Mudanças Climáticas e Deslocamentos: implicações sobre os direitos humanos

Adotar uma postura frente às mudanças climáticas a partir do ponto de vista dos direitos humanos com base no princípio da dignidade inerente à pessoa implica que a cifra total de deslocados não seja o único que importa. Cada pessoa que se vê obrigada a abandonar seu lar contra sua vontade deve receber uma solução que respeite seus direitos, proteja-os e, se é necessário, cumpra-os segundo reconhece a legislação internacional em matéria de direitos humanos.

 

Scott Leckie[1]

Adotar uma postura frente às mudanças climáticas a partir do ponto de vista dos direitos humanos com base no princípio da dignidade inerente à pessoa implica que a cifra total de deslocados não seja o único que importa. Cada pessoa que se vê obrigada a abandonar seu lar contra sua vontade deve receber uma solução que respeite seus direitos, proteja-os e, se é necessário, cumpra-os segundo reconhece a legislação internacional em matéria de direitos humanos.

Os direitos humanos constantes na legislação internacional, que são especialmente pertinentes ao debate sobre o deslocamento provocado pelas mudanças climáticas são: o direito a moradia adequada e os direitos que dela derivam, o direito à titularidade garantida, o direito a não ser discriminado arbitrariamente, o direito à terra e aos direitos que dela derivam, o direito à propriedade e ao uso e gozo pacífico dos bens, o direito à intimidade e ao respeito ao lar, o direito à segurança da pessoas, à liberdade de movimento e a escolher o lugar de residência, à restituição ou compensação pela moradia, à terra e à propriedade, depois do deslocamento forçado. Contemplam-se todos estes direitos e obrigações com o objetivo de que as pessoas de qualquer lugar possam viver com segurança em seu terreno, residir numa moradia acessível e adequada, com acesso a todos os serviços básicos e se sintam seguras sabendo que estes direitos serão plenamente respeitados, protegidos e realizados.

De fato, o marco normativo que contempla estes direitos é considerável e está em constante evolução e expansão. É extenso o conjunto de leis e normas internacionais sobre os direitos humanos que os governos podem aplicar para construir os marcos jurídicos, políticos e institucionais necessários para garantir que qualquer direito relacionado às mudanças climáticas e, sobretudo, com soluções duradouras no que diz respeito ao deslocamento, sejam plenamente respeitados, protegidos e cumpridos.

Contudo, quando nos fixamos na atuação dos estados e da comunidade internacional nos últimos 60 anos de experiência em matéria de direitos humanos, e quando escutamos a voz de milhões de pessoas no mundo inteiro que continuam sem desfrutar do mínimo de seus legítimos direitos no que se refere à moradia, à terra e à propriedade, fica evidente que solucionar as conseqüências das mudanças climáticas sobre estes direitos está muito longe de ser uma tarefa simples.

Milhões e milhões de pessoas perderam sua casa e suas terras devido a conflitos, à avidez de investidores, ao desenvolvimento mal planejado e aos desastres naturais (terremotos, inundações e tsunamis). Infelizmente, são muito poucos os que viram seus direitos respeitados, os que se beneficiaram com uma melhoria lenta e gradual de sua moradia e condições de vida depois de cessada a situação que provocou seu deslocamento. Esta circunstância deve servir para recordar-nos que devemos dar prioridade às estratégias baseadas nos direitos humanos na hora de abordar a dimensão do deslocamento motivado pelas mudanças climáticas. A história revela que o tratamento que a maioria dos países dispensa às vítimas quanto ao seu direito à moradia, à terra e à propriedade, nestes deslocamentos, é muito deficiente.

Em muitas situações catastróficas, os deslocados retornam a seus lares assim que as circunstâncias o permitem e iniciam rapidamente a árdua e difícil tarefa de reconstruir sua condição de vida anterior. Em outros casos, impede-se aos deslocados, de maneira arbitrária ou ilegal, de regressar e recuperar seu lar. Por exemplo, no Sri Lanka e Aceh, segue-se impedindo fisicamente a milhões deles de regressarem a seus lares depois do tsunami asiático de 2004, apesar de seu evidente desejo de fazê-lo. Ainda que se tenha dedicado consideráveis esforços para tratar o deslocamento e o retorno no contexto de conflitos armados, faz muito pouco que os profissionais começaram a explorar os vínculos essenciais entre o deslocamento, os desastres naturais e meio-ambientais e as soluções duradouras relativas ao deslocamento no marco dos direitos humanos.

Boas Práticas

Parece que os que trabalham depois de um desastre natural conseguem um número cada vez maior de conclusões importantes. Por exemplo, as boas práticas indicam que todos os deslocados devem ter direito a regressar voluntariamente (restituição da moradia, terra e propriedade) e sem discriminação a seu lar. Em outras situações posteriores à catástrofe, os esforços de reinstalação realizados no próprio local demonstraram ser o meio mais eficaz para proporcionar ajuda às vítimas. Atualmente, a normativa internacional respalda o direito das populações afetadas por um desastre natural a regressar e recuperar seu antigo lar e terras, se assim o desejam. Os que propiciam dito regresso devem trabalhar para:

ü    Eliminar qualquer legislação discriminatória sobre heranças e propriedade que impeça uma transmissão equitativa dos bens aos sobreviventes, em concreto às mulheres e crianças, e que garanta que estas não sofrem discriminação direta ou indireta nos esforços de ajuda e reconstrução.

