Relatório do Seminário: Migrações: Exclusão ou Cidadania?

O Seminário teve início no dia 25 de setembro, às 20 horas, e encerrou no dia 27, às 13 horas. Teve como entidades promotoras: Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM), Centro de Investigações e Ação Social (CIAS), Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES), Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e Centro Cultural de Brasília (CCB).

 

 (Brasília-DF, 25 a 27 de setembro de 2003)

O Seminário teve início no dia 25 de setembro, às 20 horas, e encerrou no dia 27, às 13 horas. Teve como entidades promotoras: Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM), Centro de Investigações e Ação Social (CIAS), Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES), Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e Centro Cultural de Brasília (CCB). Foi realizado no Centro Cultural de Brasília, em Brasília-DF. Inscreveram-se e participaram integralmente do Seminário, 86 pessoas, mais um grupo de 39 estudantes. Expressiva foi, neste conjunto, a presença de Irmãs da Congregação das Missionárias de São Carlos (scalabrinianas), num total de 17, procedentes da Itália e dos Estados brasileiros de Piauí, Goiás, Rio Grande do Sul, São Paulo, Mato Grosso, Ceará e Distrito Federal, assim como de acadêmicos e estudiosos do tema das migrações. A coordenação do evento ficou a cargo de Ir. Rosita Milesi, mscs, Prof. Roberto Marinucci e Pe. Thierry L. de Guertechin, sj. Registramos a visita do Embaixador Adolf Libert Westphalen, Diretor do Departamento Consular, Jurídico e de Assistência a Brasileiros no Exterior, e do Conselheiro Ralph Peter Henderson, Chefe da Divisão de Imigração, do Ministério de Relações Exteriores, levando seu apoio ao evento e aos organizadores do mesmo, cumprimentos ao CSEM e votos de proveitosa discussão e análise de tema tão atual como é o das migrações. O Seminário fez parte das comemorações de 15 anos de fundação do CSEM.

Sessão de abertura:

Composição da Mesa:

Dom Raymundo Damasceno Assis, Bispo Auxiliar de Brasília; Dom Odilo Pedro Scherer, Secretário-Geral da CNBB; Ir. Neusa de Fátima Mariano, Membro do Governo Geral e animadora do apostolado da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo (Scalabrinianas); Pe. Miroslaw Matyja, sj, Diretor do Centro Cultural de Brasília; Ir.Rosita Milesi, mscs, Diretora do Instituto Migrações e Direitos Humanos e do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios, entidades co-promotoras do evento; Pe. Thierry Linard de Guertechin, sj, diretor do Centro de Investigações e Ação Social e do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento; Professor Roberto Marinucci, membro do comitê de organização do Seminário; Professor Nielsen de Paula Pires, membro do Conselho Nacional de Imigração; senhora Flor Rojaz Rodriguez, Diretora Regional do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, para o Sul da América Latina.

Saudações:

  • Pe. Miroslaw Matyja, Diretor do Centro Cultural de Brasília, abriu as intervenções da mesa, salientando que o tema do seminário está em sintonia com os objetivos da instituição que o hospeda, qual seja, o de abrir suas portas à comunidade e às instituições da sociedade para discutir os temas e avançar na reflexão e nas conquistas em favor do ser humano.
  • Irmã Rosita Milesi, mscs, (CSEM/IMDH) lembrou a celebração dos 15 anos do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios (CSEM). Vinculou o fenômeno das migrações ao cenário da globalização que, uma vez pautada em interesses econômicos e financeiros, é causa de exclusão social. Destaca a utopia da cidadania universal que deve alimentar a luta pelos direitos dos migrantes e refugiados. Afirma que a cidadania não é privilégio de alguns, tampouco está vinculada à nacionalidade. Citando Scalabrini, enfatizou que “a migração alarga o conceito de pátria para além das fronteiras geográficas e políticas, fazendo do mundo a pátria de todos”. Reiterou que celebrar os 15 anos de fundação do CSEM significa revigorar os ideais e os compromissos que estão no berço do seu nascimento e dão sentido à sua existência, vislumbrando sempre os horizontes utópicos e as situações concretas que inspiram seu agir. Conclamou a todos a reafirmar o compromisso com a causa migratória em suas dificuldades, dramas e desafios, mas, acima de tudo, com a migração e suas potencialidades.
  • Dom Raymundo Damasceno Assis saudou a todos em seu nome e no de Dom José Freire Falcão, arcebispo de Brasília, e sublinhou a contribuição das irmãs scalabrinianos para o estudo do fenômeno migratório, como também para a pastoral entre os migrantes.
  • Dom Odilo Pedro Scherer, secretário-geral da CNBB, começou dizendo que ele mesmo é filho de migrantes alemães que se fixaram no sul do país. Lembrou o ideal scalabriniano junto aos migrantes e, em nome de Dom Geraldo Magela Agnello, presidente da CNBB, felicitou os organizadores do seminário pela iniciativa.
  • Senhora Flor Rojas Rodriguez (ACNUR) saudou os responsáveis pela organização do seminário e enfatizou que o maior desafio, no mundo dos migrantes, é justamente o problema da cidadania. Destacou o drama dos refugiados e das migrações forçadas que, longe de se reduzirem, aumentam em função de conflitos, perseguições e violações de direitos. Ressaltou a importância, hoje, de analisar a situação dos migrantes em geral, com vistas a buscar soluções para seus problemas.
  • Irmã Neusa de Fátima Mariano, mscs, vigária geral da congregação, disse que comemorar os 15 anos do CSEM é celebrar a memória da caminhada do migrante e a memória daqueles que trabalham na pastoral migratória. Recordou a origem da Congregação das Irmãs Missionárias de São Carlos Borromeo, enraizada na figura de Scalabrini. Terminou agradecendo as entidades co-promotoras do seminário, importante evento que deverá contribuir para a inclusão social dos migrantes.
  • Pe. Thierry Linard destacou três aspectos que apontam para os objetivos do seminário: a) desenvolver uma maior compreensão das migrações no Brasil e no mundo, num cenário de globalização e exclusão social. Abrem-se as fronteiras para o capital, mas fecham-se para os migrantes; b) mobilizar a sociedade civil, as Igrejas e as entidades em geral para o fenômeno das migrações, com vista à construção de uma cidadania universal, em que homens e mulheres não só têm o direito de migrar, mas também o direito de ficar; c) desafiar a Igreja, em especial a Pastoral dos Migrantes, para o trabalho de acolhida e organização do povo migrante; destaca-se aqui a celebração dos 15 anos de atuação do Centro Scalabriniano de Estudos Migratórios, da Congregação das Irmãs Missionárias de S. Carlos, scalabrinianas.

