João Batista Scalabrini traduz essas palavras jesuânicas para o conceito contemporâneo das migrações internacionais[3]. Desde seus tempos, na Itália no entardecer do século XIX, descobriu aquele santo epíscopo que, ou a Igreja, em suas pastorais, iria atrás das ovelhas que migravam em massa para o novo mundo da América ou, limitando seu cuidado às outras 99 que permaneciam na jurisdição diocesana, estaria cada vez mais se distanciando de sua originalidade bíblica.

A situação hoje, se inverte. A migração em massa já não é da Europa para países periféricos, mas sim no fluxo contrário, rumo novamente ao continente europeu e aos Estados Unidos da América. Entretanto, as condições desumanas que permeavam a migração italiana de então, por exemplo, persiste (por vezes majorada) na mobilidade humana dos trabalhadores do século XXI.

Foi neste sentido que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), considerando também um apelo da Conferência Episcopal norte-americana, iniciou, em 1996, a Pastoral dos Brasileiros no Exterior (PBE), com o objetivo central de preparar e acompanhar os missionários brasileiros em missão junto aos emigrados. Já eram milhares os brasileiros e brasileiras que viviam distantes da Pátria. Os Pastores perceberam a vulnerabilidade desses grupos que tinham na xenofobia e na perda da identidade cultural-religiosa seus principais riscos.

“E vendo a multidão, ficou tomado de compaixão, porque estava enfraquecida e abatida como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 6). A frase do Evangelho é facilmente inteligível na maioria dos brasileiros que migram para outros países. Tudo novo – língua, costumes, leis, história, comunidade -, traz, de forma imediata, a possibilidade de travessia, de superação, porém, traz junto a desagregação familiar, cultural, religiosa, e a possibilidade de perda de raízes, da fé e da identidade, sobretudo com o acréscimo do medo que milhares de migrantes não regularizados sofrem rotineiramente.

A multidão de brasileiros no exterior, hoje supera os três milhões[4]. Não raro vemos e ouvimos relatos de desânimo, de abatimento frente ao trato que recebem ou às condições a que são submetidos. Muitos são perseguidos e humilhados e, uma parcela deles, encarcerados.  É nesse sentido que a PBE, em quase dez anos de existência, reforçou-se e não diminui sua demanda, sendo sua ação e compaixão prática para com estes concidadãos cada vez mais necessárias.

As atividades da PBE se estabelecem em eixos bastante amplos. Em especial, cumpre destacar três: envio de missionários brasileiros ao exterior (que recebem, em curso preparatório específico, preparação acerca da realidade migratória e presença missionária junto aos emigrados), identificação e contato com as comunidades brasileiras nos mais diversos países, levando a solidariedade e a proximidade da igreja de origem e a repartição de responsabilidades sócio-pastorais com a diocese de chegada[5], assessoramento jurídico, articulando igreja, governos e ongs na cooperação em favor dos emigrados.

A missão da PBE se centraliza na assistência religiosa, no cultivo da fé. Em seu sentido amplo, na atividade com os brasileiros emigrados, a missão religiosa significa, primeiro, levar o Evangelho inculturado que os remete à diversidade brasileira em suas raízes afro, lusa e indígena, reforçando a dignidade e a auto-estima. E, segundo, na linha do antropocentrismo pastoral pregado pós-Vaticano II, caminhar lado a lado com as dificuldades cotidianas destes seres humanos, percebendo suas dificuldades perante políticas migratórias restritivas, empobrecimento, desemprego, discriminações culturais, exclusões xenófobas e até mesmo criminalização dos migrantes.

Com emigrados cotidianamente segregados, anunciar que “a glória de Deus é o ser humano vivo” (Sto Irineu) clama a urgência de um apoio cotidiano em todos os níveis (sociais, políticos e econômicos) a fim de que não se torne palavra morta o anúncio da dignidade dos filhos e filhas de Deus.

Manter uma comunidade viva e seus membros com uma vida digna supõe primeiramente uma luta pela abertura, das fronteiras e de mentes, ao mínimo ético do humanismo. Formas restritivas de políticas migratórias que rotulam o trabalhador estrangeiro de terrorista não podem ser toleradas no atual paradigma de direitos humanos que o mundo vive. Todos os terroristas do 11 de setembro eram residentes “legais”. Nenhum refugiado. Nenhum “indocumentado”. Criminalizar a mobilidade humana é talvez uma das formas mais aparentes dos países retirarem direitos dos migrantes e fomentar, cada vez mais, a xenofobia. Não haverá dignidade para esses nossos irmãos enquanto o fato de quererem trabalhar dignamente para sustentar suas famílias for razão de perseguição e exclusão. Efetivar instrumentos internacionais que protegem famílias de trabalhadores[6] e diferenciá-los de criminosos e terroristas é a pedra angular de qualquer pastoral que efetivamente cuide e se preocupe com nossos irmãos que estão longe da pátria, da família, da própria terra.

