Carregando sonhos e tristes histórias de vida, os refugiados buscam fugir das perseguições, das guerras e conflitos que ameaçam sua vida. Não é meramente uma quantidade de seres humanos que está a caminho, mas uma proposta humanitária que deve despertar os governos, a população, as entidades e os indivíduos para uma revisão de valores e para a promoção de iniciativas concretas a favor da vida e da proteção do ser humano cuja vida está em perigo.
Rosita Milesi, mscs
O fenômeno migratório tornou-se uma realidade amplamente conhecida e notória. No contexto da economia globalizada, da revolução dos transportes e das telecomunicações, cresceu substancialmente o número de pessoas em mobilidade, ao mesmo tempo em que se diversificaram os lugares de origem, trânsito e destino, como também se tornaram mais complexas suas rotas, raízes e conseqüências.
Neste conjunto, situam-se também os Refugiados, considerados os “vulneráveis entre os vulneráveis”. Não se deslocam porque querem, são compelidos ou constrangidos a tal. Homens, mulheres e crianças são obrigados a deixar sua pátria por fundado temor de perseguição, seja por motivos de raça, religião, nacionalidade ou opinião, seja pela própria violação de direitos e falta de proteção do seu Estado.
Carregando sonhos e tristes histórias de vida, os refugiados buscam fugir das perseguições, das guerras e conflitos que ameaçam sua vida. Não é meramente uma quantidade de seres humanos que está a caminho, mas uma proposta humanitária que deve despertar os governos, a população, as entidades e os indivíduos para uma revisão de valores e para a promoção de iniciativas concretas a favor da vida e da proteção do ser humano cuja vida está em perigo.
1 – Quem é Refugiado?
Refugiado, conforme a Convenção de Genebra, é toda a pessoa que “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode, ou em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual, em conseqüência de tais acontecimentos não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”.
A partir de 1997, a legislação brasileira acrescenta uma nova situação, considerando refugiadas também “as vítimas de violação grave e generalizada dos direitos humanos” (art. 1º).
A tabela a seguir, busca registrar alguns itens que podem ajudar a distinguir entre imigrantes e refugiados. Mas, tenhamos presente que estes elementos nem sempre são tão nítidos, claros, perceptíveis nas situações vividas pelas pessoas. Neste âmbito, sublinha-se a importância de ter em consideração os chamados “fluxos mistos”, ou seja, nos mesmos trânsitos, nas mesmas fronteiras, nos mesmos grupos humanos, podem estar presentes tanto migrantes, exercendo seu direito de migrar, quanto pessoas necessitadas de proteção, as quais devem merecer atenção específica.
Itens indicativos |
Imigrante |
Refugiado |
Está fora do seu país |
sim |
sim |
Deslocamento forçado por perseguição, conflitos armados ou violação generalizada de direitos humanos |
não |
sim |
Motivo do deslocamento |
Melhores condições de vida, busca de trabalho, outros |
Temor fundado de perseguição, fuga de conflitos armados ou violação generalizada de direitos humanos |
Necessita de proteção internacional |
não |
sim |
Vulnerabilidade social |
sim |
sim |
Corre risco de vida em seu país em decorrência da perseguição, conflitos armados ou violação generalizada de direitos humanos |
não |
sim |
Pode voltar ao país de origem |
sim |
não |
(Obs.: Esta tabela tem uma finalidade didática, mas esclarecemos que a questão dos refugiados e das pessoas necessitadas de proteção não é tão simples assim. Por exemplo, há não-refugiados que correm risco de vida na terra de origem pela miséria, fome, secas ou calamidades naturais. Há refugiados que fogem não de “perseguição”, mas de conflitos armados (nem todo refugiado é individualmente “perseguido”). Há categorias de imigrantes que também necessitam de proteção, exemplo, mulheres em situação de risco, crianças desacompanhadas… A realidade é mais complexa.)
2 – Dados Gerais sobre Refugiados no Brasil (CONARE):
2.1 – Ano de 2008
2.1.1. O total de Refugiados no Brasil era de 3918 pessoas, das quais:
- 3541 reconhecidos por vias tradicionais de elegibilidade;
- 377 reconhecidos pelo Programa de Reassentamento.