Conferência inaugural:Características e desafios das migrações na atual conjuntura mundial e seus impactos na América Latina.

– Conferencista: Lélio Mármora (Universidade de Buenos Aires, Argentina)

– Coordenação da Mesa: Professor Nielsen de Paula Pires (UNB e CNI)

 

Iniciou manifestando seu orgulho de estar neste seminário e celebrar os 15 anos do CSEM. A intervenção será dividida em duas partes: 1) pressupostos sobre a globalização; 2) principais fluxos das migrações na América Latina e impactos para as populações. E, por fim, encerrará a exposição com algumas interrogações sobre o tema.

A respeito da primeira parte, apontou duas premissas. Primeiro, o fluxo de capitais e mercadorias, por um lado, e as barreiras para o livre trânsito dos migrantes, por outro. A segunda premissa é a fraqueza dos Estados para controlar o fluxo e refluxo de capitais e mercadorias, ao mesmo tempo em que reprimem as pessoas em movimento.

A primeira premissa nos coloca diante de uma contradição: os recursos humanos qualificados movem-se com regularidade, ao passo que os recursos humanos não qualificados estão impedidos de mover-se. Trata-se, pois, de uma globalização excludente, assimétrica e profundamente paradoxal. Verifica-se uma clara manipulação dos Estados e dos organismos multilaterais. Os países desenvolvidos exportam capital e bens de luxo, os países periféricos exportam capital humano, mas com um rígido controle e seleção por parte daqueles. Tudo isto no pano de fundo dos grandes monopólios: do capital financeiro, das comunicações, da tecnologia, do conhecimento, etc. Surge aqui uma primeira pergunta: não é casual que algumas pessoas podem mover-se enquanto outras não. Quais os fatores que assim o determinam? Em termos mundiais, não se trata de formar uma mão de obra global, mas uma mão de obra segmentada

No caso da segunda premissa, o Estado perdeu seu poder para as grandes corporações multinacionais. Nesta perspectiva, o Estado adquire a função de agente do capital global, especialmente nos setores financeiros. Segundo alguns autores, é verdade que o Estado perdeu o poder, mas não perdeu a influência (Manuel Castels, entre outros). Na ótica das migrações, diminuiu claramente o número de migrantes legais, mas aumentou o número de clandestinos. Isso revela a debilidade do Estado em controlar o vaivém das pessoas. Enfrentamos aqui uma crise migratória. Os movimentos migratórios diversificaram-se e tornaram-se mais complexos: países de imigração tornaram-se fontes de saída de migrantes, e vice-versa. Os países da Europa e o Japão, por exemplo, necessitam de migrantes de “reemplazo”, enquanto os países subdesenvolvidos estão liberando mão de obra. Na medida em que decresce o número de migrantes legais e aumenta o número de clandestinos ou irregulares, os migrantes deixam de ser bem vindos como um potencial de riqueza humana nos locais de destino. Passam a serem vistos como um peso. Daí que a migração, em muitos casos, esteja vinculada a conflitos sociais de toda ordem: discriminação, xenofobia, preconceito e perseguição.

Estados perdem o poder de controle dos migrantes frente a outros Estados. Trata-se de uma perda de poder unilateral. As fronteiras se abrem com mais facilidade em alguns países. Facilmente dão passagem às drogas e ao crime, além dos migrantes. Verifica-se, por outro lado, uma maior consciência universal quanto aos direitos dos migrantes. Os países de origem fazem-se mais presentes, pois a migração representa uma perda de potencial humano. A sociedade civil vem pressionando cada vez mais pelo respeito aos direitos dos migrantes. É verdade que não são todos os setores da sociedade civil favoráveis aos migrantes. Há outros setores marcados pela xenofobia ou pelo corporativismo, respectivamente grupos neofacistas ou sindicalistas, com atitudes francamente anti-migratórias.

O modelo econômico adotado pelos países latino-americanos deixou grandes dívidas, não somente do ponto de vista econômico, mas também do ponto de vista social. O desemprego, a precarização das relações de trabalho, as migrações forçadas e a exclusão social são os resultados perversos desse modelo. Daí o incremento da emigração de alguns países da América Latina para a Europa, Estados Unidos e Japão. Muitos migrantes buscam os países de origem de seus antepassados, fazendo o caminho inverso das migrações transatlânticas do final do século XIX e início do século XX. Países receptores de migrantes no passado convertem-se hoje em lugares de origem de acentuadas correntes em sentido inverso.

Esta situação determinou mudanças unilaterais nos países latino-americanos. Aumentou o fenômeno da dupla nacionalidade. Diversificaram-se os problemas consulares. Multiplicam-se convênios bilaterais entre países latino-americanos e países europeus, por exemplo. Trata-se, simultaneamente, de regularizar e controlar o trânsito de pessoas. No Mercosul, avançou-se no tema das migrações, de modo a facilitar o movimento de trabalhadores entre os países do bloco, com a assinatura de Acordos de livre residência e trabalho que, no entanto, ainda estão em processo de ratificação pelos Parlamentos dos países para entrar em vigência.

