Seminário Migrações: Exclusão ou Cidadania?

As migrações mudaram. O fenômeno da mobilidade humana sofreu recentes e profundas transformações, tornando-se cada vez mais intenso, diversificado e complexo. No contexto da economia globalizada, os deslocamentos de massa revelam as contradições ocultas do modelo neoliberal. Para entender o quadro atual das migrações, o Seminário Migrações: Exclusão ou Cidadania? nos permite abrir algumas janelas. A metáfora janela não é neutra, como aliás jamais o são as palavras. De fato, num mundo marcado pelo vaivém de tantas pessoas, é comum cerrar portas e janelas diante do “outro, do estranho, do diferente”.

 

Brasília-DF de 25 a 27 de setembro de 2003

Síntese final: desafios e perspectivas

 Introdução

As migrações mudaram. O fenômeno da mobilidade humana sofreu recentes e profundas transformações, tornando-se cada vez mais intenso, diversificado e complexo. No contexto da economia globalizada, os deslocamentos de massa revelam as contradições ocultas do modelo neoliberal. Para entender o quadro atual das migrações, o Seminário Migrações: Exclusão ou Cidadania? nos permite abrir algumas janelas. A metáfora janela não é neutra, como aliás jamais o são as palavras. De fato, num mundo marcado pelo vaivém de tantas pessoas, é comum cerrar portas e janelas diante do “outro, do estranho, do diferente”.

O desemprego, a miséria e a fome levam milhões de pessoas à estrada da esperança, a qual não raro converte-se em caminho da desilusão. Aprofunda-se o clima de medo, de violência e de insegurança. Dissemina-se a cultura do individualismo e do isolamento. Multiplicam-se as “casas fortaleza”, com sistemas de segurança cada vez mais sofisticados. É como se os cidadãos tivessem se tornado reféns em suas próprias habitações. Às vezes reféns de crianças, jovens e adolescentes, os quais, em sua maioria, são simultaneamente réus e vítimas da exclusão social crescente. Grande parte dos migrantes acabam convertendo-se em bodes expiatórios desse clima de tensão aberta ou velada. 

Daí a necessidade de abrir janelas para analisar o fenômeno das migrações a partir de perspectivas mais amplas, variadas e plurais. Nos três dias de estudo, o Seminário fornece algumas pistas, que passamos a seguir de perto.

  1. O cenário da globalização e seus atores

As migrações hoje devem ser entendidas no cenário amplo e complexo da economia globalizada, como nos lembrava Lélio Mármora na conferência inaugural. Segundo ele, é necessário iniciar pela avaliação dos pressupostos que sustentam a economia de mercado global. Ao mesmo tempo que os capitais e mercadorias têm livre circulação, os migrantes encontram barreiras cada vez mais intransponíveis. Em poucas palavras, o processo de globalização revela-se excludente, assimétrico e paradoxal. A concentração da riqueza e da renda nos países centrais concentra igualmente as oportunidades de trabalho. A tendência é o crescimento do fluxo dos países pobres em direção aos países ricos. Ou seja, da Ásia, África, América Latina e Leste Europeu para Europa Central, Estados Unidos e Japão. Por exemplo, de acordo com Mármora, a Comunidade Européia atualmente necessita dos chamados “migrantes de reemplazo”. Citando Manuel Castels, afirmou que atualmente, dada a complexidade do vaivém, origem e destino deixam de ter fronteiras precisas.

Nesse campo da mobilidade humana, os países ricos fazem um jogo duplo: ao mesmo tempo aceitam e rechaçam os migrantes. Por um lado, abrem a porta dos fundos para a entrada de trabalhadores clandestinos, pois necessitam de mão de obra fácil e barata para os serviços mais sujos e pesados. Pessoas que, por sua condição irregular, acabam submetendo-se a condições de trabalho extremamente precárias e a salários irrisórios. Por outro lado, fecham a porta da frente, negando aos imigrantes o status de trabalhadores legais e, conseqüentemente, os direitos de cidadania. Além disso o serviço de controle de entrada de migrantes costuma funcionar como uma peneira, filtrando a mão de obra qualificado e descartando os menos capacitados. Esse conjunto de fatores, entre tantos outros, torna os estrangeiros ainda mais vulneráveis à exploração indiscriminada.