2.1.2. Refugiados por Continente
Continente |
Refugiados |
% |
África |
2646 |
67,5 |
América |
758 |
19,5 |
Ásia |
397 |
10,1 |
Europa |
117 |
2,9 |
Total |
3918 |
100% |
2.1.3. Nacionalidades presentes neste universo de refugiados: 70
2.1.4. Nacionalidades com maior representatividade de refugiados
Nacionalidade |
Refugiados |
% |
Angola |
1687 |
43,0 |
Colômbia |
531 |
13,6 |
República Democrática do Congo |
310 |
7,8 |
Libéria |
259 |
6,6 |
Iraque |
174 |
4,4 |
2.2. Ano de 2009
2.2.1 O total de Refugiados no Brasil era de 4261 pessoas, das quais:
- 3843 reconhecidos por vias tradicionais de elegibilidade;
- 418 reconhecidos pelo Programa de Reassentamento.
2,2.2 Refugiados por Continente
Continente |
Refugiados |
% |
África |
2760 |
64,8 |
América |
965 |
22,6 |
Ásia |
418 |
9,8 |
Europa |
118 |
2,8 |
Total |
4261 |
100 |
2.2.3 Nacionalidades presentes neste universo de refugiados: 75
2.2.4 Nacionalidades com maior representatividade de refugiados
Nacionalidade |
Refugiados |
% |
Angola |
1688 |
39,6 |
Colômbia |
605 |
14,2 |
República Democrática do Congo |
400 |
9,4 |
Libéria |
259 |
6,1 |
Iraque |
197 |
4,6 |
2.3. Ano de 2010
2.3.1. O total de Refugiados no Brasil era de 4359 pessoas, das quais:
Reconhecidos por vias tradicionais de elegibilidade |
3952 |
Acolhidos pelo Programa de Reassentamento |
407 |
Total de Refugiados no Brasil |
4359 |
2.3.2. Refugiados por Continente de procedência
Continente |
Nº de refugiados |
% |
África |
2813 |
64,53 |
América |
978 |
22,44 |
Ásia |
465 |
10,67 |
Europa |
98 |
2,25 |
Apátridas |
05 |
0,11 |
Total |
4359 |
100 |
2.3.3. Nacionalidades presentes neste universo de refugiados: 75
2.3.4. Nacionalidades com maior representatividade de refugiados
País de Nacionalidade |
Refugiados |
% |
Angola |
1686 |
38,68 |
Colômbia |
602 |
13,81 |
República Democrática do Congo |
443 |
10,16 |
Libéria |
258 |
5,92 |
Iraque |
202 |
4,63 |
2.4. Ano de 2011
2.4.1. Total de Refugiados no Brasil: 4470, dos quais:
– 4043 reconhecidos por vias tradicionais de elegibilidade;
– 427 reconhecidos pelo Programa de Reassentamento (que permanecem no país).
2.4.2. Refugiados por Continente
Continente |
Refugiados |
% |
África |
2850 |
63,77 |
América |
1036 |
23,18 |
Ásia |
482 |
10,76 |
Europa |
97 |
2,18 |
Apátrida |
5 |
0,11 |
Total |
4470 |
100 |
2.4.3. Nacionalidades presentes neste universo de refugiados: 77
2.4.4. Nacionalidades com maior representatividade de refugiados
Nacionalidade |
Refugiados |
% |
Angola |
1686 |
37,97 |
Colômbia |
655 |
14,66 |
República Democrática do Congo |
464 |
10,42 |
Libéria |
258 |
5,81 |
Iraque |
204 |
4,59 |
1. Total de Refugiados Reconhecidos por meio de Elegibilidade: 4042
2. Divisão por Continente
Continente |
Refugiados |
África |
2849 |
América |
724 |
Ásia |
371 |
Europa |
97 |
Apátrida |
02 |
Total |
4043 |
2.4.5. Reassentamento: 427 reassentados que permanecem no Brasil:
Continente |
Refugiados |
África |
1 |
América |
313 |
Ásia |
110 |
Apátrida |
3 |
Total |
427 |
- 3. Instrumentos Nacionais e Internacionais de proteção aos refugiados
No Brasil, a proteção jurídica ao refugiado se fundamenta na Constituição Federal de 1988, na Convenção da Genebra, de 1951, no Protocolo de 1967, e na Lei n. 9.474/97, que regulamenta os mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados no Brasil. Esses instrumentos são pensados à luz da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz em seu artigo 14: I) “Todo o homem, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar asilo em outros países”.
