Por Ir. Rosita Milesi, mscs*
Ao longo de minha trajetória no campo humanitário, tenho sentido meu coração vibrar continuamente com cada gesto do nosso querido Papa Francisco em relação aos migrantes e refugiados. Em minha sensibilidade de mulher defensora dos direitos humanos, vejo nele não apenas um líder espiritual, mas verdadeiramente o “Papa dos Migrantes e Refugiados” – ouso dizer, fazendo uma amorosa comparação com São João Batista Scalabrini, que ambos compartilham esta sagrada missão de serem pais para aqueles que foram forçados a deixar suas terras.
Ainda me comove profundamente recordar aquele gesto profético no início de seu pontificado: sua peregrinação à Ilha de Lampedusa em julho de 2013, após mais uma das incontáveis tragédias que ceifaram vidas preciosas no Mediterrâneo. Ao depositar aquela coroa de flores em homenagem aos que morreram, sepultados no Mediterrâneo, sem nome e sem túmulo, Francisco derramou lágrimas que também eram nossas. Aquelas flores sobre as águas não eram apenas um símbolo – eram um clamor contra a indiferença que permite que o mar se transforme em cemitério, eram um chamado urgente contra toda forma de discriminação, rejeição e xenofobia que fere a dignidade humana.
Com Francisco, o fenômeno migratório ganhou não apenas visibilidade, mas dignidade. Sua voz – sempre serena, mas firme e corajosa – transcendeu os muros eclesiais e alcançou os mais diversos espaços da sociedade global. Como água que persiste e abre caminhos entre as pedras, suas palavras e gestos concretos foram penetrando consciências e transformando corações, independente de crenças ou nacionalidades.
Em seu incansável trabalho para renovar as estruturas da Igreja a serviço dos mais vulneráveis, Francisco criou o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral em 2016, e nele, com especial atenção, constituiu uma seção dedicada inteiramente à pastoral dos migrantes, refugiados e vítimas de tráfico de pessoas. O que mais me tocou neste gesto foi sua decisão de assumir, ele próprio, pessoalmente, por alguns anos, a coordenação desta seção. Era como se nos dissesse, em silêncio eloquente: “vejam, este é o caminho que devemos seguir juntos”. Com essa atitude, ele nos ensinava, pelo exemplo vivo, o valor da acolhida e da integração daqueles que foram arrancados de sua terra, destituídos de suas raízes.
Em suas 47 viagens apostólicas, percorrendo 65 países, Francisco nunca deixou de lembrar-nos sobre nossos irmãos e irmãs em deslocamento forçado. Como uma teia delicada e resistente, suas incansáveis recomendações foram tecendo um manto de proteção – defendendo a acolhida incondicional, a abertura das fronteiras nacionais, a criação de leis mais humanas para regularização migratória, o direito fundamental de migrar e, ao mesmo tempo, o direito a não ser forçado a deixar sua terra. Seu apelo às paróquias e instituições religiosas para que abrissem suas portas às famílias migrantes e refugiadas não foi apenas palavra – foi testemunho vivido quando ele próprio levou para a Itália, sob a proteção do Vaticano, famílias sírias refugiadas.
Com a luminosa Encíclica Laudato Si e tantas outras mensagens, Francisco nos despertou para a íntima conexão entre o cuidado com a Casa Comum e a proteção dos mais vulneráveis. Ele nos mostrou, com clareza profética, como a degradação ambiental, o aquecimento global e as mudanças climáticas – frutos amargos de nossa própria indiferença – tornaram-se hoje as principais causas de deslocamentos humanos forçados, multiplicando violações de direitos, mortes e sofrimentos indizíveis para milhões de pessoas que vagam pelo mundo em busca de refúgio.
Mensagens que ressoam em nossos corações
Ao longo destes anos de pontificado, quantas vezes nos nutrimos das palavras de Francisco! Como pequenas sementes lançadas em terra fértil, cada mensagem sua sobre os migrantes e refugiados floresceu em nossas mentes e corações, inspirando-nos a gestos concretos de acolhida. Suas palavras não foram apenas tinta sobre papel – tornaram-se pão compartilhado nas mesas de tantos projetos de acolhida ao redor do mundo.