Neste cenário global, atuam distintos atores: empresas multinacionais, Estados, legisladores, forças de repressão, entidades e organizações defensoras dos direitos humanos e os próprios migrantes. Aqui as tensões são freqüentes e os interesses conflitantes. A constante mobilidade humana faz esses atores desempenharem papéis variados, divergentes e às vezes contraditórios.

Lélio Mármora chamou a atenção para os impactos da migração nas sociedades dos países subdesenvolvidos, com destaque para a América Latina. Os impactos ocorrem tanto sobre a legislação dos Estados, quanto sobre a atuação de movimentos sociais, entidades e organizações de defesa dos direitos de cidadania. Sem mencionar, por óbvias, as conseqüências para os próprios migrantes.

  1. A multidão dos “sem”

A economia globalizada e a filosofia do neoliberalismo conduz a uma “seleção natural” em que os fracos são devorados pelos mais fortes. Continentes inteiros, países e imensos setores da população são deixados à margem da história e dos benefícios do progresso e do crescimento econômico. Aprofunda-se o abismo entre pobres e ricos, seja em âmbito mundial e regional, seja em âmbito nacional e local. Agrava-se as desigualdades e a exclusão social, tendo como resultado, no fim da linha, o aumento do desemprego e da miséria, da fome e da violência.

Na própria sessão de abertura, a Ir. Rosita Milesi fazia desfilar os rostos dessa multidão pobre e anônima, chamando a atenção, de forma especial, para os imigrantes e emigrantes, os refugiados, o estrangeiros presos e deslocados internos. E enfatizava que todos eles estão “esperançosos de que lhes emprestemos nossa voz para denunciar injustiças, desigualdades, violações de direitos…” A cada dia e em cada lugar, novos rostos vêm somar-se à imensa multidão dos “sem”.

Qual a saída? Para alguns, a solução é o movimento social organizado na luta pela terra, pelo emprego, pelos direitos básicos à pessoa humana e por mudanças estruturais na sociedade. Para outros, a migração aparece como caminho alternativo. Mas cuidado! Não podemos, sem mais, opor os movimentos sociais aos migrantes isolados como se fossem os lutadores conscientes de um lado e os que preferem a fuga de outro. Na verdade, como diz corretamente Nélida Piñon, “o imigrante é um combatente de uma guerra não declarada”. Sai não para escapar à luta, mas para enfrentar a luta solitária por melhores condições de vida em outra parte. Parafraseando Euclides da Cunha, poderíamos concluir que “o migrante é antes de tudo um forte”. É, ao mesmo tempo, vítima sem pátria da sociedade de consumo e sujeito de um outro mundo possível, como cantavam os participantes do Fórum Social Mundial em Porto Alegre.

Convém assinalar, como fizeram alguns expositores, que as migrações são simultaneamente causa e efeito do aumento dessa enorme multidão dos “sem”: sem terra, sem emprego, sem teto, sem lazer, sem assistência médica e uma série de outras carências de ordem social e cultural.

  1. Os migrantes e a legislação

      a) Brasileiros no exterior

O Dep. Federal Orlando Fantazzini, citando o encontro e o documento de Lisboa, Portugal, reforçava a necessidade de um Estatuto para os brasileiros que vivem no exterior. Trazia inclusive detalhes de como poderia ser esse instrumento jurídico de defesa dos emigrados, amplamente debatido no referido encontro ibérico. Para Donald Sawyer, por seu turno, tanto na migração interna como internacional, o importante é defender o direito de ir e vir, correspondente ao direito de permanecer. Migrar não é uma doença, mas um meio de lutar por melhores condições de vida. Deve-se acrescentar que migrar também não revela saúde, pelo próprio fato de ser uma forma de superar condições adversas.

