Refugiados e Políticas Públicas: pela solidariedade, contra a exploração

Individual ou coletiva, a mobilidade humana contemporânea é motivada por diferentes circunstâncias e fatores ligados, de algum modo, a uma sociedade complexa, mais marcada pelos desequilíbrios sócio-econômicos, pela violência e intolerância do que pelo respeito à igualdade e à dignidade humana.

 

 

Ir. Rosita Miles[1]i

Flavia Carlet[2]

Individual ou coletiva, a mobilidade humana contemporânea é motivada por diferentes circunstâncias e fatores ligados, de algum modo, a uma sociedade complexa, mais marcada pelos desequilíbrios sócio-econômicos, pela violência e intolerância do que pelo respeito à igualdade e à dignidade humana.

Os refugiados, vulneráveis entre os vulneráveis, são a crua expressão das desordens e desequilíbrios mundiais. Não querem deslocar-se, são compelidos ou constrangidos a tal. São homens, mulheres e crianças obrigados a deixar sua pátria por fundado temor de perseguição seja por motivos de raça, religião, nacionalidade ou opinião, seja pela própria violação de direitos e falta de proteção do seu Estado. “Liberdade de migrar, sim, mas não de fazer migrar”, denunciava Scalabrini[3], no final do século XIX.

Carregando sonhos e histórias de vida, os migrantes e os refugiados buscam se afastar da pobreza, fugir das perseguições, do preconceito, das guerras e conflitos que ameaçam sua vida. A caminho não está meramente uma quantidade de seres humanos, mas uma proposta humanitária que deve despertar os governos, a população, as entidades e os indivíduos para uma revisão de valores e promoção de iniciativas concretas a favor da vida e do respeito ao ser humano. “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância”, (João, 10,10) é a palavra plena de sentido e que nos conclama a lutar pelos que têm sua vida ameaçada ou em perigo.

Refugiados no Mundo e no Brasil

O total de pessoas das quais o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) se ocupa está estimado em 21 milhões. Este número compreende os solicitantes de asilo, os refugiados, os retornados, os apátridas e os deslocados internos.

O Brasil apresenta um dos maiores índices de reconhecimento: em torno de 30% das solicitações são aprovadas. Segundo o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), em 30 de junho de 2006, temos o seguinte dado:

Refugiados no Brasil

 

Região de Procedência

Nº. Refugiados reconhecidos

África

2528

América do Norte

1

América do Sul

451

Ásia

237

América Central e Caribe

110

Europa

101

Total

3428

      Fonte: CONARE

Políticas Públicas para refugiados: uma questão de solidariedade e justiça social

Políticas públicas voltadas à assistência e integração dos refugiados são imprescindíveis para assegurar-lhes os direitos econômicos, sociais e culturais, em especial o direito ao trabalho, à saúde e à educação. A Constituição Federal e a Lei 9.474/97 oferecem suporte legal e constitucional à sua implementação para a efetivação destes direitos.

A Constituição Brasileira, art. 203, garante a prestação de assistência social “a quem dela precisar”, tendo como um de seus objetivos a promoção da integração ao mercado de trabalho (inciso III). Por sua vez, a Lei 9.474/97 (art. 43 e 44) destaca a necessidade de tratamento e consideração especial: simplificação das exigências na apresentação de documentos do país de origem; facilitação no reconhecimento de certificados e diplomas e flexibilidade para o ingresso em instituições acadêmicas, uma vez que a situação vivenciada pelos refugiados lhes é particularmente desfavorável.

 Em que pese a importância destas disposições, essencialmente no que se refere à implementação de políticas públicas para refugiados ou o acesso destes às já existentes, o Poder Público permanece, ainda, bastante distante. Facilmente delega à sociedade civil a efetivação da tarefa, abstendo-se de trazer para si o cumprimento desta responsabilidade.[4]

Oportuna, aqui, a manifestação do Presidente do CONARE “Será que nós vamos precisar ter a economia arrumada, ter os nossos sistemas de saúde pública e educação perfeitos para poder estender a mão, num gesto de solidariedade internacional para aquele que vem sendo perseguido, que não tem mais nada, só tem a própria vida como único bem que lhe restou a salvar?” [5]

Avanços e Propostas

Algumas iniciativas concretas nas áreas da educação, saúde, trabalho e integração vêm sendo realizadas, em parceria entre governo e diferentes setores da sociedade para que os refugiados e refugiadas se insiram nos espaços sociais e laborais, reduzindo, assim, as brechas à sua exploração e discriminação.

