(Refugiada Regina Maniro brinca com seu filho de 9 meses, Jima Loday, em hospital do campo de refugiados de Kakuma, no Quênia. Foto: Will Swanson/ACNUR)
Para aqueles que têm a sorte de viver confortavelmente e com segurança, o impacto psicológico de ser expulso de casa fugindo de guerras, perseguições ou desastres é difícil de imaginar.
A palavra “trauma” é frequentemente usada para descrever os efeitos angustiantes da fuga e as posteriores consequências do deslocamento forçado, apesar de a realidade ser mais complexa.
Estudos sobre saúde mental mostram que a maior parte dos refugiados responde com “estresse normal” ao deslocamento. Uma pequena porção — não mais do que um em cinco refugiados — apresenta formas leves ou moderadas de problemas mentais, incluindo Transtorno de Estresse Pós-Traumático.
Cerca de 3% a 4% sofrem desordens psicológicas sérias, como transtorno bipolar ou psicose. O oficial de saúde mental da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), Pieter Ventevogel, conversou com o editor do site do ACNUR em Genebra, Tim Gaynor, sobre a saúde mental da população em situação de deslocamento.
Leia abaixo a entrevista:
Tim Gaynor: De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a maior parte das milhões de pessoas forçosamente deslocadas responde com “estresse normal” após deixar suas casas, empregos e, às vezes, suas famílias. Qual seria a reação normal ao perder tudo?
Pieter Ventevogel: Pessoas que são deslocadas à força ou estão envolvidas em outros tipos de emergências humanitárias frequentemente enfrentam eventos horríveis, não há dúvida quanto a isso, o que as torna infelizes. O que você esperaria se sua casa fosse destruída, você tivesse que fugir, seu mundo social colapsasse? O que vemos é que muitas pessoas — por exemplo, na nova crise de refugiados — estão chateadas, estressadas, não conseguem dormir bem, sentem muita raiva e estão tristes. Acredito que isso seja bem compreensível e nem um pouco anormal, porque elas continuam tocando suas vidas, tentam fazer algo. É uma reação compreensível e previsível que desaparece uma vez que as coisas melhorem.
Gaynor: Você ficou surpreso com a resiliência que os refugiados demonstram?
Ventevogel: Muito surpreso. Eu frequentemente penso quando visito campos de refugiados: “o que eu faria nessa situação? Seria capaz de lidar com toda a pobreza e a falta de perspectivas, ou a falta de serviços?”. Então, sim, estou surpreso com a resiliência das pessoas, com a forma com a qual são capazes de continuar e prosperar em um contexto de adversidade. As pessoas são capazes de fazer algo da vida e isso é incrível. A questão é que precisamos impulsionar isso. Só sentar e esperar a comida ser distribuída, uma casa ser dada, não é bom para elas, as torna dependentes, elas perdem vitalidade. Agora, estamos envolvendo os próprios refugiados na resposta humanitária e, para mim, essa é talvez a mais importante intervenção para a saúde mental dessas pessoas.
Gaynor: Enquanto muitos refugiados se mostram notavelmente resistentes, o deslocamento forçado pode causar danos psicológicos. Nesse caso, que tipo de desordens são mais comuns e quão prevalentes são elas?
Ventevogel: Não temos dados muito precisos, porque os contextos são bem diferentes. A situação dos refugiados de Darfur no Chade é bem diferente da situação dos refugiados de Rohingya em Bangladesh. O que em geral podemos dizer é que cerca de 15% a 20% dos deslocados têm problemas de saúde mental, e a maioria apresenta transtornos leves.
Acredito que o principal problema mental entre refugiados tem a ver com a perda e o luto, o que, às vezes, pode levar à depressão. As pessoas podem perder muitas coisas — pessoas queridas, mas também coisas materiais e imateriais, como status, a ideia de “ser alguém”. Os refugiados enfrentam muitas experiências de perda. Essa, para mim, é a questão central da questão ligada aos problemas mentais.