Em vários momentos, no decorrer do seminário, fez-se alusão ao tema da legislação. Esta costuma ser uma barreira no caminho dos migrantes. As dificuldades neste campo têm dupla dimensão. Primeiro, a falta de uma legislação trabalhista que torna precárias as relações de trabalho dos migrantes. Estes acabam sendo submetidos aos serviços mais pesados, sujos e mal pagos. Além disso, fica negado o acesso a qualquer tipo de benefício na área da saúde e da estabilidade no emprego. O resultado é a insegurança permanente do imigrante, agravada pela condição de clandestinidade. Por outro lado, a crescente flexibilização das relações de trabalho nos lugares de origem estimula muitos jovens a buscarem oportunidades em outras regiões ou países.

Quanto à segunda dimensão dos obstáculos relativos à legislação migratória, diz respeito à Lei dos Estrangeiros. A maioria dos países de imigração, notadamente as economias centrais, tendem a bloquear cada vez mais a entrada de estrangeiros. Muros invisíveis – e visíveis, como entre México e Estados Unidos – se erguem por todos os lados. As exigências são cada vez mais rígidas, sem falar nas dificuldades encontradas nas fronteiras. A tendência, como já vimos, é o aumento dos migrantes clandestinos.

Aqui as duas dimensões se cruzam. Uma Lei de Estrangeiros inflexível agrava os problemas relativos à condição de trabalho. A política dos países ricos frente aos imigrantes, cada vez mais restritiva, torna difícil trabalhar legalmente fora do próprio país. Nem precisa lembrar que, após os atentados de 11 de setembro de 2001, acentua-se o rigor para com a entrada de migrantes, e não apenas nos Estados Unidos. Com o pretexto de combater o terrorismo, reforçam-se as barreiras à livre circulação das pessoas.

      b) Estrangeiros no Brasil

Luiz Paulo Teles Barreto alerta para o risco de tratar os migrantes como inimigos do país. Os atentados de 11 de setembro contribuíram para isso. É uma lástima que se veja o fenômeno migratório não como um fato social e econômico, mas como caso de segurança nacional, ou como caso de polícia. Cria-se uma paranóia de medo e insegurança diante dos migrantes. No passado era a guerra fria que provocava essa ameaça constante, o conflito leste-oeste. O migrante era visto como ameaça à segurança interna dos países e ao avanço do comunismo pelo mundo. Depois passaram a predominar os fatores de ordem social e econômica. Os conflitos passam pela relação norte-sul, países pobres e países ricos, ou primeiro e terceiro mundo. Agora, com o clima de terrorismo, volta o tema da segurança nacional. O migrante é visto novamente como bode expiatório, o culpado potencial de todos os distúrbios.

Torna-se uma espécie de subversivo ambulante. As nações procuram defender seu território a todo custo. Pena que seja assim, pois essa visão estreita impede o intercâmbio da maior riqueza da humanidade: as pessoas, os povos e as culturas. Diferentes, plurais, mas igualmente ricas.

Esse enfoque traz conseqüências nocivas para quem deseja migrar. Aumentam as exigências e os obstáculos. As fronteiras se tornam intransponíveis. Esse clima não atinge somente o território dos Estados Unidos. Também no Brasil a entrada de estrangeiros torna-se mais difícil. As leis tendem a ser mais rígidas.

Nossa Lei de Estrangeiros data de 1980. É necessário uma nova lei que venha responder aos novos desafios. A nova lei deve levar em consideração três aspectos essenciais: a) reconhecer o Brasil como país de imigrantes, fato aliás exemplificado pela história; b) vincular a Lei de Estrangeiros ao tema dos direitos humanos e não ao medo do terror; c) considerar os migrantes não como um peso, mas como uma riqueza potencial para o país. Haja vista a contribuição para o Brasil dos estrangeiros que aqui residem há décadas, como a comunidade dos italianos, dos espanhóis, dos árabes, dos portugueses, dos japoneses, para citar apenas alguns.

Não podemos deixar que prevaleça a desconfiança diante do outro ou do estrangeiro. O Brasil deve mostrar-se um país acolhedor, como de resto sempre tem sido. Para isso são importantes debates como este. É importante, também, superar na mídia e na sociedade toda forma de preconceito e discriminação para com o estrangeiro. No Brasil, o estrangeiro tem tido uma presença familiar. O governo brasileiro, por sua vez, está interessado em avançar neste campo.