Há pontos de inflexão na história das políticas migratórias. Por exemplo, o início dos anos 70, com a crise do petróleo. Em alguns casos, como nas ditaduras militares da América Latina, a migração é tida como caso de segurança nacional. Conhecemos bem as conseqüências dessa política para os próprios migrantes. Ocorre também o uso de restrições à migração no jogo de barganhas diplomáticas e comerciais entre os países. O exemplo mais claro é o que se verifica entre a fronteira de Estados Unidos e México, bem como entre este e os demais países centro-americanos.

O problema de vincular segurança nacional com migrações traz conseqüências danosas para os próprios migrantes. A perseguição xenófoba e a visão do migrante como “bode expiatório” não é dos menores entre eles. Cai-se facilmente na paranóia contra o “estranho, o diferente, o outro”. Após os atentados terroristas de 11 de setembro e o terror de Estado por parte do governo norte-americano, o cenário tornou-se ainda mais sombrio.

Sexta-feira, dia 26 de setembro

Primeira Sessão:

– Deputado Federal Orlando Fantazzini (Conselho de Ética da Câmara dos Deputados) com a conferência: Os/as brasileiros/as no exterior e as políticas governamentais

– Coordenação da Mesa: Dra. Márcia Anita Sprandel (Senado Federal)

A cidadania deve ser entendida de forma universal. As pessoas são, antes de mais nada, cidadãs do mundo. A nossa temática trata das medidas da legislação brasileira para os brasileiros que residem no exterior. O Brasil, tradicionalmente país de imigrantes, passa a ser um país de emigração. Hoje cerca de 3 milhões de brasileiros vivem no exterior. O encontro de Lisboa, Portugal, em maio de 2002, refletiu sobre a possibilidade de melhor relação entre as embaixadas e consulados, por um lado, e os migrantes, por outro. É necessário trabalhar pela segurança desses cidadãos que vivem no exterior e pelo resguardo de seus direitos e liberdade. No encontro foram debatidas várias propostas para a defesa dos emigrantes brasileiros, com instrumentos institucionais mais ágeis e menos formais. A Carta de Lisboa aponta a necessidade de uma assistência jurídica aos brasileiros que hoje vivem e trabalham por todo o mundo.

Os imigrantes ilegais e irregulares não são um problema apenas dos países de destino, mas também dos países de origem. Alguns problemas, de fato são comuns a ambos os lados: deportação, repatriação, discriminação, xenofobia, entre outros. A movimentação dos migrantes pelo mundo deverá interferir, por exemplo, na composição da população de muitas nações, com destaque para os países centrais, hoje os que mais recebem imigrantes.

Portugal vem sofrendo pressões da comunidade européia no sentido de restringir a entrada de migrantes no país e, de conseqüência, no espaço da União Européia. Esse tipo de pressão deve marcar a legislação dos países mais ricos, o que tende à diminuição do número de migrantes legais e aumento dos irregulares. Hoje calcula-se que mais de um terço dos emigrantes brasileiros no exterior vivem em condições de clandestinidade.

O Brasil firmou sem restrições a maior parte dos acordos internacionais que tratam da mobilidade das pessoas entre os países. A Câmara dos Deputados possui duas comissões permanentes para averiguar e investigar as denúncias relacionadas com os brasileiros no exterior. O problema é que os projetos e propostas esbarram muitas vezes no longo e burocrático sistema legislativo. É preciso pensar num mínimo de medidas que acelerem os processos vinculados a essa temática. Já devíamos ter um Estatuto para os brasileiros no exterior, bem como, em contrapartida, uma nova Lei dos Estrangeiros. Mas essa legislação somente será aprovada com a mobilização e a pressão da sociedade civil organizada.

Vale lembrar que os migrantes saem por causas predominantemente sociais e econômicas. Se no Brasil não conseguem trabalho e meios de vida, têm de buscar a sobrevivência em outros países. Nesta perspectiva, a tendência é o aumento da emigração de brasileiros para o exterior, com destaque para os jovens.

Segunda Sessão:

Contribuições do ecumenismo e do diálogo inter-religioso ao processo de integração dos migrantes, com Pe. Gabriele Cipriani (secretário adjunto do CONIC), e

– A ação da Igreja Católica na promoção da cidadania dos emigrantes brasileiros, com Professor Roberto Marinucci (csem)

– Coordenação da Mesa: Professor Sérgio Ricardo Coutinho (Universidade Católica de Brasília)

Pe. Garbiele Cipriani iniciou sua exposição estabelecendo uma relação com as conferências de abertura e a que o antecedeu.

Como entender a questão religiosa, no interior do fenômeno migratório, a partir do contexto da economia globalizada? É inegável hoje a emergência do sagrado em todo o planeta. O escritor português Saramago, ao referir-se aos fatos dramáticos dos tempos atuais, diz que “o problema é Deus”. De fato, em nome de Deus se realizam hoje as maiores aberrações.

Os migrantes, em muitos casos, ainda não superaram a fase do “gueto”. Vivem em ambientes isolados, especialmente do ponto de vista cultural e religioso. A verdadeira integração do migrante passa pela questão cultural e religiosa. Verificamos, hoje mais do que nunca, que a dimensão religiosa faz parte integrante do ser humano. Não dá para excluir o lado religioso dos grupos e sociedades humanas. O exemplo clássico é a história dos negros e dos indígenas. Nos dois casos, a identidade religiosa representou a última âncora de sua salvação enquanto povo e grupo humano.

Cabe aqui uma pergunta: as religiões ou instituições religiosas são capazes de contribuir na integração dos migrantes? A verdade é que todos, de uma forma ou de outra, somos xenófobos pela própria natureza. Defendemos nossos valores contra os outros. No fundo, é preciso descobrir quem é o migrante na sua dimensão religiosa. Descobrir quais seus valores mais profundos e estabelecer o diálogo com ele em base a tais valores. Cada migrante tem sua identidade cultural e religiosa, estreitamente vinculada ao seu contexto social e à sua história.

