A urbanização é uma tendência irreversível. Um número cada vez maior das pessoas que atendemos – refugiados, repatriados voluntários, deslocados internos e apátridas – residem em cidades e, portanto, necessitamos adequar nossas políticas a esta situação.
A urbanização é uma tendência irreversível. Um número cada vez maior das pessoas que atendemos – refugiados, repatriados voluntários, deslocados internos e apátridas – residem em cidades e, portanto, necessitamos adequar nossas políticas a esta situação.
É extremamente difícil calcular com exatidão o número real de refugiados, deslocados internos, retornados e apátridas nas áreas urbanas. Damasco e Amã, entre outras, receberam mais de um milhão de iraquianos, constituindo o mais dramático exemplo, embora não único, de populações deslocadas em grande escala nas áreas urbanas. Estima-se que Cartum tenha recebido 1,7 milhões de pessoas deslocadas e refugiadas. Abdijan e Bogotá absorveram milhares de vítimas de conflitos armados, sobrecarregando bairros que já contavam com serviços muito precários. Antigos refugiados que voltaram do Irã e do Paquistão, junto a outros deslocados devido à violência nas áreas rurais do Afeganistão juntaram-se a um número ainda maior de pessoas que migraram para Cabul por motivos econômicos, dentre outros, resultando em um enorme aumento populacional em Cabul desde 2001.
A urbanização é certamente um fenômeno global, com efeitos localizados. Esta é uma questão que preocupa cada vez mais as autoridades locais e os governos centrais, assim como as organizações humanitárias e de desenvolvimento. As administrações municipais se transformaram em atores da linha de frente. Necessitam de grande apoio das organizações nacionais e internacionais, bem como de maior envolvimento da comunidade de desenvolvimento.
Melhorar nosso foco de atenção
A experiência do ACNUR com refugiados, deslocados internos, repatriados e apátridas nas cidades não é nova. O que é novo é o reconhecimento de que as cidades serão, cada vez mais, o cenário principal de uma resposta humanitária às necessidades da população. Para realizarmos nossa missão de maneira efetiva, precisamos melhorar nosso desempenho nos ambientes urbanos e reciclar nossa abordagem, com maior foco nas parcerias e prestando especial atenção ao papel das autoridades locais.
O dilema dos refugiados e de outras pessoas de nossa atenção em áreas urbanas não pode ser tratado isoladamente. Ao contrário, é necessária uma resposta que abranja um contexto mais amplo do que o da população urbana pobre. A comunidade humanitária deve reavaliar seu paradigma de assistência nas áreas urbanas. Os atores humanitários neste âmbito devem determinar a melhor forma de apoiar as iniciativas baseadas na comunidade e traçadas de baixo para cima.
Não queremos limitar o trabalho dos atores de desenvolvimento, mas queremos estimular seus esforços e coordenar nossas atividades com as deles. Precisaremos trabalhar exaustivamente com os governos, as autoridades locais e através das Equipes da ONU para fortalecer a conscientização de que a mitigação da pobreza, a redução dos riscos por desastres, a remoção de assentamentos informais e iniciativas similares devem responder às necessidades de toda a população urbana marginalizada, inclusive as pessoas de atenção do ACNUR.
Se quisermos que nossos esforços alcancem o impacto desejado, não podemos olhar estas populações separadamente das comunidades locais. Somente seremos bem sucedidos se adotarmos uma abordagem global, que leve em consideração os direitos tanto dos deslocados quanto de seus anfitriões.
Parcerias e prioridades
As deliberações ocorridas no Diálogo do Alto Comissário sobre os Desafios em Matéria de Proteção, realizado em dezembro de 2009, em Genebra, enfatizaram a necessidade de parcerias sólidas. É claro que os governos centrais continuarão a ser os principais parceiros, como Estados signatários da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e da recente Convenção para a Proteção e Assistência das Pessoas Deslocadas Internamente na África e outros instrumentos internacionais relevantes, assim como autores da legislação nacional, marcos estratégicos e políticos com os quais trabalhamos. Igualmente as autoridades locais são absolutamente essenciais e devem ser muito mais integradas à articulação das estratégias e das políticas. Nossos parceiros tradicionais – ONGs, a Cruz Vermelha e a Media Luna Roja têm um papel importante a desempenhar, assim como a sociedade civil, especialmente os líderes comunitários locais, as organizações religiosas e outros grupos que promovam a coesão social.
O elemento central de todas as nossas discussões no Diálogo foi como criar, aprofundar e expandir o espaço de proteção para as pessoas de nossa atenção nas cidades. Isto inclui enfatizar os marcos legais e o reconhecimento de direitos, onde ainda há muito a ser feito como, por exemplo, promover a ratificação dos instrumentos internacionais, o cancelamento de reservas e o estabelecimento de uma legislação nacional sobre proteção. Para tanto, é necessária uma abordagem bem fundamentada e diferenciada, já que há muitos países que ainda não ratificaram a Convenção de 1951, mas que adotaram políticas sensíveis a este respeito e, em alguns casos, até mais progressistas do que alguns Estados que ratificaram a Convenção.
Os participantes do Diálogo enfatizaram reiteradamente algumas observações.
Primeiramente, devemos evitar construir estruturas paralelas para a prestação de serviços e assistência, especialmente para abrigo, educação e saúde. Em segundo lugar, devemos lutar por uma partilha eficaz das responsabilidades. Os atores humanitários e de desenvolvimento devem se unir de maneira mais significativa. O ACNUR não é um ator de desenvolvimento, mas tem um papel catalisador, de defesa e apoio, a desempenhar, juntamente com os doadores, para promover uma perspectiva de desenvolvimento voltada à comunidade.