Por outro lado, o dinamismo das migrações em caráter mundial faz repensar o direito internacional sob um novo paradigma. O conceito de cidadania sofre profundas alterações. Surge a questão da dupla nacionalidade e até da tripla nacionalidade. Nacionalidade deixa de ser algo fixo, do nascimento à morte, e passa a ser uma opção. No Brasil, a constituição de 1988, abre perspectivas novas nessa direção.

Renato Zerbini levantou os principais desafios na questão dos refugiados. O primeiro desafio é sobre o conceito mesmo de refugiado. Temos de superar o conceito estreito de refúgio, ampliando-o para abarcar a violência econômica. Outro desafio é o velho debate entre asilo e refúgio. O indivíduo não tem o direito de asilar-se, é o Estado que oferece asilo. Um terceiro desafio é a proteção internacional da pessoa humana, diante dos conflitos hoje acirrados pela onda do anti-terrorismo e pela economia globalizada. Em quarto lugar, é preciso atenção à proteção de categorias específicas, tais como crianças, mulheres, indígenas, deslocados internos, entre outras.

Infelizmente hoje, diante das forças do Império Norte-americano, relativizam-se as leis internacionais do direito. Na caça indiscriminada aos terroristas, realizam-se toda forma de desrespeito ao ser humano. Nesse clima, evidente que os estrangeiros acabam sendo as maiores vítimas. Deve-se lembrar também a fragilidade da ONU. É inegável que organização das nações unidas precisa reestruturar-se. Qual o papel do alto comissariado das nações unidas, por exemplo? Dentro desse quadro, vemos a função do ACNUR: repatriação, proteção local e reassentamento do refugiado.

É preciso ter em conta que os trabalhadores migrantes, mesmo indocumentados, possuem os mesmo direitos dos trabalhadores nacionais. Só assim estaremos defendendo uma verdadeira cidadania para os estrangeiros em nosso país. Convém não perder de vista, uma vez mais, a condição dos hispano-americanos em São Paulo.

  1. Uma cidadania universal

Este item, na verdade, complementa o anterior. Por isso passemos novamente a palavra ao Dep. Federal Orlando Fantazzini. Ele começou dizendo que “a cidadania deve ser entendida de forma universal. As pessoas são, antes de mais nada, cidadãs do mundo”. Sublinhava, uma vez mais, a necessidade de proteger juridicamente os cidadãos brasileiros que optaram por viver no exterior. Evidente que essa proteção aos que saíram tem sua contrapartida: a luta por uma nova Lei de Estrangeiros para os que decidiram aportar neste país. Afinal de contas, dizia Fantazzini, as pessoas não migrar por que querem, mas por circunstâncias adversas nas localidades de origem.

Aliás, já no início do seminário, na própria sessão de abertura, mais de uma intervenção citou o bispo João Batista Scalabrini, chamado pai dos migrantes, para enfatizar que “a migração alarga o conceito de pátria para além das fronteiras geográficas e políticas, fazendo do mundo a pátria de todos”.

De fato, os migrantes exibem a contradição mais flagrante de nossa sociedade ocidental: ao mesmo tempo que o mercado exige e compra mão de obra disponível e barata, impede aos trabalhadores e suas famílias o acesso aos direitos fundamentais de todo cidadão. Paradoxalmente, o fruto do trabalho é cidadão do mundo, mas o trabalhador não. Ou seja, as coisas circulam livremente travestidas da qualidade de mercadoria, ao passo que as pessoas são reprimidas se ousarem ultrapassar as fronteiras estabelecidas. Isso explica a progressiva criminalização dos migrantes, particularmente na atual onda de combate ao terrorismo e ao narcotráfico.

Pe. Gabriele Cipriani, por sua vez, insistia que o migrante deve ser visto como um potencial de riqueza para o país que o recebe, e não como um estranho, e menos ainda como um inimigo.