Entre as inúmeras mensagens que nos guiaram, algumas ficaram especialmente gravadas em minha alma scalabriniana:
Quando em 2015 nos falou sobre a “Igreja sem fronteiras, mãe de todos”, Francisco nos convidou a superar os limites geopolíticos que dividem a humanidade, lembrando-nos que o amor maternal da Igreja não conhece muros nem alfândegas. Este chamado ecoou profundamente em nosso trabalho no IMDH, onde procuramos acolher a todos sem distinção de origem, credo ou condição.
Em 2017, ao dirigir nosso olhar para os “Migrantes menores de idade, vulneráveis e sem voz”, Francisco tocou em uma ferida especialmente dolorosa. Quantas crianças atravessam fronteiras carregando traumas invisíveis.
A mensagem de 2019, “Não se trata apenas de migrantes”, foi como uma revelação. Sim, quando acolhemos um migrante, não estamos apenas oferecendo um teto ou um prato de comida – estamos confrontando nossos próprios medos, reafirmando nossa humanidade, reconstruindo a cidade de Deus e do homem. Esta perspectiva ampliou nossa visão no IMDH, ajudando-nos a compreender que o trabalho com migrantes é, em essência, um trabalho de transformação social e espiritual.
Em 2020, ao nos lembrar de Jesus como refugiado em “Como Jesus, obrigados a fugir”, Francisco nos convidou a reconhecer o rosto do Senhor em cada deslocado forçado. Esta identificação teológica profunda deu novo sentido à nossa missão, lembrando-nos que em cada pessoa forçada a deixar seu lar, encontramos a sagrada família em fuga para o Egito.
Quando em 2021 nos chamou a caminhar “Rumo a um ‘nós’ cada vez maior”, Francisco tocou no cerne da xenofobia e do nacionalismo que fragmentam nossa humanidade comum. Esta mensagem inspirou nossas ações de sensibilização comunitária e os debates que promovemos nas universidades, buscando ampliar o círculo da fraternidade.
Em 2022, ao propor “Construir o futuro com os migrantes e refugiados”, o Papa nos convidou a ver nestas pessoas não um problema a ser resolvido, mas parceiros na construção de uma nova sociedade. Quantas vezes testemunhei como os talentos, a criatividade e a resiliência dos migrantes enriquecem nossas comunidades quando lhes damos a oportunidade de florescer!
E em sua mensagem mais recente, “Livres para decidir se migrar ou permanecer” (2023), Francisco reafirmou o direito fundamental de cada pessoa de buscar uma vida digna em outro lugar, mas também o direito de não ser forçado a deixar sua terra natal. Esta dupla perspectiva nos conclama e propor e demandar políticas migratórias mais humanas e por ações que enfrentem as causas profundas dos deslocamentos forçados.
É impossível, realmente, condensar em poucas palavras a riqueza do magistério de Francisco sobre migração e refúgio. Mas algumas expressões-chave ficaram gravadas em nossos corações e guiam nosso trabalho diário: “mais pontes e menos muros”; “acolher, proteger, promover e integrar”; “combater a globalização da indiferença”. Mais do que conceitos teóricos, estas palavras tornaram-se bússolas que orientam nossa missão, algo que buscamos viver e implementar em nossas Instituições – IMDH, Casa Bom Samaritano e outros ambientes de atuação.
Em cada criança migrante que acolhemos, em cada família que cruza nossas fronteiras carregando apenas a esperança, vejo refletido o olhar compassivo de Francisco. Seu pontificado não apenas deu voz aos migrantes e refugiados – deu-lhes rosto, história, dignidade. E para nós, que compartilhamos desta missão, deu-nos coragem renovada e a certeza de que não caminhamos sós.