A Resolução 03/98, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) na área da educação: baseada na Lei 9.474/97 e em orientações da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação, a UFMG passou a admitir refugiados nos cursos de graduação, mediante documentação expedida pelo CONARE. A Universidade, ainda tem garantido a estas pessoas bolsa de manutenção, apoio psicológico[6], acesso a programas de moradia e estágios remunerados.[7]

A decisão do Ministério do Trabalho e Emprego que alterou a identificação na Carteira de Trabalho quando da emissão deste documento para os refugiados. Eliminou o termo “refugiado” e passou a adotar simplesmente “estrangeiros com base na lei 9.474/97”. Foi uma iniciativa importante no combate à discriminação e exploração a que se sentiam expostos os refugiados ao buscarem trabalho ou emprego, sujeitos, inclusive a temores e receios ante o desconhecimento ainda muito presente na população brasileira sobre este tema.

 Política eficaz foi, também, a criação, a partir de 2005, de uma rubrica no orçamento da União destinada à acolhida aos refugiados. A sociedade civil está empenhada em demandar do Governo Federal o aumento desta dotação para 2007, para ampliar a ação das instituições, em parceria com o Governo, no atendimento e integração dos refugiados.

No direito à saúde vale destacar a criação do primeiro Centro de Referência para a Saúde dos Refugiados, instalado no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de capacitar profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) para atender os refugiados e refugiadas. Sua relevância está centrada no fato de que os refugiados chegam ao País com dificuldade de comunicação, traumas psicológicos em razão das guerras e da violência que sofreram. São casos que requerem maior sensibilidade na acolhida, atenção às condições emocionais e psíquicas, e particular consideração por parte dos profissionais da saúde.

Há, contudo, vazios, carências e necessidades que urgem vontade política, medidas, decisões e viabilização para que o País possa se inserir efetivamente numa postura de acolhida e integração de refugiados. Assinalamos algumas propostas apresentadas pelas entidades da sociedade civil[8] que atuam na área:

a) Saúde

1 – Garantir atendimento global à saúde dos refugiados nos serviços de saúde pública, inclusive de saúde psico-social;

2 – Elaborar um Programa de Saúde para atendimento à população refugiada e identificação de hospitais de referência;

3 – Criar junto às universidades públicas a possibilidade de atendimento odontológico;

4 – Intervir na formalização de acordos junto às Secretarias de Saúde (Estadual e/ou Municipal) para políticas de saúde de atendimento local aos refugiados.

b) Trabalho

1 – Criar condições para a abertura de vagas para refugiados nas frentes de trabalho;

2 – Estabelecer programas de apoio e assistência aos refugiados e seus familiares como vagas em cursos de português e, particularmente, em cursos profissionalizantes.

3 – Possibilitar a comprovação de experiências profissionais anteriores, através de períodos de estágio;

4 – Desenvolver programas e fazer gestões, junto às empresas, sistema “S”, sindicatos e organizações, para a abertura de vagas de trabalho e emprego, com períodos de capacitação, para refugiados e refugiadas.

c) Educação

1 – Criar mecanismos para agilização do processo de revalidação de diplomas e documentos universitários;

2 – Ampliar o número de vagas para crianças na faixa etária própria para acolhida em creches;

3 – Estabelecer acordos entre Ministério da Educação e Universidades Públicas para oferta de vagas para refugiados e definição de critérios especiais para inclusão destes no PROUNI;

4 – Disponibilizar um percentual de bolsas escolares (escolas particulares) para refugiados, particularmente para crianças e adolescentes em idade escolar.

d) Integração Social

1 – Garantir a igualdade de acesso entre nacionais e refugiados aos programas e benefícios do Sistema Único de Assistência Social e na Política Nacional de Assistência Social;

 2 –  Demandar o envolvimento do Poder Público local e regional na elaboração e execução de políticas públicas e na inserção de refugiados nas já existentes;

3 – Criar mecanismos que possibilitem aos refugiados denunciar casos de exploração no trabalho ou discriminação;

4 – Instituir benefício pecuniário a ser prestado pelo Governo aos refugiados até a superação da situação crítica inicial e a inserção no mercado de trabalho ou geração de renda familiar;

5 – Desenvolver campanhas de sensibilização sobre a temática do refúgio e a situação dos refugiados e refugiadas.