3.1. Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, e Protocolo de 1967
A Convenção é o instrumento jurídico internacional que define em caráter universal a condição de refugiado e explicita seus direitos e deveres. O artigo 1º da Convenção conceitua como refugiado a pessoa que “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode, ou em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele”.
No entanto, ela estabelecia um limite temporal – os acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 – que se demonstrou superado ante as situações de violação de direitos geradas por fatos não vinculados ou decorrentes da II Guerra Mundial. Isso levou ao aperfeiçoamento da Convenção, com a adoção do Protocolo de 1967. O Brasil aderiu ao Protocolo de 1967 somente em 1972, eliminando, assim, a limitação temporal, embora se mantivesse a “reserva geográfica”, pela qual o Brasil só reconhecia refugiados europeus. Esta restrição geográfica foi, também, eliminada, em 1989, pelo Decreto no 98.602.
3.2. Declaração de Cartagena (1984)
A definição de refugiado adotada pela Declaração de Cartagena, em 1984, caracteriza-se por sua amplitude se comparada à Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967. A idéia de perseguição individualizada por motivos de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou pertença a certo grupo social é transcendida a partir da Declaração. A categoria de refugiados passa então a incluir aquelas pessoas que deixaram seu país de origem por causa da guerra, da violação massiva de direitos humanos ou de causas similares.
A Declaração, portanto, se traduz num instrumento internacional de expressiva referência no âmbito da conceituação de “refugiado”. Como resultado de um acordo entre os países da América Central e, portanto, ainda que sem a força da Convenção, inspirou atitudes e posturas dos países da região, em favor do reconhecimento da condição de refugiado a partir de seus termos.
Tais instrumentos representam um movimento de internacionalização, traduzido na ideia de que a proteção dos direitos humanos não pode, nem deve, estar limitada ao domínio reservado de cada Estado, uma vez que revela tema de legítimo interesse internacional.
Essa revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado acabou por cristalizar ainda mais a ideia de que o ser humano deve ter direitos protegidos na esfera internacional na condição de sujeito de direito. E é sob estas perspectivas que os direitos humanos devem ser enfocados, neste caso especificamente, os dos refugiados e refugiadas.
3.3. A Constituição Federal de 1988
Proclama nossa Carta Constitucional que o Brasil tem como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º) e que em suas relações internacionais será regido, dentre outros princípios, pela prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inciso II) e pela concessão de asilo político (art. 4º, inciso X). Refere ainda o art. 5º que os brasileiros e os estrangeiros residentes no Brasil terão tratamento igualitário, e lhes serão assegurados todos os direitos que a própria Constituição proclama.
Estes dispositivos assumem relevância fundamental em relação aos refugiados, uma vez que, ao terem sua situação formalmente reconhecida pelo órgão competente – CONARE –, estão ao amparo de todos os preceitos constitucionais, em especial os relacionados aos direitos fundamentais.
3.4. Lei 9.474/97 – Implementa o Estatuto dos Refugiados
A aprovação da Lei 9.474/97 representou um marco histórico na legislação de proteção aos direitos humanos e o compromisso do Brasil com o tema e a causa dos refugiados. Sua aprovação foi fruto da soma dos esforços e do trabalho conjunto do ACNUR e da sociedade civil organizada representada por um conjunto de mais de 40 entidades. Aspectos que se destacam no citado diploma legal são, entre outros, a ampliação do conceito de refugiado, que passou a incluir as vítimas de violação grave e generalizada dos direitos humanos; a criação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) – órgão colegiado responsável por analisar e declarar a condição de refugiado –; a concessão de documento de trabalho e a abertura à implementação de políticas públicas para a integração dos refugiados.
A Lei 9.474/97, além de ser um avanço na internalização do Direito Internacional dos Refugiados, possibilitou também o amadurecimento do debate sobre a importância da garantia de Direitos Humanos aos Refugiados.
- 4. Concepção Contemporânea de Direitos Humanos e a Proteção aos Migrantes e Refugiados
O conceito de direitos humanos aponta para uma pluralidade de significados, uma vez que está ligado a diferentes momentos históricos.
Dentre tais significados encontra-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, surgida no período posterior à 2ª Guerra Mundial como resposta às violações de direitos humanos ocorridas durante o conflito. Nesse sentido, os direitos humanos passaram a ser reconstruídos sob um novo paradigma ético a orientar a ordem internacional contemporânea, baseado na idéia de universalidade e indivisibilidade desses direitos.