Gaynor: A palavra “trauma” é frequentemente usada pela mídia para descrever o estado psicológico daqueles afetados por guerras e perseguições. Usar esse termo ajuda?
Ventevogel: Há uma diferença entre ter passado por eventos terríveis e “estar traumatizado”, que significa, clinicamente, algo bastante específico. A emoção central no transtorno de estresse pós-traumático é, como diz a própria expressão, estresse. As pessoas ficam estressadas mesmo em situações em que o fator estressante não está mais presente. Têm lembranças vívidas sobre o que ocorreu, sonhos, pensam nisso o tempo todo. É uma síndrome bastante distinta, e acredito não ser muito útil usar essa terminologia para classificar toda uma população. Ao fazer isso, você classifica uma população inteira como doente mental. Implicitamente, está dizendo que há algo de errado com essas pessoas. Podemos usar outras palavras em vez de trauma. Podemos dizer que essas pessoas passaram por coisas ruins, que perderam muitas coisas — isso é bem menos “patologizante”.
Gaynor: Em qualquer contexto, algumas pessoas irão experimentar desordens mentais severas como psicose, depressão ou bipolaridade. Como o estresse adicional do deslocamento forçado pode afetá-las?
Ventevogel: Uma pessoa com essa vulnerabilidade pode permanecer sem sintomas quando a situação ao redor é boa. Então, imagine uma pessoa em um vilarejo ou cidade, com sua família, a situação está estável, ela conhece as pessoas ao redor, as pessoas a conhecem. Tudo está indo bem. Imagine agora que essa pessoa precisa fugir porque tudo ao seu redor está destruído, pessoas foram assassinadas, e se vê em um enorme campo de refugiados, com desconhecidos. Todos os elementos de segurança que essa pessoa tinha foram embora. Isso pode fazer com que o indivíduo desenvolva sintomas de uma desordem mental severa. Em qualquer sociedade, há pessoas com doenças mentais severas, cerca de 2% ou 3%, e verificamos que entre os refugiados esse número sobe para 3% ou 4%. Ainda não é muita gente, mas aumenta. Isso é importante por conta da questão de proteção. Pessoas que têm transtorno bipolar estão vulneráveis a abusos de direitos humanos e frequentemente não conseguem se defender.
Gaynor: O que pode ser feito para identificar e atender as necessidades dos refugiados?
Ventevogel: É importante para pessoas com desordens mentais severas ter acesso a bons serviços de saúde. Elas precisam ser atendidas por profissionais de saúde mental. O problema é que em muitos lugares em que trabalho, esses profissionais não estão facilmente disponíveis. Então, é preciso treinar não especialistas. Isso significa que, em cada unidade de saúde, um médico ou um enfermeiro precisa ser treinado para identificar e administrar pessoas com problemas de saúde mental. (…) É possível um treinamento focado para não especialistas, que podem fazer muito pelos pacientes.
Outra coisa é motivar pessoas a buscar tratamento. Pessoas com desordens mentais severas podem nem sempre conseguir fazer isso por si mesmas. Então, é necessário trabalhar perto de líderes comunitários, religiosos, grupos de mulheres, de juventude, para identificar as pessoas em suas comunidades que sofrem de problemas severos de saúde mental e ajudá-las a acessar tratamento.
Acredito que algumas das mais poderosas intervenções de saúde mental não são medicamentos, mas estão relacionadas ao empoderamento de pessoas e ao fortalecimento das comunidades de refugiados. Não podemos esquecer que as comunidades de refugiados são comunidades artificiais. As pessoas são levadas para lá por acaso. Então, precisam de apoio para recriar as conexões sociais. Isso vem primeiro. Há muito tempo eu, como médico, me dei conta de que não se trata apenas de curar a mente, mas também é importante ajudar as relações entre as pessoas a florescer. No ACNUR, este é um elemento central para o que chamamos de Comunidade Baseada em Proteção.
Retirado de: nacoesunidas.org/incidencia-de-doencas-mentais-e-baixa-entre-refugiados-diz-oficial-da-onu/