Lembramos que a efetivação desses direitos fundamentais passa pela organização e pela participação política da comunidade no país de residência, a qual deve ser sempre estimulada e fomentada pelas pastorais. Passa, sim, pela participação cada vez mais concreta e atuante das embaixadas e consulados brasileiros na defesa de seus cidadãos como também pela intervenção política dos próprios emigrados. Tal atitude simboliza um conceito de que a preocupação evangélica pastoral significa uma preocupação real com a cidadania dos fiéis em todas as esferas.

A greve de fome realizada por um movimento de brasileiros encarcerados no condado de Suffolk (EUA) mostra que, pouco a pouco, a consciência política pode começar a oferecer resultados para que a dignidade mínima possa ser respeitada, e que tais reações podem se tornar mais bem-sucedidas ao longo do tempo[7].

Por fim, cabe ainda ressaltar a importância e a abrangência dos serviços religiosos propriamente ditos que a PBE ajuda a realizar junto e com as comunidades brasileiras em diferentes países. A religiosidade, quando se está longe de casa, adquire uma importância psicológica e emocional muito maior. Parte do ministrar os sacramentos para ir muito além, refazendo memórias e celebrando identidades culturais que ficaram distantes, no País de origem, no saudoso Brasil.

A religião passa a oferecer não só serviços litúrgicos, mas uma liturgia sacramental da vida, como se entende de um relato vindo de um membro da comunidade em Chicago[8]:

“De 1994 até agora a comunidade cresceu, tivemos outras lideranças e aos poucos os brasileiros perceberam não só a importância de ter a missa celebrada em português, mas a preciosidade de poder estar juntos com seus conterrâneos, tomar um chimarrão, comer uma boa feijoada, um churrasco gaúcho, dançar, enfim a preciosidade de ser acolhido com muito calor humano num lugar tão‘frio’ como Chicago”[9]

Ou seja, o chimarrão, a dança, a conversa, a língua portuguesa, não são mais somente o que são, mas remetem a histórias de vida, a relações afetivas, a lembranças da presença de seus familiares e de Deus em suas vidas, se transformando, imediatamente em ferramentas que dão coragem para enfrentar a frieza e a batalha árdua com que se deparam em os novos países.

Em resumo, a PBE busca ser e levar, principalmente através das missionárias e missionários, assistência religiosa e apoio nas demandas sociais, econômicas e políticas dos emigrados. Ser co-responsável pela memória religiosa, cultural e identitária de nossos irmãos que estão longe, refazer-se como Igreja, conforme nos indica a frase inicial do papa Paulo VI.

Assim, privilegiando o cuidado acima de qualquer barreira e indo além das fronteiras, a meta é construir uma pastoral transnacional que prove, concretamente, que a fraternidade e a boa notícia outrora pregadas por Jesus de Nazaré estão além de todos os limites que sociedades e governos tentem construir.



[1] Advogado de movimentos populares, assessor jurídico do Instituto Migrações e Direitos Humanos, Brasília, e colaborador nas Pastorais da Mobilidade Humana, da CNBB.

[2] Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão Pela Terra. Petrópolis: Vozes, 2001.

[3] Além de João Batista Scalabrini, existem outras referências cristãs de missionários que se dedicaram ao surgimento das primeiras pastorais migratórias, como Santa Francisca Cabrini (1850-1917) que migrou da Itália para os Estados Unidos e denunciava que seus irmãos de fé eram “aqui tratados como animais”.

[4] Fonte: Jornal Missão Jovem. Outubro de 2005. Página 07.

[5] A noção de partilha de responsabilidades com a diocese de chegada aparece, após o Concílio Vaticano II (1962-1965), como pastoral de comunhão, quando é privilegiado o protagonismo das Igrejas locais que abria espaço para mais responsabilidade das dioceses dos países de chegada, em detrimento das européias. Ver MARINUCCI, Roberto. A Pastoral dos Brasileiros no Exterior. In: Fórum Social das Migrações. Travessias na desordem global. São Paulo: Paulinas, 2005. Página 254.

[6] A Convenção Internacional para a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes, aprovada em 1990 pela ONU é um dos principais instrumentos que, efetivado no universo das políticas públicas dos países, poderia garantir mais dignidade aos brasileiros no exterior.

[7] CAPRIGLIONE, Laura. Estranhos no Paraíso. Reportagem publicada na Folha de São Paulo, Caderno Folha Cotidiano, em 10 de fevereiro de 2006. Trata de Fernando de Sá Lima Monteiro, 20, e Rogério Zanotelli, 27, que iniciaram uma greve de fome para reivindicar condições carcerárias melhores, por estarem presos contrariamente a convenções da ONU sobre migrantes. Infelizmente, esse primeiro movimento está tentando ser abafado pelo isolamento de ambos como castigo. Todavia, o desfecho ainda está em aberto.

[8] Isaura Maria da Costa Crump, coordenadora da comunidade em 2004.

[9] Boletim Além Fronteiras, v. 23, p.2, julho/agosto 2004.