Universalidade, porque a condição de pessoa é requisito único e mais que suficiente para se reconhecer e exigir o devido respeito à dignidade humana e à titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa, de modo que, quando um deles é violado, os demais também o são.
A Declaração Universal, de 1948, é marco desse processo de construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que conjugou o catálogo dos direitos civis e políticos aos direitos econômicos, sociais e culturais. Com a internacionalização dos direitos humanos, definiram-se as novas diretrizes da ordem pública mundial, baseada, sobretudo, no respeito à dignidade humana.
Tendo em vista a condição de seres humanos tanto dos refugiados, quanto dos migrantes em geral, é imperativa a aplicação a estes de todos os artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, dentre os quais se destacam:
Artigo I
Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.
Artigo III
Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo XIV
1. Toda pessoa, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de ter asilo em outros países.
Artigo XXIII
1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
Artigo XXVI
1. Toda pessoa tem direito à instrução.
- 5. Desafios e Propostas voltadas a garantir proteção e direitos dos solicitantes de asilo e refugiados
Além das disposições legais, dos direitos assegurados nos instrumentos jurídicos nacionais ou internacionais, são de essencial importância os mecanismos de acesso a tais direitos ou garantias asseguradas na legislação. Eis algumas situações:
5.1 Direito à não devolução (Non-Refoullement)
A Convenção de Genebra e a Lei 9474/97 asseguram explicitamente este direito primordial, em se tratando de pessoas em potencial situação de refúgio.
Art. 33, §1. Nenhum dos Estados Membros expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a que pertence ou das suas opiniões políticas. (Convenção de Genebra)
Art. 7º – § 1º Em hipótese alguma será efetuada sua deportação para fronteira de território em que sua vida ou liberdade esteja ameaçada, em virtude de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política. (Lei 9474/97)
A que serviria possuirmos disposições legais de proteção aos refugiados uma vez estando no País, se eles não tivessem a garantia de poderem entrar e fazer a solicitação de refúgio?
5.2 O reconhecimento da condição de refugiado e respectivo documento:
Para a pessoa perseguida, com a vida ameaçada devido às guerras, aos conflitos, à falta de condições do governo do país de dar-lhe proteção, é direito fundamental assegurado pela legislação internacional e nacional o de ser reconhecido como refugiado.
Corolário deste é o de receber a documentação que lhe assegure a estada legal e identificação no país de acolhida. A espera por meses e meses por um documento de identidade deixa a pessoa em situação de insegurança e de difícil acesso à gestão mínima diária de sua vida.
O protocolo assegura, sem dúvida, a estada regular, mas é um documento precário que não deveria se constituir em documento de identificação por meses e meses.
Ainda neste aspecto da documentação é muito importante e valioso o que dispõe o Art 6º, da Lei 9474/97, no tocante ao direito à cédula de identidade comprobatória de sua condição jurídica, carteira de trabalho e documento de viagem.
5.3. Acesso aos serviços de Saúde
Os estrangeiros residentes no Brasil, em situação regular ou não, tem efetivo ao acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS). A garantia está prevista na CF e no próprio sistema universal que o Brasil adota. A nossa experiência é positiva neste aspecto.
No entanto, as vezes temos que lidar com a possibilidade de a interpretação não ser uniforme em todas as esferas – federal, estadual e municipal – o que pode se transformar em dificuldade concreta de acesso dos solicitantes de refúgio e refugiados a este benefício.
Em alguns Estados, há parcerias estratégicas com hospitais que se tornaram referência no atendimento a essa população. Reiteramos que não se trata de privilégios, apenas de condições específicas, onde um dos elementos da maior importância é o idioma. Além da formalização da parceria, houve o desenvolvimento de um protocolo de atendimento específico para os solicitantes de refúgio e refugiados, como também oficinas de sensibilizações e treinamento dos funcionários. Este tipo de iniciativa deve ser ampliado, com o apoio do Ministério da Saúde, com vistas a otimizar o atendimento e maximizar o diagnóstico e tratamento. O tema do refúgio no sistema de saúde pode e deve ser incluído nos Comitês Estaduais para Refugiados e também nos próprios Conselhos Municipais de Saúde. Estes devem ser acessados pelos grupos que atuam junto aos imigrantes e refugiados, na busca por assegurar o atendimento médico e clínico de forma universalizada.
