Mesmo com mais de cem dias de governo, críticas persistem, mas a biografia de Lula não se esgota em suas lições. Dos vários aspectos que a compõem, centramo-nos na trajetória mais penosa do Presidente, da seca de Garanhuns rumo ao litoral paulista e, depois, à cosmopolita capital. A viagem transforma o menino pernambucano em companheiro de inúmeros exilados da história humana, transforma-o, ao longo da carona do pau-de-arara, em migrante da fome e da seca.
João Paulo Santos[1]
Mesmo com mais de cem dias de governo, críticas persistem, mas a biografia de Lula não se esgota em suas lições. Dos vários aspectos que a compõem, centramo-nos na trajetória mais penosa do Presidente, da seca de Garanhuns rumo ao litoral paulista e, depois, à cosmopolita capital. A viagem transforma o menino pernambucano em companheiro de inúmeros exilados da história humana, transforma-o, ao longo da carona do pau-de-arara, em migrante da fome e da seca.
A migração parece, antes de tudo, pobreza, miséria, incapacidade de sustento, que nutrem uma necessidade de fuga. Mas, com ela, pelo caminho, eis que o desespero da terra ácida, a falta de rumo, a fome e a proximidade com a morte dão lugar a um jeito de sonho, a uma esperança de nova vida, de trabalho e dignidade. Tais sentimentos foram companheiros do pequeno Luís Inácio em sua viagem… e o são, dia-a-dia, dos milhares que abandonam a cidade natal, o país querido, rumo ao inesperado. Mesmo com sombras, irradiam feixes de possibilidades.
O brilhar dos olhos era o mesmo, de qualquer migrante e do migrante Luis Inácio: o deslumbramento perante o novo, o possível, o abundante. Eis a terra para trabalhar, eis o lugar e o caminho pelo qual o ser humano sonha conquistar espaço na sociedade. Lula parte para a luta: engraxate, tintureiro… as tentativas são muitas, tantas quantas as frustrações perante uma sociedade que lhe impunha a alcunha de segunda categoria, de nordestino invasor, relegado a um fundo de bar, vivendo privações que, não raro, se repetem em nosso contexto, atingindo os que, hoje, buscam vida com dignidade.
Lula, por sorte dele e nossa, termina por achar hospitalidade em muitos que o ajudam na batalha da busca insistente e da sobrevivência. Entra no SENAI e torna-se metalúrgico. O resto da história todos já a conhecemos. Lula foi um migrante que deu certo. Lutou pelos seus direitos e, mesmo sendo relembrado, a cada dia, da discriminação, muda, pela teimosia do próprio trabalho, o seu caminho, o de outros e o de um País inteiro. Trabalhador incansável, como é típico do migrante, torna-se referência e protagonista.
Eleito Presidente, nosso voto consagra também a certeza de que não foi em vão seu passado de itinerante da esperança e do trabalho. Seu protagonismo de migrante, seu multiculturalismo da vida, o fez capaz de entender o mundo complicado dos sistemas financeiros das megalópoles, sem esquecer de onde veio, sem falsificar o que passou. “Vou ser o Presidente do Sertão, porque sei o que é fome”, disse o migrante, num simbolismo de exclusão.
Nosso voto aposta também na lembrança do Presidente Migrante do Brasil, de que hoje nossa pátria tem milhares de filhos e filhas emigrados, temos deslocamentos internos, impelidos e forçados, que ainda trazem contradições e indignidades para brasileiros e brasileiras. Temos migrantes paraguaios, bolivianos, uruguaios, migrantes protagonistas da cidadania universal, que buscam nosso país com o mesmo brilho que iluminou outrora os olhos de Lula. E neste universo, nosso voto confia num governo que porá em prática o Acordo de Livre Residência firmado entre os países do Mercosul, que ratificará a Convenção da ONU sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e de suas Famílias, que considerará a inadiável necessidade de uma nova lei de estrangeiros pautada por princípios de uma lei de imigração e de solidariedade.
Sabemos que o migrante guarda no peito a gratidão pela pátria que o acolhe e lhe dá o pão, mas sabemos, igualmente, que o migrante de Garanhuns guarda também a lembrança da solidariedade dos companheiros e companheiras, sem olvidar-se de que o chão árido persiste e que mais e mais pessoas lutam por uma peregrinação que também lhes traga fagulhas de esperança.
[1] João Paulo Santos é estudante de direito e trabalha no Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), em Brasília-DF.