  1. A ação das Igrejas

Este item teve a participação de Pe. Gabriele Cipriani e Roberto Marinucci. A intervenção de Pe. Gabriele começou com a seguinte pergunta: como entender a questão religiosa, no interior do fenômeno migratório, a partir do contexto da economia globalizada? É inegável hoje a emergência do sagrado em todo o planeta. Os migrantes, em muitos casos, ainda não superaram a fase do “gueto”, vivem em ambientes isolados. A verdadeira integração do migrante passa pela questão cultural e religiosa.

Cabe aqui uma nova pergunta, segundo Pe. Gabriele: as religiões ou instituições religiosas são capazes de contribuir na integração dos migrantes? O essencial é descobrir quem é o migrante na sua dimensão cultural religiosa. Descobrir sua identidade, seus valores mais profundos. A partir daí, estabelecer o diálogo com ele em base a tais valores. Cada migrante tem sua identidade cultural e religiosa, estreitamente vinculado ao contexto social de sua origem e à sua história pessoal e coletiva.

A realidade do país às vezes é enganosa. Dizemos que o Brasil é o maior país católico. Mas desde o começo convivemos com uma religiosidade plural, entre indígenas, negros e outras tradições cristãs da Europa e Estados Unidos. Do ponto de vista religioso, o país exibe um pluralismo que marca nossa cultura. Além disso, é grande o trânsito dos fiéis entre as várias Igrejas ou denominações religiosas. Como estabelecer o diálogo entre o migrante religioso que chega e o povo brasileiro que o recebe?

Antes de mais nada, o caminho é a acolhida e o testemunho. O testemunho da acolhida deve ser um testemunho coletivo. Como fazer isso diante da fragmentação religiosa do povo brasileiro? Entra aqui o tema do ecumenismo. É preciso superar esta divisão que tende a nos isolar e dispersar nossas lutas.

Outros dois pilares do testemunho comum é o diálogo e o anúncio. Felizmente hoje a palavra diálogo começa a entrar com mais freqüência no vocabulário religioso. A história dá testemunho de muitas guerras religiosas junto com as conquistas políticas e sociais. Diálogo é reconhecer o espírito de Deus no outro e, da parte do outro, reconhecer o espírito de Deus que está em mim.

Quanto ao anúncio, é preciso rever alguns conceitos hoje comuns. O anúncio cristão, como também o de outras denominações religiosas, deve ser libertado de uma prisão: o fundamentalismo e o exclusivismo. É neste sentido que o escritor português, José Saramago, ao referir-se aos conflitos contemporâneos, afirma que “o problema é Deus”. Isto é, quando fazemos de Deus uma arma na luta contra o outro.

Roberto Marinucci procurou responder a três questionamentos: a) Por que a Igreja Católica se preocupa com os direitos humanos e a cidadania das pessoas, particularmente dos migrantes? b) O que se faz no Brasil para a defesa dos brasileiros/as que vivem no exterior? c) Alguns questionamentos à ação da Igreja Católica junto aos migrantes.

Na primeira pergunta, Marinucci fez uma retrospectiva da Pastoral dos Migrantes, em que a preocupação pela preservação da fé vai, progressivamente, sendo enriquecida pela promoção dos direitos humanos. Citou o testemunho de Scalabrini e as ações daqueles que hoje atuam junto aos migrantes. No que se refere à segunda questão, salientou o trabalho da Pastoral dos Brasileiros no Exterior (PBE), a qual procura ser uma ponte entre as áreas de origem e os países de destino. A articulação entre os dois lados caracteriza a ação da PBE, que se desdobra em numerosas atividades. Por fim, levantou alguns questionamentos a respeito da ação pastoral com relação ao campo da mobilidade humana, destacando que o trabalho junto aos migrantes passa, necessariamente, pela transformação das estruturas da economia globalizada e neoliberal.

     6. A violação dos direitos

     a) O tráfico sexual

O exemplo mais chocante no campo da violação dos direitos humanos foi trazido por Maria Lúcia Leal, em sua intervenção sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual no Brasil. Na triste trajetória dessas mulheres e crianças, ela começou por fazer uma relação entre globalização e tráfico. Sua contribuição fundamenta-se numa pesquisa que teve como paradigma a consciência de direitos humanos. De acordo com Maria Lúcia, a primeira tarefa é desmobilizar a perspectiva repressora e moralizante, bem como desmascarar o caráter de criminalidade do tráfico. Quatro categorias se impõem na análise do tráfico: a chave do trabalho, a noção de migração, a introdução de novas tecnologias e o conceito de crime organizado.