Na realidade concreta daqueles que lidam com os refugiados, percebe-se que ha dificuldades para que estes tenham acesso aos serviços de saúde. Assim, além das considerações feitas acima, coloca-se como propostas:
1 – Garantir atendimento global à saúde dos migrantes e refugiados nos serviços de saúde pública, inclusive de saúde psicossocial, levando em conta também as problemáticas relacionadas com a medicina transcultural, a saber, a medicina que interage com as crenças e as práticas curativas das culturas das terras de origem.
2 – Elaborar um Programa de Saúde para atendimento à população refugiada e identificação de locais (hospital) de referência, sobretudo, para facilitar a questão do idioma;
3 – Criar junto às universidades públicas a possibilidade de atendimento odontológico para refugiados;
4 – Intervir na formalização de acordos junto às Secretarias de Saúde (Estadual e/ou Municipal) para políticas de saúde de atendimento local aos refugiados.
5.4. Trabalho
Vários são os avanços no tocante ao tema do acesso ao trabalho e emprego dos refugiados e solicitantes de refúgio no Brasil. Estamos acostumados com o fato de que essa população tem permissão para trabalhar, obtendo a Carteira de Trabalho após haver formulado seu pedido de refúgio.
Esse é um avanço que reflete a realidade de poucos países do mundo. Além da documentação para o trabalho e de estar protegida pela legislação nacional em condição de igualdade a um trabalhador brasileiro, a população refugiada conta com uma conquista assegurada pelo Ministério do Trabalho, que foi a substituição do termo “refugiado” na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), por “estrangeiro pela Lei 9.474/97”. Os refugiados manifestavam a dificuldade que enfrentavam ante o desconhecimento de sua condição e a associação da identificação “refugiado” com alguém que estivessem fugindo de seu país por irresponsabilidades não assumidas ou por delitos praticados. Literalmente, o termo refugiado era motivo de discriminação.
Outra dificuldade no cotidiano dos migrantes e refugiados, quanto ao acesso ao trabalho, é a experiência prévia, constante nos testes avaliativos de seleção de mão de obra. Essas pessoas muitas vezes não têm como comprovar experiência anterior e, se a tem, será no país de origem, que pouco corresponde às vagas de trabalho às quais ele ou ela conseguem se candidatar. Há, pois, que tratar a questão de maneira específica, com possibilidades alternativas à apresentação de experiência anterior para a inclusão no mercado de trabalho.
Outras sugestões neste universo:
1 – Criar condições para a abertura de vagas para refugiados (e imigrantes) nas frentes de trabalho;
2 – Estabelecer programas de apoio e assistência aos migrantes e refugiados e seus familiares como vagas em cursos de português e, particularmente, em cursos profissionalizantes.
3 – Possibilitar a comprovação de experiências profissionais anteriores, através de períodos de estágio;
4 – Desenvolver programas e fazer gestões, junto às empresas, sistema “S”, sindicatos e organizações, para a abertura de vagas de trabalho e emprego, com períodos de capacitação.
5.5. Educação
Estudar e/ou continuar os estudos interrompidos é um anseio, e sem dúvida uma necessidade, que os refugiados vivem. (exemplo, jovem que aos 19 anos interrompe faculdade… )
Neste item, há diferentes situações específicas:
a) Acesso ao ensino fundamental e médio: há que ser aplicada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que prevê, no art. 24, que a classificação em qualquer série ou etapa da educação básica, nos níveis fundamental e médio, exceto a primeira do ensino fundamental, pode ser feita independentemente de escolarização anterior. É necessária apenas uma avaliação feita pela escola, que defina o grau de desenvolvimento e experiência do candidato e permita sua inscrição na série ou etapa adequada, conforme regulamentação do respectivo sistema de ensino.
Às vezes a grande dificuldade é o desconhecimento da legislação e dos caminhos possíveis para viabilizar o acesso da população refugiada (ou estrangeiros em geral), normalmente, tratada como “São estrangeiros. Não sabemos como fazer”.
b) Acesso ao Ensino Superior: No âmbito da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, diversas universidades vêm realizando estratégias de acesso e manutenção diferenciadas para a população refugiada, além da promoção do ensino e da pesquisa sobre as três vertentes da dignidade da pessoa humana: direito internacional humanitário, direito internacional dos direitos humanos, e direito internacional dos refugiados.