Do ponto de vista de quem chega ao Brasil, por exemplo, o migrante também experimenta a dificuldade de entrar em contato com a cultura local. A realidade do país às vezes é enganosa. Dizemos que o Brasil é o maior país católico. Mas, desde o começo, convivemos com uma religiosidade plural, entre indígenas, negros e outras tradições cristãs da Europa e dos Estados Unidos. Do ponto de vista religioso, o país exibe um pluralismo que marca nossa cultura. Além disso, é grande o trânsito dos fiéis entre as várias Igrejas ou denominações religiosas.

Neste sentido, como estabelecer o diálogo entre o migrante religioso que chega e o povo brasileiro que o recebe? Em primeiro lugar, o caminho é a acolhida e o testemunho. O migrante tem de ser visto como um cidadão potencial deste país, e não como um estranho ou um peso. O testemunho da acolhida deve ser um testemunho coletivo. Como fazer isso diante da fragmentação religiosa do povo brasileiro? Entra aqui o tema do ecumenismo. É preciso superar esta divisão que tende a nos isolar e dispersar nossas lutas.

Outros dois pilares do testemunho comum é o diálogo e o anúncio. Felizmente hoje a palavra diálogo começa a entrar com mais freqüência no vocabulário religioso. A história dá testemunho de muitas guerras religiosas junto com as conquistas políticas e sociais. Daí a importância do diálogo para superar nossas inimizades. Diálogo é reconhecer o espírito de Deus no outro e, da parte do outro, reconhecer o espírito de Deus que está em mim.

Quanto ao anúncio, é preciso rever alguns conceitos hoje comuns. O anúncio cristão, como também o de outras denominações religiosas, deve ser libertado da prisão do fundamentalismo e do exclusivismo. É neste sentido que Saramago fala que “o problema é Deus”, pois efetivamente Deus é um problema, quando fazemos Dele uma arma contra o outro.

Roberto Marinucci, tratando da ação da Igreja Católica na promoção da cidadania dos emigrantes brasileiros disse:

Minha exposição baseia-se num estudo realizado relativamente à ação da Igreja Católica na promoção da cidadania de brasileiros no exterior. Vou trabalhar a partir de três pontos, tentando responder a três perguntas.

  1. Por que a Igreja Católica se preocupa com os direitos humanos e a cidadania das pessoas, particularmente dos migrantes? É preciso dizer que essa preocupação muitas vezes tinha motivações de instrumentalizaçao, e não tanto de promoção humana. Outra maneira instrumental de entender a promoção humana é a esmola como salvação dos ricos frente aos pobres. Não está em jogo o direito do outro, mas outras preocupações de ordem pessoal. Além disso, não raro os direitos de Deus, confundidos com os interesses da instituição religiosa, estavam acima dos direitos humanos. Lembremo-nos, por exemplo das Cruzadas e da Inquisição. As coisas se modificam no século XX. A cultura dos direitos humanos entra na Igreja Católica. Numa palavra, os direitos de Deus e os direitos humanos não são excludentes, mas complementares. O exemplo de Scalabrini, no final do século XIX e início do século XX, abriu novos caminhos para a Pastoral dos Migrantes. Tratava-se de preservar, simultaneamente, a fé e os direitos dos migrantes. Com o avanço da consciência sobre os direitos humanos, a Pastoral Migratória passa a refletir sobre a promoção integral dos migrantes, independentemente de sua origem religiosa. Muda também o conceito de migrante: de vítima ele passa a ser visto como potencial e como protagonista no processo de organização. Torna-se sujeito.
  2. O que se faz no Brasil para a defesa dos brasileiros/as que vivem no exterior? O trabalho da Igreja Católica subdivide-se em duas dimensões: a) atuação nas áreas de origem; b) atuação nas áreas de destino. A Pastoral dos Brasileiros no Exterior (PBE), ligada à CNBB, é responsável pela articulação do trabalho em ambos os lados. Este trabalho comporta uma série de atividades, que vão desde a acolhida e a documentação até o atendimento psicológico.
  3. Alguns questionamentos: o trabalho com os brasileiros no exterior é prioridade da Igreja? Creio que não! A preocupação da Igreja é de caráter religioso ou de promoção humana? Depende de cada lugar. A preocupação da Igreja é intra-sistêmica ou anti-sistêmica, isto é, procura questionar o sistema como um todo? O trabalho junto aos migrantes passa, necessariamente, pela transformação das estruturas da economia globalizada e neoliberal.

Terceira Sessão:

– Conferencista: Maria Lúcia Leal (UnB): Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Brasil.

Coordenação da mesa: Professor Roberto Marinucci (CSEM)

Vou fazer uma relação entre globalização e tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual, disse Maria Lucia Leal. Nosso paradigma é a consciência de direitos humanos. A primeira tarefa nossa é desmobilizar a perspectiva repressora e desmascarar o caráter de criminalidade do tráfico. Quatro categorias se impõem em nossa análise: a noção de trabalho, a noção de migração, a tecnologia e o crime organizado.

Na primeira categoria, temos de sublinhar o baixo nível de escolaridade, a precarização nas relações de trabalho e de moradia, enfim, condições de vida extremamente precárias. Um contexto geral de vulnerabilidade econômica, social, cultural e afetiva. Daí o fácil aliciamento, recrutamento e transporte das mulheres e crianças. Estas “trabalham” sob condições permanentes de vigilância e repressão. São vários os setores do mercado, hoje, que utilizam os serviços do tráfico internacional de pessoas.

A partir da segundo categoria, estamos claramente diante de uma situação de migração ilegal. A demanda oferece uma política de inclusão social. Na medida em que o Estado fragilizado não dá conta de responder à contradição capital-trabalho, o mercado informal ou o crime organizado começam a recrutar esse tipo de mão de obra. Verifica-se aqui uma grave simbiose entre o mercado informal e o mercado formal, entre a corrupção e o crime organizado. Rompe-se com a ética e o com o contrato social e instala-se uma situação de barbárie. Outro problema refere-se à própria população. Quando esta compra sexo como mercadoria, que noção de sexualidade tem essa sociedade? O capital mercantiliza o sexo e nós compramos. É a racionalidade e legitimação da exploração sexual.

