Falar em mobilidade humana significa abordar a questão dos excluídos da nossa sociedade. Vivemos numa sociedade global onde as pessoas cada vez mais se deslocam por se sentirem excluídas dos benefícios e recursos disponíveis que, em princípio, deveriam ser accessíveis a todos.

 

OS FUNDAMENTOS DE UMA NOVA AGENDA DOS MIGRANTES

Rosita Milesi, mscs

Virgilio Leite Uchoa

Falar em mobilidade humana significa abordar a questão dos excluídos da nossa sociedade. Vivemos numa sociedade global onde as pessoas cada vez mais se deslocam por se sentirem excluídas dos benefícios e recursos disponíveis que, em princípio, deveriam ser accessíveis a todos.

A globalização pode ser, em si, fato positivo. Contudo, o que poderia ser fator de aproximação e interligação das pessoas e dos povos, na verdade é hoje em dia confundida com o processo de financeirização do mundo. Todos os espaços da vida humana passam a ser ocupados pela força do dinheiro e as leis inexoráveis do mercado competitivo. Obscurescem-se os valores intrínsecos da pessoa humana e sua dignidade. A inclusão ou exclusão não são orientados por direitos inatos mas em função dos critérios estabelecidos pela nova ordem mundial, dominada pelo financeiro e o econômico, pela crescente concentração da riqueza nas mãos de poucos e a conseqüente pauperização da maioria.

A sobrevivência no mundo globalizado, com ênfase no econômico e financeiro, se torna difícil e complexa. Cresce a competição cujo único critério é o lucro e a prosperidade financeira, em vez de solidariedade e luta pelos espaços de direitos sociais.

Há uma grande expectativa em torno de um salto de qualidade a ser dado. Espera-se que o espaço global não se reduza apenas à globalização financeira, diante de frustrações acumuladas apesar de tanta esperança aberta com as conquistas de direitos sociais.

A década de 90 foi pródiga em conferências mundiais no que diz respeito à preservação e garantia do meio ambiente, do direito das crianças, dos direitos humanos em geral, do direito de morar, do direito de comer e não passar fome, do direito da mulher.

 

O processo de hegemonia financeira instaurado perverteu as iniciativas capazes de articular tais direitos. Este processo dificultou vislumbrar a síntese daqueles direitos. Havia um amplo espaço novo de possibilidades reais de um novo mundo de direitos, mais solidários e humanamente globais.

A pressão da economia neoliberal é de tal ordem que, não obstante alguns reconhecidos esforços da sociedade, praticamente desaparecem os estados nacionais como fator de regulamentação dos direitos humanos e sociais. Acordos comerciais e interesses de grandes corporações impõem políticas de flexibilização de direitos fundamentais como, por exemplo, o do trabalho. Aos poucos os estados abandonam a sua função reguladora do bem comum e de defesa dos mais frágeis.

Neste contexto o fenômeno das migrações é visto mais como fluxo de mão de obra a serviço de interesses dessa nova ordem mundial mercantilista. Aceitar ou não seres humanos no espaço de determinada nação, seres esses que andam pelo mundo por causa de inúmeros e justos motivos, torna-se também uma questão definida pelos interesses das leis e exigências do mercado.

A hegemonia do pensamento único, presente neste mundo globalizado e financeiro, controla as políticas migratórias das nações. Na pratica apenas pode escolher onde ficar e ter direitos de ir e vir, sem controle, os que têm e detêm o poder econômico e financeiro.

A política que define os fluxos migratórios, neste contexto, é antes de tudo dominada pelos mecanismos de repressão. Dar um salto de qualidade em direção a uma globalização mais solidária significa também mudar os rumos e os conceitos das políticas migratórias, assim como a própria visão de migrante e dos seus direitos.

A nova perspectiva de direitos universais do cidadão não pode dar espaços para alimentar as exclusões, os racismos, a indiferença para com o drama humano dos migrantes e dos refugiados. Todas as nações deveriam ser capazes de ter portas abertas a todo e qualquer ser humano. O egoísmo e intolerância que vão se impondo em muitas nações, sobretudo à medida em que se submetem à dominação neoliberal, são o grande obstáculo para a prática da cidadania mundial e solidária.