Registramos, aqui, a exemplar iniciativa já consolidada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR Portaria GR nº 941/08, de 09 de junho de 2008) que realiza vestibular especificamente desenhado para refugiados, aproveitando a estrutura do seu programa de Ações Afirmativas.
Outra importante iniciativa da UFSCAR refere-se à manutenção do refugiado na universidade durante os anos de estudo. Os refugiados selecionados para seus cursos de graduação que se enquadrarem no “Programa de acolhimento e apoio ao estudante” disponível para o corpo estudantil em geral, recebem apoio moradia, seja por meio de residência na moradia estudantil ou auxílio para aluguel, complementado com alimentação no restaurante universitário e bolsa atividade para atividades administrativas desenvolvidas na UFSCAR.
c) A validação de diplomas dos migrantes e refugiados, em especial os de graduação, é uma das grandes questões a serem trabalhadas no âmbito educacional no Brasil. O Brasil possui uma legislação representada pela Lei de Diretrizes e Bases e a resolução nº 1 CME/CES 2002 do Ministério da Educação e da Cultura (MEC) que regulamenta a revalidação de diplomas de graduação obtidos no exterior e que determina e direciona para as universidades públicas brasileiras a responsabilidade sobre o processo de revalidação. De modo geral, são as universidades públicas, embora não só, que validam os diplomas estrangeiros. Trata-se de um sistema custoso (taxa, traduções), lento e muito burocrático.
Estamos aguardando que alguma Universidade regulamente, de forma prática, o art. 44 da Lei 9474/97, que assegura: “O reconhecimento de diplomas, os requisitos para a obtenção da condição de residente e o ingresso em instituições acadêmicas de todos os níveis deverão ser facilitados, levando-se em consideração a situação desfavorável vivenciada pelos refugiados”.
À luz desses avanços e desafios, poder-se-ia considerar ainda:
1 – Criar mecanismos para agilização do processo de revalidação de diplomas e documentos universitários;
2 – Estabelecer acordos entre Ministério da Educação e Universidades Públicas para oferta de vagas para refugiados e definição de critérios especiais para inclusão destes no PROUNI;
3 – Disponibilizar um percentual de bolsas escolares (escolas particulares) para refugiados, particularmente para crianças e adolescentes em idade escolar.
4 – Ampliar o número de vagas para crianças na faixa etária própria para acolhida em creches;
5.6. Benefícios Sociais
Nesse tópico, veremos o acesso a alguns benefícios sociais, tais como: Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada, Aposentadoria, entre outros.
Para o acesso ao Bolsa Família, não há maiores entraves. É um benefício administrado pelos municípios, o que facilita a análise, o tratamento da questão em nível local, e a avaliação dos casos. Em geral, vem sendo acessado por aquelas famílias migrantes e refugiadas que atendem aos critérios de renda e de composição familiar sem maiores problemas, embora a maior dificuldade, em certas regiões, seja a disponibilidade, tendo em vista as cotas dos Municípios.
A Previdência Social, por ser um benefício social contributivo, é assegurada a todo migrante ou refugiado que contribua para o sistema através da inscrição no sistema, como empregado ou trabalhador autônomo e da contribuição ao INSS. Nestes casos, o contribuinte está amparado em casos de doença, acidente, gravidez, prisão, morte e velhice. Mas, aqui, novamente, pode afetar o benefício da aposentadoria, dependendo da idade que com que o refugiado chega ao Brasil.
Já o Beneficio de Prestação Continuada (BCP), voltado aos idosos e pessoas com deficiência cuja renda per capita familiar seja inferior a um quarto do salário mínimo, está inacessível a essa população, pois não obstante a Constituição Federal e a Lei Orgânica da Assistência Social não fazerem referência à necessidade de naturalização para acesso ao benefício, um Decreto e uma Instrução do INSS condicionam-no a tal. Assim, um migrante ou refugiado, deficiente ou maior de 65 anos, que não tenha como prover o próprio sustento, ainda que atenda aos requisitos de necessidade e de vulnerabilidade social, tem o acesso sistematicamente negado pelo órgão encarregado de sua operacionalização, o INSS. Há um Decreto e uma Resolução do INSS que estabelecem naturalização como condição de acesso ao BPC.