A partir da categoria de tecnologia, registra-se que esta hoje expande a oferta de sexo a todo o planeta. O círculo se fecha: a tecnologia ajuda a divulgar a mercadoria e, ao mesmo tempo, facilita a compra. Estabelecem-se redes internacionais de compra e venda de sexo. Vale lembrar que a relação entre o comprador e a vítima torna-se extremamente assimétrica.

Por fim, a categoria de crime organizado e de tráfico. Por trás de tudo isso, esconde-se uma relação colonialista, patriarcal e de subserviência. Esconde-se, ainda, uma cultura que fortalece esse tipo de dominação, machismo e autoritarismo. No limite, trata-se de verdadeira escravidão de pessoas humanas. Daí que a base conceitual de nossa pesquisa esteja centralizada no direito.

 

Quarta Sessão:

Perfil migratório do trabalhador escravo, com Patrícia Audi (Coordenadora do Projeto Nacional de Combate ao trabalho escravo, da OIT) e

Depoimento sobre trabalho escravo, de Guilherme Pedro Neto (ex-trabalhador escravo e atual Diretor da Secretaria de Assalariados Rurais, da CONTAG)

– Coordenação da Mesa: Pe. Thierry Linard De Guertechin, sj (Ibrades).

Patrícia Audi deu início, fazendo uma breve retrospectiva da OIT. Vou mostrar que o trabalho escravo não é prerrogativa do Brasil. E vou tentar mostrar o problema aqui no país e como o governo vem enfrentando a questão. A OIT estabeleceu quatro princípios, entre eles o trabalho escravo e infantil, por exemplo.

O trabalho escravo tem várias modalidades, tais como: tráfico de pessoas, exploração agrícola, uso de mão de obra infantil, servidão por dívida, entre outras. Existe o trabalho escravo urbano e rural. No caso urbano, destaca-se a exploração de migrantes estrangeiros, como, por exemplo, as bolivianas em São Paulo. Os casos mais sérios, porém, ocorrem no campo.

O trabalho escravo é uma grave violação dos direitos humanos, pois limita a liberdade de ir e vir. As pessoas são acorrentadas por dívidas e se vêm impedidas de se locomoverem. As próprias condições de trabalho violam a dignidade do ser humano. Um duplo contexto leva a essa condição: de um lado, a miséria e a necessidade de sobrevivência por parte do trabalhador, de outro, a super-exploração da mão de obra por parte do empregador.

O Brasil foi um dos poucos países que reconheceu o problema e tenta responsabilizar e punir os responsáveis. A grande maioria dos trabalhadores em tais condições origina-se do nordeste. O governo brasileiro tem um projeto para a erradicação do trabalho escravo e infantil. O combate ao trabalho escravo exige atacar várias frentes ao mesmo tempo, desde o aliciamento até o transporte e exploração da mão de obra. Crescem, no Brasil, os casos de punição por parte do Ministério do Trabalho. O novo governo visa não apenas combater o trabalho escravo, mas erradicá-lo. Para isso, não podemos nos ater somente à repressão, mas sobretudo à educação e inserção. As causas do trabalho escravo são, sobretudo, estruturais e precisam ser atacadas pela raiz. Estamos apenas no início de nossa tarefa, mas estamos colocando esse tema na pauta da sociedade brasileira.

Perguntada sobre a questão da educação, Patrícia disse que a grande política inovadora e revolucionária deste país tem que ser a educação. Devem ser ser feitos investimentos maciços em educação. É a melhor forma de distribuição de renda. Não apenas educação formal, mas educação política. Com respeito a esse governo, estamos apostando muito. Mas a tarefa não é só do governo. Toda a sociedade é chamada a trabalhar pela erradicação do trabalho escravo e infantil.

Respondendo a outra pergunta, em torno de causas estruturais e da questão agrária, Patrícia terminou enfatizando a importância da Reforma Agrária e Agrícola.

Em sequência, Guilherme Pedro Neto, iniciou seu depoimento dizendo: “Para mim, o mais grave é proibir o direito de ir e vir. Vocês dizem que a gente é agenciado, mas eu fui vendido. Vendido para um ‘gato’ ou empreiteiro. O gato compra o peão com mulher, cachaça, uísque e outras coisas mais. Só depois que deixei a fazenda é que descobri que tinha sido escravo”.

“A dominação, a exploração é total. Na fazenda, tudo você vai comprar na cantina do gato. Se você foi bonzinho, não criou nenhum caso, o gato leva de volta para a mesma cidade de onde você veio. E aí você é vendido para outro gato. Isso aconteceu três vezes comigo. Quando você cria problemas, ele não leva à cidade, mas vende direto para outra fazenda. Às vezes, por causa da situação precária, a própria esposa, enganada e ludibriada, é capaz de vender o marido”.

“O que é que leva as pessoas ao trabalho escravo? É a situação precária. Alguns têm que trabalhar duas, três e até mais vezes seguidas, em diferentes safras, como por exemplo na laranja, na cana, no café, no feijão e outras, sem folga, sem descanso, sem pagamento, sem saber quanto seu trabalho está valendo. Tem safra que dura apenas quinze dias, aí tem que partir para outra. O governo precisa entender que é necessário ter fiscalização. Outra coisa que reforça o trabalho escravo é a atitude dos juízes. Eu não acredito que eles prendam um fazendeiro que utiliza mão de obra escrava. Muitas vezes as próprias fazendas ligadas aos grandes projetos do governo, como Sudam e Sudene, exploram o trabalho escravo. Tudo isso com o dinheiro público. Os juízes não mandam para a cadeia porque não querem, pois muitas vezes sabem, com clareza, onde tem trabalho escravo”.