 

Urge enfatizar esse novo aspecto dos direitos humanos: o direito de ser cidadão do mundo. “A migração alarga o conceito de pátria para além das fronteiras geográficas e políticas, fazendo do mundo a pátria de todos”, escreveu nosso fundador, J. B. Scalabrini, já no início de século passado.

É urgente criar novos espaços sociais para todos e tomar decisões políticas capazes de ratificar os valores e tomar atitudes práticas consoante a essa nova política do direito fundamental do migrante poder viver com dignidade no país que desejar.

Além de se eliminarem todos os excessos da mercantilização na regulamentação dos fluxos migratórios é preciso colocar no centro das decisões das políticas sobre migrantes a solidariedade e o acolhimento e não o lucro e o dinheiro.

Pesa muito na definição de políticas migratórias o fator cultural presente, e muito sob a forma de preconceitos e exclusões mantidos pela intolerância e o xenofobismo das nações contra os mais pobres, contra os de outra cor ou raça, contra os migrantes em geral. Ao enfatizar a dignidade do ser humano em quanto tal põe-se em evidência um novo conceito cultural vinculado à área dos direitos humanos.

Isso significa que os laços humanos das pessoas e dos cidadãos, o mútuo e respeitoso acolhimento dos mesmos em qualquer circunstancia ou lugar, é o principal e verdadeiro patrimônio da humanidade. Infelizmente o fator cultural da intolerância, mesmo onde a globalização financeira já tenha sido um pouco humanizada, pesa e muito como fator definidor de políticas públicas a respeito dos fluxos migratórios.

O direito de ser cidadão do mundo ainda é um sonho, mas não pode ser esquecido ou abafado. Precisa ser lembrado a cada instante, a cada momento por todos os que militam nas causas pela superação de todas as exclusões, discriminações e preconceitos. O direito e o dever de acolher o migrante cidadão, em qualquer parte do mundo precisa se inscrever entre a lista dos direitos nativos e fundamentais de todos e cada um dos seres humanos. Homens e mulheres, pobres ou ricos, não importa de que nação, sexo, cor, origem étnica sejam, não podem ser discriminados e tratados desigualmente no momento em que escolhem livremente onde morar ou, com mais razão, quando são forçados a migrar.

O Brasil é hoje um exemplo concreto de uma nação em desagregação no que diz respeito a essa submissão a uma globalização equivocada. A recente crise de energia por falta de visão estratégica e visão de bem comum torna o país prisioneiro das suas próprias opções em função deste quadro hegemônico. As dimensões da crise humana que isso significa ainda estão por ser avaliadas. A crise energética é um exemplo de imprevidência submissa que hoje atinge a todos e particularmente os já excluídos da sociedade. Reverter esse quadro de exclusão é uma luta cidadã de resgate de direitos humanos, sem precedentes em nossa história.

É evidente que esse quadro agrava o quadro cultural daqueles que já são excluídos por motivos internos e culturais próprios da nossa sociedade. Estes excluídos são os que mais tem necessidade de circular pelo país e fora dele em busca de condições de sobrevivência. Eles são os mais pobres da sociedade, são os excluídos por motivos preconceituosos que, necessariamente, precisam ser acolhidos e encaminhados com mais atenção e preocupação. Sobre eles pesam especialmente as tais barreiras culturais. São estas que acrescentam ao assunto das migrações os grandes preconceitos: o machismo, o racismo, a xenofobia.

No Brasil e na América Latina, o que, aliás, não chega a ser diferente em tantas outras partes do mundo, pesam sobre os excluídos tais preconceitos culturais de longa data, introjetados que estão nas consciências de quem se vê e é considerado oprimido.

Além da fundamental e característica exclusão fomentada pelo mercantilismo financeiro, em igualdade de condições com os outros cidadãos, algumas categorias estão especialmente afetadas. A mulher é descriminada pela cultura e educação machista. Os negros e negras, os índios e as índias igualmente o são pelas suas características raciais. Não podemos esquecer, ainda, as exclusões e descriminações determinadas pelas desigualdades regionais. Sabemos, por exemplo, como os nordestinos brasileiros, em algumas regiões, são profundamente discriminados.