Isso é preocupante, pois extrapola e neutraliza a garantia constitucional de tratamento igualitário entre brasileiros e não-nacionais, residentes legalmente no País. Além disto, é uma contradição – acolher o refugiado porque sua vida estava em perigo e, uma vez residente no país nega-se o acesso a um benefício quando se encontra de extrema vulnerabilidade.
Para a efetiva garantia dos direitos humanos dos refugiados (e imigrantes), percebe-se que vários pontos envolvendo o acesso a benefícios sociais, assim como a garantia de integração social, são imprescindíveis, tais como:
1 – Garantir a igualdade de acesso entre nacionais e estrangeiros aos programas e benefícios do Sistema Único de Assistência Social e na Política Nacional de Assistência Social;
2 – Demandar o envolvimento do Poder Público local e regional para uma efetiva inserção dos refugiados e refugiadas nas políticas públicas;
3 – Criar mecanismos que possibilitem aos refugiados e aos imigrantes denunciar casos de exploração no trabalho ou discriminação;
4 – Garantir benefício pecuniário mínimo a ser prestado pelo Governo aos refugiados nos primeiros momentos de sua vida no País, até a superação da situação crítica inicial e a inserção no mercado de trabalho ou geração de renda familiar;
3.7. Reunião Familiar
O artigo 2º da Lei 9474/97, assegura: “Os efeitos da condição dos refugiados serão extensivos ao cônjuge, aos ascendentes e descendentes, assim como aos demais membros do grupo familiar que do refugiado dependerem economicamente, desde que se encontrem em território nacional”.
Além dos familiares que já se encontram em território nacional no momento em que o solicitante apresenta seu pedido, que são beneficiados por extensão, quando outros familiares que do refugiado dependem economicamente veem ao País, estes podem ingressar com pedido de reunião familiar. É o direito, sempre assegurado pela legislação brasileira, à reunião familiar
5.8. Políticas de integração
A acolhida de imigrantes e de refugiados implica também o reconhecimento de direitos culturais. Não se trata apenas de deixar-lhes um espaço para viver ou sobreviver, mas também de convidá-los a fazer parte de uma comunidade, a partilhar uma caminhada. Em outros termos, é fundamental criar espaços de interlocução e interação em que migrantes e refugiados possam reconstruir espaços de familiaridade e confiança em harmonia e diálogo com a população brasileira, no encontro e respeito da alteridade cultural.
Estas políticas de integração, além de permitir uma incorporação dos imigrantes e refugiados na sociedade brasileira – no respeito de suas diversidades culturais -, visam também reduzir toda forma de discriminação, preconceito e xenofobia. Seria absurdo garantir vários direitos sociais a refugiados e imigrantes e, ao mesmo tempo, interagir com eles mediante atitudes e posturas discriminatórias e preconceituosas.
- Respeitar a identidade cultural de migrantes e refugiados, ou seja, não impedi-los, caso possam ou queiram, de manter os laços culturais com o seu Estado de origem e de expressar sua cultura.
- Garantir o direito e mesmo estimular os migrantes e refugiados de constituir associações para a promoção e a proteção dos seus interesses sociais, culturais, religiosos e de outra natureza.
- Estabelecer mecanismos de combate à xenofobia e ao racismo.
- Adotar iniciativas concretas que congreguem a comunidade brasileira, os imigrantes e os refugiados para fomentar o respeito à diversidade cultural e desenvolver programas que facilitem sua integração na vida social, política e cultural do país.
- 6. Haitianos no Brasil – de solicitantes de refúgio a imigrantes com Residência Permanente por razões humanitárias
É freqüente encontrarmos ou ouvirmos a expressão “Refugiados ambientais”. Se retomamos aquele conceito que vimos no início, recordando que o refúgio é uma medida de proteção a pessoas perseguidas ou com temor fundado de perseguição, logo concluiremos que esta não é a situação das pessoas atingidas por catástrofes naturais – os terremotos, os vulcões, as catástrofes não perseguem.
E então, temos a questão: qual é a proteção possível aos direitos humanos daqueles que não se encaixam no instituto do refúgio?
A chegada massiva de haitianos ao Brasil, após o terremoto de 2010 que assolou o pequeno país do Caribe, veio desafiar os instrumentos jurídicos brasileiros e as vias para que fossem garantidos os direitos básicos daquelas pessoas, considerando sua condição de seres humanos em situação de extrema vulnerabilidade.