“O ônus do combate e erradicação do trabalho escravo não deve recair sobre o orçamento público, mas sobre os fazendeiros. É preciso impedir que eles continuem movimentando a conta do banco, ou, então, confiscar suas terras. Quem tem que pagar a conta não é o governo, com o dinheiro do povo, mas o fazendeiro”.

Guilherme contou alguns casos: o do juiz que citou a Arca de Noé para justificar que o transporte de trabalhadores em carros utilizados para transportar animais é digno; o caso da carne que não foi comprada na cantina da fazenda, mas que, sob a ameaça de uma arma, tinha que ser paga pelo trabalhador, pois “não comprou porque não quis, pois estava ali à disposição”, diz o gato; os casos em que o trabalhador não tem como acompanhar a medição, cálculo e pagamento do seu trabalho. Disse também que é importante fazer esse governo do Lula dar certo, senão as coisas vão piorar ainda mais.

 Para o Brasil a escravidão de hoje é pior que a escravidão do passado. “O caso é que tem muita gente precisando de emprego e é capaz de trabalhar, de aceitar ser vendido por um prato de comida”.

Quinta Sessão:

– Donald Sawyer (ISPN), com a conferência: História e raízes da transformação do Brasil num país de emigrantes, e

– Ivo Poletto (Fome Zero), falando sobre: Reforma Agrária e Êxodo Rural no Brasil: ainda é possível um retorno ao campo?

– Coordenação da Mesa: Economista Guilherme Delgado (IPEA)

Falou, inicialmente, Donald Sawyer, dizendo: Vou tentar oferecer algumas razões pelas quais o Brasil se tornou de país de imigrantes em país de emigrantes. Procurarei avaliar também a legislação respectiva às migrações. Por fim, poucas observações sobre a Reforma Agrária.

Durante 50 anos o Brasil foi considerado pelos demógrafos uma sociedade fechada. Até os anos 30, temos as imigrações européias e na década de 80 começa a emigração de brasileiros para o exterior.

A emancipação dos escravos no final do século XIX, significou mudanças no modelo como um todo. A partir de então, o Brasil começa a receber os trabalhadores que viriam substituir a mão de obra escrava. Depois de 1930, o Brasil passa a proteger a mão de obra nacional e restringe a vinda de imigrantes. Percebeu-se, por outro lado, que os trabalhadores europeus traziam a luta de classes para o seio da classe trabalhadora.

Aos poucos, o Brasil passa de um modelo agrário-exportador para um modelo industrial. Inicia-se assim o processo de proletarização, o qual gera um êxodo rural crescente a partir da década de 40. Ao mesmo tempo, na contramão da proletarização, dá-se a migração para a fronteira agrícola. Trata-se de um movimento centrífugo, em sucessivos ciclos, para a ocupação das terras do norte e centro-oeste. Surgem, com isso, formas não capitalistas de produção que, na verdade, convergem para a acumulação do capital.

No final dos anos 80, verifica-se uma certa desconcentração da população urbana. Crescem mais as cidades médias do interior. A verdade é que o progresso técnico não gera suficientes postos de trabalho para absorver a mão de obra. Outra novidade, com a constituição de 1988, é a consciência da cidadania. Ocorre também a entrada da mulher no mercado de trabalho.

O resultado de todos esses fatores é o enorme excedente de mão de obra. O mercado de trabalho não tem como absorver tantas pessoas que lhe chegam às portas, seja pelo crescimento vegetativo, seja através das migrações.

Quanto à emigração de brasileiros para o exterior, ela começa bem antes da década de 80. Basta lembrar, por exemplo, o caso dos “brasiguaios” e o vaivém constante nas regiões limítrofes, como Argentina, Bolívia, etc. A grande novidade no fenômeno da emigração é a saída de brasileiros para os países desenvolvidos. É um movimento mais de classe média, pois as viagens são caras e correm por conta própria.

Em termos de conclusão, tudo isso tem implicações políticas. O Estado torna-se imprescindível num processo de inclusão social. Aqui convém sublinhar a importância da Reforma Agrária. Igualmente importante é o incentivo à pequena e média produção, como também a agricultura familiar tão arraigada na cultura brasileira.

Tanto na migração interna como internacional, o importante é defender o direito de ir e vir, correspondente ao direito de permanecer. Migrar não é uma doença, mas um meio de luta por melhores condições de vida.

Ivo Poletto, ao tratar sobre “Reforma agrária e êxodo rural no Brasil: ainda é possível um retorno ao campo?”, falou:

Vou trazer aqui alguns elementos, principalmente de ordem política, no sentido de retomar a luta dos movimentos do campo. Na verdade, gostaria de retomar uma série de observações já conhecidas, mas muitas vezes não levadas em conta. Primeiro, o Brasil é um dos poucos países que não fez Reforma Agrária. Em segundo lugar, a concentração da terra materializa no país o grau de desigualdade na sociedade brasileira. Diferentemente de outros países, as próprias classes urbanas, e não apenas as oligarquias rurais, se apropriam das terras. Um dado que ilustra isso: 1% dos mais ricos acumulam tanto rendimento quanto os 50% mais pobres. A concentração da terra, da renda e da riqueza tem conseqüências perversas para o conjunto da população. Ivo apresentou as seguintes estatísticas:

“Vale ressaltar alguns dados publicados pelo IBGE em 2003, referentes a 2001, que são importantes para a reflexão sobre o tema. [1]

a) Concentração da propriedade da terra

“A concentração de terra no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos proprietários rurais detêm em torno de 46% de todas as terras. Dos aproximadamente 400 milhões de hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões de hectares são utilizados como lavoura. O restante das terras estão ociosas, subutilizadas, ou destinam-se à pecuária. Segundo dados do INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária), há cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas. Por outro lado, existem cerca de 4,8 milhões de famílias sem terra no Brasil.