 

 

ALGUMAS PROPOSTAS A PARTIR DA EXPERIÊNCIA E

DAS AGENDAS DOS MIGRANTES

A militância a que nos dedicamos há alguns anos na defesa de migrantes indocumentados e de refugiados, o contato com a problemática deste segmento de excluídos da sociedade e uma pesquisa que realizamos junto a expressivo número de entidades que atuam com imigrantes e refugiados no Brasil e com brasileiros no exterior nos possibilitam apresentar nesta Conferência algumas propostas a partir da própria agenda dos migrantes e de quem com eles atua e caminha.

  • Ratificação da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de seus Familiares, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, em 18/12/1990, que estabelece normas de tratamento igualitário entre trabalhadores nacionais e estrangeiros e atribui direitos humanos fundamentais a todos os trabalhadores migrantes, legais ou ilegais.
  • Revisão da legislação nacional. Adequar a Lei do Estrangeiro (Lei nº. 6.815/80), nascida num contexto histórico de ditaduras latino-americanas, para que possamos contar, no país, com um instrumento que transcenda o aspecto puramente jurídico, numa visão social e humana, eliminando sua roupagem predominantemente punitiva. A legislação favoreça e garanta os direitos da pessoa do migrante no contexto da integração latino-americana, bem como os objetivos inscritos na Constituição Federal.
  • Contribuição positiva para solucionar as questões da migração clandestina e irregular. Acordos bilaterais entre os países de e/imigração, projetos de cooperação específicos e oportunidades mais amplas de obtenção da permanência legal no país.
  • Concessão de anistia, ampla e irrestrita, propiciando ao estrangeiro a oportunidade de regularizar sua estada legal no país.
  • Agilização dos processos de regularização de estada que tramitam nos Órgãos e Repartições Públicas.
  • Formação dos agentes administrativos sobre a realidade da migração, a atenção ao diferente, o respeito à dignidade de cada pessoa, independentemente de sua origem.
  • Revisão da questão das multas pela estada irregular a quem solicita permanência com base em prole e/ou cônjuge brasileiros. Considerar os casos humanitários e, nestes, prever a possibilidade de redução, quando não isenção, das multas.
  • Autorização de permanência legal ao imigrante que se dedique a qualquer tipo de trabalho lícito, não beneficiando apenas categorias qualificadas e seletivas.
  • Revisão da legislação relativa aos estudantes estrangeiros e ao reconhecimento de estudos e diplomas emitidos nos países de origem dos migrantes.
  • Abertura à proteção, reconhecimento e assentamento de refugiados, bem como maior apoio financeiro aos refugiados nos primeiros meses de residência no país.
  • Presença mais significativa dos nossos Consulados junto à comunidade brasileira no exterior e propostas concretas de apoio e ajuda. Constatam-se, entre os migrantes, particularmente em alguns países, casos de forte depressão, que levam ao alcoolismo, às drogas e ao suicídio. Seja, pois, fortalecida a cooperação entre consulados e organizações da sociedade, para acompanhar os imigrantes em suas dificuldades e possibilitar-lhes uma integração gradual no país de residência.
  • Ação dos Consulados Brasileiros no sentido de criar oportunidades aos brasileiros residentes no exterior e aos seus filhos de contato com sua cultura e língua, promovendo cursos e monitorando escolas para favorecer e fortalecer os laços culturais de suas raízes, facilitando sua vida no país de residência e o futuro retorno ao Brasil.
  • Aperfeiçoamento dos métodos para recadastramento dos eleitores e a prática das eleições fora do Brasil junto aos Consulados, pois o atual serviço deixa muitos brasileiros sem condições de exercerem seu direito de voto.
  • Denúncia e combate ao tráfico de seres humanos. Máfias subjugam, exploram e escravizam, através do convencimento, de promessas enganosas, de ameaças, de falsas esperanças, milhares de pessoas de todas as idades, desde as crianças de tenra idade, indefesas, utilizadas para o comércio de órgãos e para o trabalho escravo infantil, até os trabalhadores, explorados, ludibriados e escravizados através de contratos injustos e não cumpridos, do confisco de documentos pessoais, da cobrança de dívidas impagáveis a eles atribuídas pelos próprios traficantes referentes à viagem e às despesas de translado.
  • Construção de uma nova concepção, um salto de qualidade se assim podemos dizer, das migrações, onde o ser humano seja colocado no centro do fenômeno; conceber a migração a partir da motivação fundamental de quem parte levando consigo o sonho do contributo positivo, e que vê no horizonte de sua trajetória a possibilidade de ser mais útil à sociedade, oferecendo uma dimensão valiosa de seu ser, seus dons particulares e sua força de trabalho.
  • Implementação de ações por parte do Governo Federal no sentido de proporcionar as condições necessárias à efetiva implementação e cumprimento da Lei 9474/97, que criou o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE0 e estabelece as diretrizes nacionais sobre o tema do refúgio.
  • Desenvolvimento de uma mentalidade pró-ativa da sociedade brasileira com relação aos/às migrantes e refugiados/as, de tal maneira que possamos contribuir para a reconstrução da dignidade e da cidadania para todos esses que, como todo o ser humano são” portadores de direitos inalienáveis que não podem ser violados nem ignorados” (João Paulo II)
Conclusão

