Refugiados LGBTQIA+ da Venezuela ajudam conterrâneos a acessar assistência no Brasil

“Se resistirmos, nossa voz soará mais forte que a intolerância”. A esperança da esteticista venezuelana Wiins Marin, 27, vem de anos de busca por voz, afirmação e segurança nos lugares por onde morou, na Venezuela e no Brasil.

Mulher trans, Wiins teve que se emancipar ainda jovem para sobreviver. Saiu de casa, enfrentou preconceito quando trabalhava como atendente de loja e assistente em banco, quando decidiu se tornar esteticista, ainda na Venezuela. “É muito difícil conseguir apoio quando as pessoas te encaram de um jeito diferente”, conta.

“Não se tratava apenas de ganhar muito pouco em empregos informais. Também não se podia andar de forma segura, colocar um adereço nos cílios sem ser vítima de preconceito e medo de ser espancada. A harmonização [de gênero] seria algo impossível, é algo muito anormal e caro na minha antiga cidade”, relata a jovem, que viajou mais de 1.500 km de ônibus desde Puerto Ordaz até desembarcar em Manaus, em dezembro de 2019, buscando uma vida segura.

Os desafios enfrentados por Wiins e milhares de pessoas LGBTQIA+ são lembrados em nível global no marco do Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, celebrado neste 17 de maio. Apesar das conquistas trazidas pela agenda, a ativista reforça que a luta pela igualdade de direitos e acesso a serviços em geral precisa ser fortalecida. “A sociedade precisa nos escutar, precisamos ser ouvidas, e essa luta é difícil, mas diária”, comenta.

E ela faz a sua parte. Foi por meio de um convite do Instituto Mana, parceiro da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) em Manaus, que Wiins decidiu se somar ao projeto Corte Solidário, uma inciativa organizada pela comunidade de refugiados e migrantes para transmitir mensagens de proteção e fortalecer a autoestima das pessoas assistidas nos espaços de acolhimento da Operação Acolhida, abrigos da sociedade civil e gerenciados pelo poder público em Manaus. No projeto, refugiados e brasileiros oferecem gratuitamente cortes de cabelo nos mais diversos estilos a pessoas estrangeiras e locais em situação de vulnerabilidade, independente de qualquer gênero ou condição.

“Visitamos abrigos e casas de acolhida para auxiliar qualquer pessoa em situação de vulnerabilidade, ajudando a recuperar sua autoestima por meio do corte cabelo. E é nessa oportunidade onde conversamos, onde ela pode contar o que está sentindo e também posso falar sobre nossa causa”, relata a esteticista.

O projeto teve início em 2020 e desde então já visitou nove abrigos em diferentes zonas de Manaus. Ao todo, 190 pessoas já receberam cortes das pessoas voluntárias. Mesmo durante a pandemia, as atividades continuaram seguindo todos os protocolos de segurança. O Corte Solidário se tornou uma forma de transformar sua trajetória e de fornecer apoio para outras pessoas venezuelanas para que possam continuar suas vidas.

“Ações como o projeto, datas como o IDAHOT e outras iniciativas são necessárias para que, ao menos por um dia, a sociedade celebre as pessoas que se arriscaram para nos incluir nas políticas, na sociedade. Queremos mais respeito, inclusão, igualdade, tolerância e empatia. É cansativo se reafirmar para a sociedade o tempo todo, mas não podemos desistir”, comenta a jovem ativista.

Comunicação como ferramenta de ajuda

O trabalho no ativismo também tem raízes em histórico de luta pessoal, conta Fabio Oliveros, refugiado venezuelano que mora em Manaus. Ele precisou do apoio da mãe para sair de casa aos 15 anos fugindo da homofobia e intolerância na região onde morava.

“Desde muito pequeno já não me identificava com meu corpo. Quando tive a oportunidade, conversei e me assumi homem para a minha mãe. Ela achava que era uma enfermidade, e me encaminhou ao psicólogo. O médico a convenceu de que era normal. Ela então passou a me apoiar. Como não tinha suporte do resto da família, e onde eu morava era muito perigoso para pessoas que nem eu, tive que mudar para outra cidade com 15 anos, o que foi um movimento arriscado e importante para mim, sempre com o apoio dela”, comenta o jovem.

Fabio iniciou os estudos em engenharia, arquitetura e produção de alimentos, sem concluí-los. Se mudou de Caracas para o Equador entre 2016 e 2017, e depois à Colômbia, quando surgiu o plano de se mudar para Porto Alegre no Brasil.

“Embarquei para Boa Vista, mas fui roubado próximo à Rodoviária e perdi tudo, fiquei apenas com minha própria roupa. Fiquei desnorteado, tive que começar do zero. Trabalhei informalmente e juntei dinheiro, e embarquei para Manaus com minha irmã. Gostei da cidade e decidi que ia ficar por aqui por mais tempo, e estou até hoje”, conta Fábio, que chegou na cidade em fevereiro de 2019.

Para auxiliar pessoas que estejam passando pela mesma dificuldade, Fábio conta que decidiu se tornar um Promotor Comunitário, voluntário que repassa informações seguras para a população de refugiados e migrantes venezuelanos que moram em Manaus, uma iniciativa da Cáritas Arquidiocesana de Manaus em parceria com o ACNUR.

Tanto o Corte Solidário quanto os Promotores Comunitários são apoiados pelo Instrumento de Contribuição para a Estabilidade e a Paz (IcSP) mecanismo da União Europeia que apoia, por meio do ACNUR Brasil, a implementação de iniciativas de convivência pacífica e de proteção baseada na comunidade, envolvendo pessoas refugiadas e migrantes na construção de soluções envolvendo as próprias capacidades.

“Como promotor comunitário, meu trabalho é encaminhar pessoas que estão desinformadas, que vêm enfrentando dificuldades para obter documentos e se integrarem localmente. Passamos informações precisas para apoiá-las”, relata.

Além de promotor comunitário, Fábio também atua como autônomo na cidade, e segue perseguindo um sonho: “Gostaria de montar uma loja com acessórios necessários para pessoas trans. É difícil achar muitas coisas que muitos de nós precisamos, mas Manaus é uma cidade com muitas oportunidades e pretendo continuar por aqui”, comenta o jovem.

Fabio Oliveros, 28, atua como Promotor Comunitário apoiando a população refugiada com informações corretas – Foto: ACNUR/Felipe Irnaldo

Ele reforça a mensagem de que visibilizar essas questões não é apenas uma questão de sobrevivência, mas também de esperança. “Que as refugiadas trans nunca percam as esperanças, por mais que estejam tentando tirar seus direitos, sua autoestima, que tenham pensado em desistir, sigam lutando, que se mantenham de pé e nunca se esqueçam de quem são”.

A chefa do escritório do ACNUR em Manaus, Sara Angheleddu, destaca a importância do IDAHOT para visibilizar estratégias voltadas à igualdade e segurança destas populações em deslocamento.

“O IDAHOT é uma data particularmente importante para pessoas de perfil LGBTI que estão em deslocamento forçado, considerando que muitas são obrigadas a fugirem por perseguição em razão de sua identidade de gênero ou orientação sexual. O ACNUR acredita ser fundamental o esforço conjunto de diversos atores para aprimorar as redes de apoio a essas pessoas, garantindo segurança para recomeçarem suas vidas”, finaliza.

Fonte: ACNUR