O professor Manuel Domingos, da Universidade Federal do Ceará, afirma: “As estatísticas cadastrais revelam uma persistente concentração da propriedade da terra. De acordo com o INCRA, entre 1992 e 1998, a área ocupada pelos imóveis maiores de 2.000 hectares foi ampliada em 56 milhões de hectares, o que representa três vezes mais que os 18 milhões de hectares que o governo Fernando Henrique Cardoso afirma ter desapropriado durante seis anos. A área ocupada por 10% dos maiores imóveis do país cresceu, no período em referência, de 77,1% para 78,6% da área total”.

Segundo o IBGE, os estabelecimentos agrícolas estão divididos da seguinte forma:

– 4,3 milhões com áreas inferiores a 100 Ha;

– 470 mil com áreas de 100 Ha a menos de 1.000 Ha;

– 47 mil com áreas de 1.000 Ha a menos de 10.000 Ha;

– 2,2 mil com áreas a partir de 10.000 Ha; e o restante sem declaração.

O nível de produção divide-se da seguinte forma:

– os estabelecimentos inferiores a 100 Ha respondem por 47% do valor total da produção agropecuária;

– os estabelecimentos de 100 Ha a menos de 1.000 Ha respondem por 32% desse valor;

– os estabelecimentos entre 1.000 Ha e 10.000 Ha participam com 17% do valor total;

– os estabelecimentos acima de 10.000 Ha respondem por 4% do valor total.

Em relação à mão-de-obra, constatou-se o seguinte:

– os estabelecimentos com menos de 10 Ha absorvem 40,7% da mão-de-obra;

– os de 100 Ha a 1.000 Ha absorvem 39,9% da mão-de-obra;

– os acima de 1.000 Ha absorvem 4,2% da mão-de-obra.“

b) Concentração da renda

O 1% mais rico da população acumula o mesmo volume de rendimentos dos 50% mais pobres e os 10% mais ricos ganham 18 vezes mais que os 40% mais pobres. Metade dos trabalhadores brasileiros ganha até dois salários mínimos e mais da metade da população ocupada não contribui para a Previdência Social.

As desigualdades de rendimento acarretam muitas outras: 80% dos domicílios dos 10% mais ricos têm saneamento adequado, contra um terço dos 40% mais pobres; existem mais de 30% de empregados sem carteira de trabalho entre os 40% mais pobres e apenas 8% entre os 10% mais ricos; o percentual de estudantes de nível superior, de 20 a 24 anos, também é bastante desigual nos dois grupos, de 23,4% e de 4%, respectivamente.

Em 2001, o 1% mais rico concentrava 13,3% do rendimento total, quase o equivalente ao percentual dos 50% mais pobres (14,3%). No Nordeste, por exemplo, a concentração de renda para o 1% mais rico era superior ao percentual dos 50% mais pobres (15,4% contra 15,3%), segundo a tabela 4.20.

c)    O êxodo continua

Aumento da proporção de pessoas vivendo em áreas urbanas: em 1992, 78% da população era urbana, e o percentual aumentou para 83,9% em 2001.

Esses dados servem de base para perceber que têm fundamento as análises que afirmam a existência de mais de 50 milhões de pessoas que sobrevivem na insegurança alimentar e nutricional. (…) A maioria dessas pessoas já mora e vive nas cidades, mas existem os que passam fome também no campo; e a maioria delas se sente ameaçada pelo avanço da apropriação da terra pelos grandes grupos econômicos.

 E é nesse contexto que precisamos buscar resposta para a pergunta: é possível ainda a volta da população para o campo, num processo de reforma agrária?”

Semelhante estado de concentração explica o êxodo rural nas décadas passadas. Embora desacelerada nos últimos anos, a migração para a cidade continua intensa e desordenada. Por outro lado, é grande a quantidade de terras ociosas e improdutivas, ao lado de milhões de famílias sem terra. Não é sem razão que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) adquiriu tamanha força e legitimidade de grande parte da sociedade.

Qual a possibilidade de retorno ao campo? Depende de vários e complexos fatores em disputa. Em primeiro lugar, agora contamos com um governo que mantém de pé a vontade política de realizar a Reforma Agrária. Por outro lado, dentro do próprio governo há pessoas que se manifestam claramente contrárias à distribuição da terra. Outros, ainda, embora defendam a Reforma Agrária, o fazem muito mais por motivos estratégicos. Um terceiro fator, é a possibilidade de ligar o programa “Fome Zero” com as transformações estruturais, gerando um imperativo ético e uma nova mobilização política na produção e distribuição de alimentos. Estão previstas, no programa, políticas locais e políticas estruturais, que precisam ser implementadas. Em quarto lugar, as transformações na sociedade brasileira podem esbarrar na mentalidade reacionária do poder local, do poder legislativo e no poder judiciário. O quinto fator é a possibilidade de ampliar parcerias com os movimentos sociais do campo, unindo esforços para as mudanças necessárias. A mobilização social é fundamental para o avanço de tais mudanças. Será necessário ainda coibir a violência e a impunidade nos casos de violência no campo. Os direitos estão acima dos privilégios. Embora pareça impossível imaginar o retorno de grande parte da população à terra, hoje a sociedade brasileira gerou novas possibilidades. O que precisa é fazer avançar o processo de democratização iniciado.

Ivo Poletto finalizou ressaltando a relevância de estabelecer parcerias entre movimentos sociais, organizações e entidades, por um lado, e, por outro, com as forças de um governo que tem vontade política de realizar as reformas essenciais. Falou também da necessidade de mobilização da sociedade para exigir o respeito e proteção dos direitos fundamentais. Ressaltou também que, em relação às populações migrantes/imigrantes, o enfrentamento de seus dilemas e a conquista de seus direitos não serão frutos isolados de sua ação cidadã. Fazem parte de um conjunto que compõe o direito de cidadania de todos os membros da sociedade, para a qual eles, os migrantes, carregam valores culturais e poder para a cena política.