A pesquisa que realizamos e a prática cotidiana evidenciam o drama dos indocumentados. As restrições legais, o difícil acesso à documentação somado à excessiva morosidade dos processos burocrático-administrativos mantêm os migrantes sob um jugo pesado de exclusão e de exploração, quando não escravidão, uma afronta aos direitos fundamentais tão apregoados na teoria e na eloquência de tantos discursos. Os princípios éticos, a dignidade do ser humano e as próprias Convenções Internacionais reconhecem que os direitos humanos não nascem do fato da pessoa pertencer a um determinado país, mas, sim, decorrem de seus atributos de ser humano.

A Conferência Internacional do Cairo, de 1994, sobre População e Desenvolvimento, “representou uma esperança de progresso histórico, proporcionando impulso substantivo à mais positiva das tendências dos tempos presentes: a que estabelece os direitos humanos como fundamento, condição e meio para a realização do desenvolvimento da humanidade.”[1]

Em nossa sociedade, complexa e caracterizada por múltiplas tensões, a cultura da acolhida pede que se sigam leis e normas prudentes e clarividentes, que permitam valorizar o caráter positivo da mobilidade humana.[2]

As migrações aproximando os múltiplos componentes da família humana tendem à construção de um corpo social sempre mais amplo e variado e como diz Mario Vargas Llosa (in Folha de S. Paulo, 1/9/96, p. 2), “a imigração de qualquer cor e sabor é uma injeção de vida, energia e cultura e os países deveriam recebê-la como uma bênção” sendo que “a tarefa, o papel histórico das migrações é transformar fatos econômicos em fatos culturais e fazer evoluir o direito.” [3]

Oportuno citar Darcy Ribeiro, que gostava de recordar uma passagem de suas peregrinações latino-americanas. Interrogado, na fronteira entre dois países, a respeito de sua identidade, sua raça, respondeu, abrindo os braços: “humana”. Eis a relatividade da pertença a um ou a outro país, o querer mergulhar na humanidade como uma família global e sua responsabilidade e compromisso pessoal neste processo.

Frente a um fenômeno que tem causas e características supranacionais, diz Lélio Mármora, as políticas de cada país, por mais abertas que sejam, o são ainda pouco. Faz-se necessário um conceito mais amplo, que inclua as variáveis internacionais no tratamento do tema migratório, a fim de que as políticas nacionais possam incluir estratégias concretas assumidas em consensos regionais e mundiais para que as fronteiras formais nunca possam sobrepor-se às fronteiras éticas.[4]



[1] José Augusto Lindgren ALVES. A conferência do Cairo sobre população e desenvolvimento e o paradigma de Huntington, in MARGEM, São Paulo, Educ, n. 4, 1995, p. 54.

[2] Cf. JÕAO PAULO II. La solidarietá della Chiesa per i Migranti e gli Itineranti. Jubileu dos Migrantes e dos Itinerantes, Roma, 2000.

[3] Antonio PEROTTI. L’appartenenza degli stranieri a diverse culture e le tensioni che ne risultano. In: Conselho da Europa, Diálogo sobre os direitos humanos dos estrangeiros na Europa, Funchal-Madeira, 17-19/10/1983, Paris, Ciemi, 1983 (mimeo).

[4] Cf. Lélio MÁRMORA. Las políticas de migraciones internacionales, Buenos Aires, Alianza, 1997.