Ao refletir sobre este legado, precisamos nos perguntar: o que nos dizem os olhos de uma criança venezuelana, síria ou haitiana quando cruza nossa fronteira? O que sentimos quando uma mãe congolesa nos conta sua travessia pelos perigos da selva de Darién? Como respondemos quando um jovem afegão nos pede não apenas um abrigo, mas a chance de continuar sonhando? O legado de Francisco nos convida a estas perguntas íntimas e desafiadoras, pois em cada resposta que damos, revelamos não apenas quem somos, mas que mundo estamos construindo para as gerações futuras.
Uma Voz Profética e Firme
Durante sua visita ao Marrocos em 2019, enquanto o presidente Trump anunciava planos para ampliar barreiras físicas na fronteira entre México e Estados Unidos, Papa Francisco demonstrou sua clareza e firmeza ao afirmar que soluções verdadeiras para questões migratórias jamais seriam encontradas na construção de muros. Em vez disso, o pontífice enfatizou a necessidade urgente de justiça social e de correção dos profundos desequilíbrios econômicos que afetam o sistema mundial, abordando assim as causas estruturais da migração forçada.
Mesmo nas primeiras semanas de 2025, já enfrentando fragilidades de saúde, Francisco manteve-se inabalável em sua defesa dos migrantes e refugiados frente às políticas anti-imigração impostas pelo atual governo dos Estados Unidos. Em um gesto de coragem pastoral, o pontífice dirigiu uma contundente carta aberta aos bispos norte-americanos, na qual não apenas condenou as deportações em massa, mas também convocou toda a comunidade católica mundial a uma postura ativa de solidariedade aos migrantes.
“Tenho acompanhado com profunda preocupação a grave crise humanitária que se intensifica nos Estados Unidos devido à implementação de um programa sistemático de deportações em massa”, escreveu o Papa. “Exorto todos os fiéis da Igreja Católica, em cada continente e realidade local, a não ceder às narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. Recordemo-nos sempre desta verdade fundamental: o que é construído com base na força, e não na verdade sobre a igual dignidade de todo ser humano, começa mal e inevitavelmente terminará mal.”
Esta mensagem, longe de ser apenas uma manifestação política, representa a essência do magistério de Francisco: a defesa incansável da dignidade humana como princípio não negociável, especialmente quando esta dignidade é ameaçada por narrativas de exclusão e políticas de rejeição.
Palavras às Irmãs Scalabrinianas
Como Irmã Scalabriniana, carrego no mais profundo do meu ser as palavras de encorajamento que o Papa Francisco nos dirigiu durante uma audiência especial, quando nos reuníamos para um importante encontro congregacional. Naquele momento de bênção e confirmação de nossa missão, suas palavras ressoaram não apenas como um reconhecimento, mas como um verdadeiro chamado profético:
“Obrigado, obrigado por tudo aquilo que vocês fazem pelos migrantes e refugiados,” disse-nos com olhar de genuína gratidão. “Não desanimem diante dos desafios crescentes! Sejam corajosas no testemunho concreto do Evangelho!”
E, com um gesto que nos tocou profundamente, acrescentou: “Eu vos encorajo a colocar vosso carisma scalabriniano a serviço da Igreja universal, para o bem dos migrantes e refugiados em todas as fronteiras do mundo.”
Estas palavras constituem para nós não apenas uma memória preciosa, mas um mandato apostólico que procuramos renovar a cada dia em nossa missão junto aos que foram forçados a deixar suas terras. O reconhecimento do Papa Francisco às Irmãs Scalabrinianas é, para cada uma de nós, um chamado a sermos fiéis ao carisma de nosso fundador, São João Batista Scalabrini, levando consolo, dignidade e esperança a todos aqueles que buscam um novo lar em terras estrangeiras.
Brasília, 01 de maio de 2025
* Texto elaborado com apoio e colaboração de Vanessa de Paula Ponte, coordenadora do projeto Clima e Deslocamentos Humanos, do IMDH.