A forma como agimos em relação aos que servimos é importante: devemos garantir sempre que o trato seja humano e profissional. Precisamos trabalhar juntos para evitar o assédio e as detenções injustificadas. Nossas deliberações enfatizaram a importância da atitude da população local no combate à xenofobia, cujo crescimento parece especialmente acentuado no mundo desenvolvido, mas que também é preocupante nos países em desenvolvimento. Precisamos garantir respostas adequadas contra comportamentos inaceitáveis, como é o tráfico humano, o estupro e outras violações dos direitos humanos. E precisamos agir com severidade contra as atividades criminosas, aumentando nossa eficiência na proteção às vítimas.
Muitos participantes do Diálogo comentaram sobre o registro, a documentação e a determinação da condição de refugiado. É necessário ter em mente que os refugiados e outras pessoas deslocadas não agirão contra seus próprios interesses. Se, por exemplo, eles acharem que se registrar é um risco e não um benefício, eles não se registrarão. Portanto, devemos tratar de garantir que os beneficiários vejam o registro como algo útil para eles.
Outro aspecto chave do espaço de proteção é o seu acesso: o acesso à informação, o acesso a redes de proteção e a serviços básicos, que assegurem aos refugiados e deslocadas o atendimento de suas necessidades fundamentais, assim como o acesso à auto-suficiência (formação, oportunidades de emprego e microcrédito).
Próximos passos
É claro que a urbanização apresenta problemas diferentes entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, assim como entre os países no que se refere a leis, tradições e cultura. As necessidades de proteção têm natureza específica e nossas políticas devem levar este fato em consideração. Contudo, é igualmente importante reconhecer que há uma série de princípios comuns. O principal entre eles é a adequação de uma abordagem com base em direitos e apoiada nas estratégias, políticas e medidas que almejamos.
De acordo com o Diálogo celebrado em Genebra, em dezembro de 2009, o ACNUR adotará vários passos, como a seguir referimos, para colocar em prática nossas propostas:
- Rever a nova política do ACNUR sobre refugiados urbanos:
Em setembro de 2009, o ACNUR lançou uma nova política sobre a Proteção e as soluções para os Refugiados em áreas urbanas. A política reconhece que nem as obrigações do ACNUR nem a de nenhum Estado deveriam estar condicionadas à residência em campos de refugiados. A política enfatiza o fato que as responsabilidades do mandato do ACNUR em relação aos refugiados não são afetadas nem condicionadas à sua localização. Isto permite tanto incentivar quanto contribuir com o desenvolvimento progressivo dos marcos legais e políticos, integrando os refugiados e outras pessoas atendidas em áreas urbanas no tecido social das cidades de forma adequada e respeitosa de seus direitos. Revisaremos a nova política para refugiados urbanos considerando o valioso debate ocorrido no Diálogo de dezembro de 2009.
- Atuar em favor dos Deslocados Urbanos:
Walter Kälin (Representante do Secretário-Geral dos direitos humanos dos deslocados internos) e eu acordamos defender, juntamente com a ampla comunidade humanitária, uma definição similar das políticas para pessoas que vivem fora dos campos de refugiados e para os deslocados urbanos. Este deve ser um esforço de cooperação com as Nações Unidas visto que não faz parte do mandato do ACNUR a elaboração de tal política.
- Realizar avaliações em tempo real:
Já avaliamos as atividades do ACNUR sobre os deslocados iraquianos em áreas urbanas do Oriente Médio, visando especialmente Amã, Aleppo, Beirute e Damasco[1]. Em 2010, vários de nossos escritórios intensificaram os esforços a favor dos refugiados em ambientes urbanos, segundo a nova política do ACNUR. Nós selecionaremos algumas cidades piloto para fazer avaliações em tempo real desses programas e identificar as boas práticas para serem aplicadas ao ampliar a política em 2011.
- Coletar e intercambiar exemplos de boas práticas:
Concordamos em realizar um levantamento de boas práticas. Não se trata de algo que possamos fazer sozinhos, e muito apreciaríamos as contribuições de nossa rede de parceiros.
- Incorporar uma nova política sobre refugiados urbanos:
Com base no relatório final do Diálogo, os resultados das cidades piloto e o levantamento sobre boas práticas, vamos estabelecer uma nova política sobre refugiados urbanos em nosso programa para 2011, buscando melhorar continuamente nossa atuação de 2012 em diante. Em termos de recursos, é necessário considerar tanto a dimensão interna – questão essencial de nossa parte – quanto a externa, relativas basicamente à boa vontade dos doadores em dar a devida atenção a esta iniciativa. Conclamamos os países doadores e nossos parceiros a analisarem os desafios das populações deslocadas em ambientes urbanos, fazendo uma abordagem global, onde os projetos de desenvolvimento comunitário sejam administrados principalmente pelos mecanismos de desenvolvimento em nível local.
Não é fácil enfrentar os desafios que nos apresenta o deslocamento urbano – e não o conseguiremos se nos limitarmos às estreitas preocupações institucionais, se não criarmos e fortalecermos as parcerias corretas, ou se acreditarmos que já temos todas as respostas. Os responsáveis pelos planejamentos das cidades no mundo todo estão inovando, experimentando e aprendendo. Devemos trabalhar com eles e com as pessoas que atendemos, as quais geralmente nos lembram que o que elas mais necessitam não é que lhe demos um peixe, mas que lhes ensinemos a pescar.