Na primeira categoria, temos de sublinhar o baixo nível de escolaridade, a precarização nas relações de trabalho e de moradia, enfim condições de vida extremamente desumanas. Um contexto geral de vulnerabilidade econômica, social, cultural e afetiva. Daí o fácil aliciamento, alojamento, recrutamento e transporte das mulheres e crianças. Estas “trabalham” sob condições permanentes de vigilância e repressão. Vários setores do mercado utilizam atualmente os serviços do tráfico internacional de pessoas.

A partir da segundo categoria, estamos claramente diante de uma situação de migração ilegal. A demanda oferece uma política de inclusão social. Na medida em que o Estado fragilizado não dá conta de responder à contradição capital-trabalho, o mercado informal ou o crime organizado começa a recrutar esse tipo de mão de obra. Verifica-se aqui uma grave simbiose entre o mercado informal e o mercado formal, entre a corrupção e o crime organizado. Conforme alguns autores (Hobsbawn, por exemplo), rompe-se com a ética e o com o contrato social vigente na sociedade moderna, e instala-se uma situação de barbárie. Outro problema refere-se à própria população. Quando setores crescentes compram sexo como mercadoria, que noção de sexualidade tem nossa sociedade? O capital mercantiliza o sexo e nós, homens e mulheres, a adquirimos. É a racionalidade e legitimação da exploração sexual. Há aqui uma perigosa cumplicidade entre quem vende e quem compra.

A partir da categoria de tecnologia, a revolução da informática e das telecomunicações expande a todo planeta a oferta de sexo. O círculo se fecha: a tecnologia ajuda a divulgar a mercadoria e, ao mesmo tempo, facilita a compra. Estabelecem-se redes internacionais de comercialização do sexo, as quais, ao exigirem “carne cada vez mais tenra”, estimula a prostituição precoce. Vale ainda lembrar que a relação entre o comprador e a vítima torna-se extremamente assimétrica e desigual. Quem compra acaba usando a pessoa como objeto sexual. O objeto, por sua vez, encontra-se impossibilitado de exigir seus direitos. O direito está do lado de quem pode pagar.

Por fim, a categoria de crime organizado e de tráfico. Por trás de tudo isso, esconde-se uma relação colonialista, patriarcal e de subserviência. Esconde-se, ainda, uma cultura que fortalece esse tipo de dominação, machismo e autoritarismo. No limite, trata-se de escravidão de pessoas humanas. Daí que a base conceitual de nossa pesquisa esteja centralizada no direito.

     b) O trabalho escravo

Patrícia Audi trouxe outro exemplo de violação dos direitos dos migrantes, ao falar sobre o perfil migratório do trabalhador escravo. O trabalho escravo, segundo ela, tem várias modalidades, tais como tráfico de pessoas, exploração agrícola, uso de mão de obra infantil, servidão por dívida, entre outras. Existe o trabalho escravo urbano e rural. No caso do trabalho urbano, destaca-se a exploração de migrantes estrangeiros, como por exemplo as bolivianas em São Paulo. Os casos mais sérios, porém, ocorrem no campo.

O trabalho escravo é uma grave violação dos direitos humanos, pois limita a liberdade de ir e vir. As pessoas são acorrentadas por dívidas e se vêm impedidas de se locomoverem. As próprias condições de trabalho violam a dignidade do ser humano. Um duplo contexto leva a essa condição: de um lado, a miséria e a necessidade de sobrevivência por parte do trabalhador, de outro, a super-exploração da mão de obra por parte das empresas empregadoras.