Antes mesmo do terremoto de 2010, muitos haitianos já deixavam seu país, devido à grave situação social e de pobreza em que viviam. Após o desastre natural que matou mais de 280 mil pessoas e deixou milhares de desabrigados, além de um país destruído, as possibilidades de vida e de trabalho no Haiti foram gravemente afetadas. Migrar passou a representar, em muitos casos, a única alternativa possível para garantir a sobrevivência. Assim, o fluxo emigratório de haitianos, que há muito já marcava aquele país abandonado à sua própria pobreza, aumentou consideravelmente.
O Brasil recebeu entre 6.000 e 6.500 haitianos após o terremoto ocorrido em janeiro de 2010. Estes imigrantes são pessoas que, em meio à miséria e aos escombros a que ficou reduzido o Haiti, conseguiram reunir junto a seus familiares e amigos alguns recursos suficiente para pagar o custoso e explorado deslocamento do Haiti até a fronteira brasileira. É um trajeto migratório motivado pela busca de trabalho, na esperança de encontrar condições de reconstruir a vida e de ajudar os familiares que deixaram no Haiti.
Quando chegam ao Brasil, esses imigrantes já consumiram praticamente toda a “reserva econômica” que tinham em mãos. Deste fato, considerando as já tão precárias condições em que deixam seu país, isso resulta em uma realidade de completa vulnerabilidade social. Assim, na chegada em território brasileiro, necessitaram emergencialmente de abrigo, alimentação e documentos que lhes permitissem a estada legal e o posterior deslocamento pelo País. Queriam e querem trabalhar para ganhar o próprio sustento e, portanto, é de fundamental importância superar as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho. Somam-se a essas dificuldades o estranhamento com a cultura local, as dificuldades de comunicação, o desconhecimento do idioma (a maioria fala o creolle – língua nativa haitiana).
Nesse contexto, considerando a grave situação do Haiti, o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), que recebeu seus pedidos de refúgio, decidiu buscar uma solução alternativa e facilitar a permanência dos haitianos no Brasil. Por decisão conjunta entre Governo e Sociedade Civil, decidiu-se remeter os processos ao Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e ali, em novas e profundas reflexões, foi tomada a decisão de conceder-lhes Residência Permanente por razões humanitárias.
É sempre oportuno refletir sobre a realidade e os apelos da humanidade, principalmente dos grupos humanos sofredores que a sociedade muitas vezes deixa à margem da dignidade ou mesmo exclui das condições mínimas de sobrevivência. Esses pensamentos estão presentes na exposição de motivos preparada pelo Conselho para voto sobre a concessão de visto humanitário, ilustrando assim o momento ímpar vivido pela sociedade brasileira na sua relação com os imigrantes e seus direitos humanos, o que pode abrir espaços para uma nova visão da governança do processo migratório no País. Oportuno conhecer alguns elementos do voto do CNIg que decidiu por esta forma a questão dos pedidos de “refúgio” dos haitianos:
As políticas migratórias estabelecidas pelo CNIg se pautam pelo respeito aos direitos humanos e sociais dos migrantes, de forma a que sejam tratados com dignidade e em igualdade de condições com os brasileiros. Esta política está firmemente assentada na Constituição Federal, que consagra dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Mais além, a prevalência dos direitos humanos é um dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil. […] Na aplicação da RN n. 27/98, o CNIg tem considerado as políticas migratórias estabelecidas para considerar como “especiais” os casos que sejam “humanitários”, isto é, aqueles em que a saída compulsória do migrante do território nacional possa implicar claros prejuízos à proteção de seus direitos humanos e sociais fundamentais (Extrato do voto aprovado pelo CNIg em reunião de 13/03/2011).
Conclusão
Na perspectiva da solidariedade e da acolhida, da abertura e da construção de uma sociedade solidária, é básico ter presente que os refugiados e refugiadas, bem como os imigrantes, são pessoas que devem ser respeitadas em virtude de sua dignidade e que seus direitos derivam desta condição de “seres humanos” como todos e todas nós. Se assim efetivamente esta for a nossa real convicção, concluiremos que seus direitos humanos não podem sofrer variações pelo simples fato de passarem de um país para outro ou de uma região a outra. (cfr. Hélio Bicudo, 2003)