Sábado, dia 27 de setembro

– Luis Paulo Teles Ferreira Barreto (Secretário-Geral do Ministério da Justiça), com a Conferência “Legislação do estrangeiro no Brasil”, e

– Renato Zerbini Leão, (consultor jurídico do ACNUR no Brasil), com a conferência “O desafio internacional dos refugiados e refugiadas”.

– Coordenação da Mesa: Ir. Rosita Milesi, mscs (CSEM e IMDH)

Luis Paulo alerta para o risco de tratar os migrantes como inimigos do país. Os atentados de 11 de setembro de 2001 contribuíram para isso. É uma lástima que se veja o fenômeno migratório não como um fato social e econômico, mas como caso de segurança nacional, ou como caso de polícia. Cria-se uma paranóia de medo e insegurança diante dos migrantes. No passado, era a guerra fria que provocava essa ameaça constante, o conflito leste-oeste. O migrante era visto como ameaça à segurança interna dos países e ao avanço do consumismo pelo mundo. Depois, passaram a predominar os fatores de ordem social e econômica. Os conflitos passam pela relação norte-sul, países pobres e países ricos, ou primeiro e terceiro mundo. Agora, com o clima de terrorismo, volta ao tema da segurança nacional. O migrante é visto novamente como “bode expiatório”, o culpado potencial de todos os distúrbios.

Torna-se uma espécie de subversivo ambulante. Nessa paranóia mundial, as nações procuram defender seu território a todo custo. É uma lástima que seja assim. Pena que seja assim, pois essa visão estreita impede o intercâmbio da maior riqueza da humanidade: as pessoas, os povos e as culturas. Diferentes, plurais, mas, igualmente, ricas.

Esse enfoque traz conseqüências nocivas para quem deseja migrar. Aumentam as exigências e os obstáculos. As fronteiras tornam-se instransponíveis. Esse clima não atinge somente o território dos Estados Unidos. Também no Brasil a entrada de estrangeiros torna-se mais difícil. As leis tendem a ser mais rígidas.

Nossa Lei de Estrangeiros data de 1980. É necessária uma nova lei, que venha responder aos novos desafios. A nova lei deve levar em consideração três aspectos essenciais: a) reconhecer o Brasil como país de imigrantes, fato, aliás, exemplificado pela história; b) vincular a Lei dos Estrangeiros ao tema dos direitos humanos e não ao medo do terror; c) considerar os migrantes não como um peso, mas como uma riqueza potencial para o país. Haja vista a contribuição para o Brasil dos estrangeiros que aqui residem há décadas, como a comunidade dos italianos, dos espanhóis, dos árabes, dos portugueses, dos japoneses, para citar apenas alguns.

Não podemos deixar que prevaleça a desconfiança diante do outro ou do estrangeiro. O Brasil deve mostrar-se um país acolhedor, como de resto sempre tem sido. Para isto,são importantes debates como este. É importante, também, superar na mídia e na sociedade, toda forma de preconceito e discriminação para com o estrangeiro. No Brasil, o estrangeiro tem tido uma presença familiar. O governo brasileiro, por sua vez, está interessado em avançar neste campo.

Por outro lado, o dinamismo das migrações em caráter mundial faz repensar o direito internacional sob novo paradigma. O conceito de cidadania sofre profundas alterações. Surge a questão da dupla nacionalidade e até da tripa nacionalidade. Nacionalidade deixa de ser algo fixo, do nascimento à morte, e passa a ser uma opção. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 abre perspectivas novas nessa direção.

Em todo mundo, o fenômeno das migrações revela-se, ao mesmo tempo, causa e efeito de profundas transformações. Isto vale também para a legislação de cada país e para o direito internacional. Migrar é uma forma de exigir mudanças, seja no próprio país de origem, seja no país de destino. Migrações são sempre fatores de mudança.

Renato Zerbini discorreu sobre o desafio internacional dos refugiados/as. Levantou os principais desafios na questão dos refugiados. O primeiro desafio é sobre o próprio conceito de refugiado. Temos de superar o conceito estreito de refúgio, ampliando-o para abarcar a violência econômica.

Outro desafio é o velho debate entre asilo e refúgio. O indivíduo não tem o direito de asilar-se. É o Estado que oferece asilo.

Um terceiro desafio é a proteção internacional da pessoa humana, diante dos conflitos hoje acirrados pela onda do anti-terrorismo e pela economia globalizada. Em quarto lugar, é preciso atenção à proteção de categorias específicas, tais como crianças, mulheres, indígenas, deslocados internos, entre outras.

Infelizmente, hoje, diante das forças do império, relativizam-se as leis internacionais do direito. Na caça indiscriminada aos terroristas, realiza-se toda forma de desrespeito ao ser humano. Nesse clima, fica evidente que os estrangeiros acabam sendo as maiores vítimas. Deve-se lembrar também a fragilidade da ONU. É inegável que a Organização das Nações Unidas precisa reestruturar-se. Qual o papel do Alto Comissariado das Nações Unidas, por exemplo? Dentro desse quadro, vemos a função do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR): repatriação, proteção local e reassentamento de refugiados.

Zerbini reservou parte de sua exposição para um breve comentário à recente Opinião Consultiva emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, de grande importância e significado para a questão migratória e para os direitos dos migrantes. É preciso ter em conta que os trabalhadores migrantes, mesmo indocumentados, possuem os mesmos direitos dos trabalhadores nacionais. Só assim estaremos defendendo uma verdadeira cidadania para os estrangeiros em nosso país.

Brasília-DF, 05 de setembro de 2003

Ir. Rosita Milesi, mscs

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs



[1] As informações que seguem estão contidas no Relatório sobre os Crimes do Latifúndio, lançado dia 26 de agosto pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Centro de Direitos Humanos Evandro Lins e Silva e Instituto Carioca de Criminologia.