O Brasil foi um dos poucos países que reconheceu o problema e tenta responsabilizar e punir os responsáveis. A grande maioria dos trabalhadores em tais condições origina-se do nordeste. O governo brasileiro tem um projeto para a erradicação do trabalho escravo e infantil. O combate e a erradicação ao trabalho escravo exige atacar várias frentes ao mesmo tempo, desde o aliciamento até o transporte e exploração da mão de obra. As causas, como sabemos, têm raízes estruturais.

     c) Depoimento

Ainda sobre o tema do trabalho escravo, Guilherme Pedro Neto enriqueceu o debate com seu depoimento. “Para mim – disse Guilherme – o mais grave é proibir o direito de ir e vir. Vocês dizem que a gente é agenciado, mas eu fui vendido. Vendido para um gato ou empreiteiro. O gato compra o peão com mulher, cachaça, uísque e outras coisas. Só depois que deixei a fazenda é que descobri que tinha sido escravo”.

“Na fazenda, tudo você vai comprar na cantina do gato. Se você foi bonzinho, não criou nenhum caso, o gato leva de volta para a mesma cidade de onde você veio. E aí você é vendido para outro gato. Isso aconteceu três vezes comigo. Quando você cria problemas, ele não leva à cidade, mas vende direto para outra fazenda. Às vezes, por causa da situação precária, a própria esposa é capaz de vender o marido”.

“O que é que leva as pessoas ao trabalho escravo? É a situação precária, o desemprego. Alguns têm que trabalhar duas, três e até mais vezes seguidas, como por exemplo na laranja, na cana, no café, no feijão e outras safras. Tem safra que dura apenas quinze dias, aí tem que partir para outra. O governo precisa entender que precisa ter fiscalização. Outra coisa que reforça o trabalho escravo é a atitude dos juízes. Eu não acredito que eles prendam um fazendeiro que utiliza mão de obra escrava. Muitas vezes as próprias fazendas ligadas aos grandes projetos do governo, como Sudam e Sudene, exploram o trabalho escravo. Tudo isso com o dinheiro público. Os juízes não mandam para a cadeia porque não querem”.

Segundo Guilherme, o ônus do combate e erradicação do trabalho escravo não deve recair sobre o orçamento público, mas sobre os fazendeiros. É preciso impedir que este continue movimentando livremente a conta bancária, ou então é preciso confiscar suas terras. Quem tem que pagar a conta não é o governo, com o dinheiro do povo, mas o fazendeiro.

7. A chave da história

Em chave histórico-estrutural, Donald Sawyer fez uma breve retrospectiva das migrações no país, a começar pelos indígenas e negros. Segundo ele, durante 50 anos o Brasil foi considerado pelos demógrafos uma sociedade fechada. Enquanto até os anos 30 temos as imigrações européias, na década de 80 começa a emigração de brasileiros para o exterior. Entre os dois marcos, meio século de fronteiras relativamente fechadas.

A emancipação dos escravos no final do século XIX, significou mudanças no modelo como um todo. A partir de então, o Brasil começa a receber os trabalhadores que viriam substituir a mão de obra escrava. Depois de 1930, o Brasil passa a proteger a mão de obra nacional e restringe a vinda de imigrantes. Percebeu-se, por outro lado, que os trabalhadores europeus traziam a consciência de luta para o seio da classe trabalhadora.

Aos poucos, o Brasil passa de um modelo agrário-exportador para um modelo industrial. Inicia-se assim o processo de proletarizaçao, o qual gera um êxodo rural crescente a partir da década de 40. Ao mesmo tempo, na contramão da proletarizaçao, dá-se a migração para a fronteira agrícola. Trata-se de um movimento centrífugo, em sucessivos ciclos, para a ocupação das terras do norte e centro-oeste. Surgem, com isso, formas não capitalistas de produção que, na verdade, convergem para a acumulação do capital.

No final dos anos 80, verifica-se uma certa desconcentração da população urbana. Crescem mais as cidades médias do interior. A verdade é que o progresso técnico não gera suficientes postos de trabalho para absorver a mão de obra. Outra novidade, com a constituição de 1988, é a consciência da cidadania. Ocorre também a entrada da mulher no mercado de trabalho. O resultado de todos esses fatores é o enorme excedente de mão de obra. Até a classe média tornou-se descartável. O mercado de trabalho não tem como absorver tantas pessoas que lhe chegam às portas, seja pelo crescimento vegetativo, seja através das migrações.