Oportuno lembrar, ainda, o Plano de Ação do México[9] que conclama os Estados à responsabildiade compartilhada, a ser traduzida em políticas eficazes e ações efetivas na busca de soluções duradouras para os refugiados e refugiadas: “1) o programa ‘Cidades solidárias’, que busca uma maior integração dos refugiados e refugiadas urbanos através de ‘uma proteção mais efetiva que abarque os direitos e obrigações sociais, econômicos e culturais do refugiado’; 2) o programa ‘Fronteiras solidárias’, que responde à necessidade de individuar e socorrer aqueles que requerem e merecem proteção internacional por meio de um ‘desenvolvimento fronteiriço’ promovido pela presença das instituições do Estado, comunidade internacional e o envolvimento das populações locais; 3) o Programa ‘Reassentamento solidário’ marcado ‘pelos princípios de solidariedade internacional e responsabilidade compartilhada’”.[10]

8 – Conclusão

A Constituição Federal, ao dar tratamento igualitário aos brasileiros e estrangeiros residentes no país (art. 5º), assegurou a estes a possibilidade de acesso às políticas públicas existentes. A Lei 9.474/97, por sua vez, expressão do compromisso do Brasil com a causa humanitária do refúgio, chamou  o País à efetivação destes direitos quando sinalizou para a implementação de políticas públicas para a integração dos refugiados e refugiadas. 

Em que pesem os avanços, os Poderes Públicos federal, estadual e municipal devem, ainda, abraçar, conjunta e articuladamente, o cumprimento desta responsabilidade.

Importa, ainda, que tais políticas, além de serem formalmente previstas, sejam estabelecidas e implementadas a partir de valores éticos, humanitários e de solidariedade social, sob pena de pouco contribuírem para a efetiva garantia dos direitos fundamentais, respeito à dignidade e cidadania de todo o ser humano.

A responsabilidade é também nossa – scalabrinianos e scalabrinianas. Na dimensão humanitária da missão que temos, no conjunto da sociedade civil organizada, compete-nos fortalecer a ação, bem como exigir e vigiar o cumprimento da responsabilidade Estado, dos órgãos e agentes públicos, das entidades internacionais, no sentido de que, cada qual cumpra sua parte e, de maneira articulada, sejam implementadas políticas públicas e ações solidárias de integração e inclusão dos refugiados e refugiadas no conjunto e dinâmica da sociedade em que se encontram, com oportunidade para que sua vida seja potencializada e seus direitos de cidadania respeitados.

 



[1] Religiosa Scalabriniana, advogada, Mestre em Migrações, Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), articuladora da Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, assessora CNBB e do CELAM.

[2] Advogada, atua no Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), membro da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap).

[3] Scalabrini. Il disegno di legge sulla emigrazione italiana. Piacenza, 1888, 32-33. In: Congregazioni Scalabriniane. Scalabrini – una voce viva. Roma, 1997.

[4] SANTOS, João Paulo. Op. cit., p.153.

[5] Luis Paulo Teles Ferreira Barreto, secretário Geral do Ministério da Justiça e Presidente do CONARE, O Refúgio e o CONARE. In: Refúgio, Migrações e Cidadania, Caderno de Debates 1, ACNUR e IMDH, Brasília, 2006, p. 47.

[6] Fonte: www.ufmg.br/boletim/bol1481/quinta.shtml. Acesso em 05/09/2006.

[7] Fonte: www.icex.ufmg.br/docs. Acesso em 05/09/2006.

[8] Em www.migrante.org.br, vide a Rede Solidária para Migrantes e Refugiados, que reúne aproximadamente 40 instituições, de 19 Estados da Federação.

[9] Plano de Ação do México “Para Fortalecer a Proteção Internacional dos Refugiados na América Latina”. In: ACNUR – CPIDH – IMDH. Lei 9474/97 e Coletânea de Instrumentos de Proteção Internacional dos Refugiados. Brasília, ACNUR, 2004, p. 104.

[10] Cfr. MARINUCCI, Roberto. MILESI, Rosita. Migrações Internacionais: em busca da cidadania universal. In: Sociedade em Debate. Vol. 11. N. 1 e 2. Pelotas: Universidade Católica de Pelotas; EDUCAT, 2005,  p.32.