ü    Assegurar que todos os esforços de reconstrução tenham em total consideração as necessidades dos grupos mais vulneráveis ou marginalizados, como as minorias étnicas, as crianças, os idosos, os deficientes, os enfermos crônicos e as famílias monoparentais ou compostas só por menores de idade.

ü    Evitar que se impeça o regresso de forma ativa, assim como impedir que os funcionários públicos ou as redes de delinqüentes se apropriem de terras.

ü    Garantir a existência de programas para proporcionar refúgio ou moradia que estejam bem providos de recursos e bem coordenados.

ü    Fomentar a participação de toda a comunidade no processo de reconstrução. Conscientizar as autoridades locais de que a reconstrução de moradias pode representar o elemento de mais longo prazo em qualquer processo de recuperação e ajudá-las a planejá-lo.

Felizmente, entende-se cada vez melhor que a realocação ou o reassentamento devem ocorrer unicamente como último recurso e só depois de examinar detalhadamente todas as alternativas possíveis. Aceita-se, cada vez mais, o princípio de que, quando o reassentamento constitui a única opção, depois de estudar todas as vias  possíveis, a realocação permanente não deve dar lugar jamais à falta de moradia e deve proporcionar a todos, por direito, um alojamento alternativo que cumpra as normas internacionais de direitos humanos relativas a uma moradia adequada.

Contudo, é provável que o deslocamento induzido pelas mudanças climáticas apresente novas e maiores dificuldades. Os Estados e sua população ainda terão de assimilar os efeitos e as conseqüências de um deslocamento permanente e irreversível provocado pelas mudanças climáticas e pela elevação do nível do mar. Alguns arquipélagos, como as Ilhas Carteret, Tokelau e Vanuatu, já começaram a reassentar de forma permanente sua população devido à perda de território com o aumento do nível do mar e a salinização dos recursos de água doce. É evidente que estes e outros casos apresentam só um pequeno começo do que se prevê que venha a ser a maior migração global em massa da história da humanidade.

Não há dúvida de que as respostas das políticas de curto prazo serão similares às que já se aplicam após muitos conflitos armados e desastres naturais, e consistirão, em grande parte, em programas de refúgio, acampamentos e assentamentos de migrantes forçados e outras medidas. As políticas de longo prazo devem embasar-se, com maior profundidade, no marco do direito à moradia, à terra e à propriedade, e incluir soluções como prover casas e terras alternativas, compensar e oferecer novos meios de subsistência e é de se esperar que se baseiem na experiência do reassentamento permanente, graças ao trabalho realizado no mundo inteiro.

Conclusões

Dados os problemas que representa e representará o deslocamento provocado pelas mudanças climáticas, é muito urgente:

  • Desenvolver marcos institucionais nacionais adequados: por exemplo, em fevereiro de 2008, requereu-se às prefeituras da Austrália que realizassem exercícios de planejamento completo, relativo às mudanças climáticas, para todas as comunidades ameaçadas por inundações. Este e outros exemplos semelhantes podem servir de modelo para outras nações que desejem mitigar as consequências e adaptar-se às futuras mudanças do clima.
  • Desenvolver marcos institucionais internacionais adequados: os Estados e o ACNUR devem examinar, de forma sistemática, as implicações da incorporação destas questões em seu mandato legal e em suas operações diárias.
  • Promover a evolução do direito internacional: quem sabe modificar a Convenção de 1951 no dê resultado, porém um novo Protocolo à Convenção poderia ter efeitos positivos. Uma consequência importante relativa à maior atenção que se presta às implicações das mudanças climáticas para os direitos humanos poderia consistir na adoção de uma nova normativa internacional na matéria. Esta normativa, ou talvez um conjunto de normas que constituiriam os princípios internacionais sobre a relação das mudanças climáticas e os direitos humanos seria de grande ajuda aos governos nacionais que buscam orientação sobre como enfrentar estes desafios.
  • Aumentar o Fundo de Adaptação Global: estabelecido durante a Cúpula de Bali de 2007, o Fundo se encontra com um déficit mínimo de 9.750 milhões de dólares. Não é o melhor momento para que o mundo rico se mostre mesquinho.

Desenvolver medidas de desapropriação de terras em virtude do direito e investir no banco rural: deve-se animar os governos do mundo inteiro para que revisem sua legislação nacional relativa à expropriação de terras. O deslocamento provocado pelas mudanças climáticas pressionará sobremaneira as cidades e as zonas desprovidas que as rodeiam. Os governos devem localizar as terras não utilizadas para que no futuro possam reassentar sua população e comunidades, se for necessário.



[1] Diretor e Fundador da organização Displacement Solutions (www.displacementesolutions.org).