Quanto à emigração de brasileiros para o exterior, ela começa bem antes da década de 80. Basta lembrar, por exemplo, o caso dos “brasiguaios” e o vaivém constante nas regiões limítrofes, como Argentina, Bolívia, etc. A grande novidade no fenômeno da emigração é a saída de brasileiros para os países desenvolvidos. É um movimento mais de classe média, pois as viagens são caras e correm por conta do próprio migrante.

Em termos de conclusão, tudo isso tem implicações políticas. O Estado torna-se imprescindível num processo de inclusão social. Aqui convém sublinhar a importância da Reforma Agrária. Igualmente importante é o incentivo à pequena e média produção, como também a agricultura familiar tão arraigada na cultura brasileira.

Ivo Poletto, citando uma série de dados referentes à concentração da terra, da renda e da riqueza, começou lembrando o atraso do Brasil em relação a outros países, no que se refere à Reforma Agrária. De acordo com ele, o estado de concentração explica o êxodo rural nas décadas passadas. Embora desacelerado nos últimos anos, a migração para a cidade continua intensa e desordenada. Por outro lado, é grande a quantidade de terras ociosas e improdutivas, ao lado de milhões de famílias sem terra.

Qual a possibilidade de retorno ao campo? – pergunta Ivo Poletto. E responde que a resposta depende de vários fatores em disputa. Em primeiro lugar, agora contamos com um governo que mantém de pé a vontade política de realizar a Reforma Agrária. Por outro lado, dentro do próprio governo há pessoas que se manifestam claramente contrárias à distribuição da terra. Um terceiro fator, é a possibilidade de ligar o programa “Fome Zero” a mudanças profundas na produção e distribuição de alimentos. Estão previstas no programa três tipos de medidas: as emergenciais, as específicas e as de caráter estrutural. Em quarto lugar, as transformações na sociedade brasileira podem esbarrar na mentalidade reacionária do poder local, do poder legislativo e no poder judiciário. O quinto fator é a possibilidade de ampliar parcerias com os movimentos sociais do campo, unindo esforços para as mudanças necessárias.

A mobilização social é fundamental para o avanço de tais mudanças. Será necessário ainda coibir a violência e a impunidade na onda de violência no campo. Os direitos estão acima dos privilégios. Embora pareça impossível imaginar o retorno de grande parte da população à terra, hoje a sociedade brasileira gerou novas possibilidades. O que é preciso é fazer avançar o processo de democratização iniciado.

Conclusão

Os itens acima representam as várias janelas abertas pelo Seminário. Através delas, é possível vislumbrar um universo que se torna cada vez mais plural. De fato, o mundo da mobilidade humana tem vários enfoques, não podendo ser reduzido a uma leitura puramente sócio-economicista. Fatores de ordem cultural e religiosa, bem como aspectos relacionados à legislação nacional e internacional merecem atenção privilegiada, dadas as dificuldades que os migrantes hoje encontram ao cruzar fronteiras. Além disso, o dinamismo e a complexidade dos fluxos migratórios exigem uma permanente avaliação das leis internacionais. Uma das conclusões do encontro, aliás, é que a nacionalidade, muito mais do que algo que se adquire com o nascimento e que se preserva até a morte, é um direito de escolha. Daí, por exemplo, a dupla nacionalidade, hoje tão comum a muitas pessoas.

Evidente que, diante disso, o conceito de cidadania também sofre profundas transformações. O tema do Seminário Migrações: Exclusão ou Cidadania? É justamente um convite para aprofundar uma nova noção seja de cidadania, seja de exclusão social. Atualmente tanto um como o outro tem, simultaneamente, um caráter universal, mas igualmente, ambos têm a exigência de uma terra que possa oferecer o trabalho e o pão.

Pe. Alfredo J. Gonçalves

Brasília-DF, 27 de setembro de 2003

Coordenação do Semiário:

– Ir.Rosita Milesi, mscs

– Roberto Marinucci

– Pe. Thierry Linard de G.