A mobilidade humana e a globalização: fenomenologia e desafios

O conceito de globalização não é novo. Relaciona-se diretamente à economia de mercado e é tão antigo quanto ela

 

Brasília/DF, 05 e 06 de outubro de 2005

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

 

Introdução: O conceito de globalização 

O conceito de globalização não é novo. Relaciona-se diretamente à economia de mercado e é tão antigo quanto ela. Grosso modo, poderíamos defini-lo como a tentativa de ampliar o mercado até envolver todo o globo. Essa

tentativa tem duas dimensões complementares. A primeira é a ampliação extensiva do mercado. Trata-se, neste caso, de incorporar novos territórios e novos consumidores, o que vem acompanhado com novas formas de produção e comércio. É o que ocorre, por exemplo, com a guerra atual para penetrar na China, na Índia, e em outras regiões do planeta.

A segunda dimensão é a ampliação intensiva do mercado. Aqui todos os esforços se orientam para a criação de novas necessidades de consumo naqueles que já estão integrados no mercado. É isso que explica o marketing cada vez mais pesado e apelativo das empresas e dos governos com vistas a ampliar o consumo de massa. A questão de fundo é: como manter girando sem parar a roda avassaladora do produtivismo e do consumismo, motor indispensável do sistema capitalista de produção e comercialização?

Evidente que, nas duas dimensões apontadas, o processo de globalização não avança de forma linear e pacífica. Ao contrário, são inúmeros as resistências, contradições e conflitos que o acompanham. Além disso, há diferenças consideráveis nos avanços e recuos entre o capital financeiro e produtivo, por exemplo. Muitas vezes, enquanto as finanças deslocam-se de um lado para outro do globo sem qualquer tipo de restrição, os investimentos diretos, o comércio e os serviços sofrem uma série de restrições. Restrições que, diga-se logo, são muito mais rígidas no caso da circulação de pessoas.

 

Retrospectiva histórica remota

O fenômeno que se convencionou chamar de globalização tem, na verdade, mais de cinco séculos. Começou com a aurora do mundo moderno e se intensificou com a revolução industrial e o advento da economia capitalista. O capitalismo surge historicamente com vocação global, a qual lhe é inata. A partir da revolução industrial e de outras transformações da chamada modernidade, o sistema capitalista se estende pelo planeta em círculos cada vez mais amplos, até alcançar todo o universo. Sua pátria não tem fronteiras, envolve tudo o que encontra pela frente. Como fez negócio com o ouro e com o petróleo, por exemplo, fará o mesmo com a água e com o ar. Se puder vender e comprar a alma – como fez com os corpos dos negros africanos escravizados – não será o sofrimento de pessoas reais que irá impedir as relações do comércio local, regional e mundial. Da mesma forma que dizimou povos inteiros na época do colonialismo, o império contemporâneo continua condenado à exclusão social de nações e continentes inteiros.

O capitalismo é, por natureza e nascimento, um sistema expansivo, virtualmente global e predatório. Cria laços e relações que mais parecem tentáculos. Na busca pela matéria prima, na exploração do trabalho e na luta por novos consumidores, não hesita em destruir os recursos do meio ambiente e as forças humanas. Desde a era do mercantilismo, já nos séculos XIII e XIV, tudo e todos se convertem em mercadoria. O céu, a terra e o mar, com tudo o que neles se encontra – pessoas e animais, astros e coisas, deuses e demônios – são passíveis de serem comprados e vendidos no mercado. Em princípio, nada escapa ao seu poder. O sistema é potencialmente mundial desde sua mais remota origem.

Então, o que é novo quando se fala hoje de globalização? Nova é a realização histórica dessa tendência inata do capitalismo, “uma vocação clara de globalizar o mundo” através de uma “gradual expansão-integração que constitui a coluna vertebral do sistema”, na expressão de Victor Olea e Abelardo Flores. Dizem eles: “A vocação do sistema capitalista, por constituir-se como um mercado mundial cada vez mais integrado, é uma característica distintiva do sistema desde suas origens”[1]. Ou, para usar as palavras de outro autor, “mesmo admitindo que existe uma economia-mundo desde o século XVI, é inegável que os processos de globalização se intensificaram enormemente nas últimas décadas”[2]. O fenômeno da economia globalizada se explica por uma série de revoluções na área dos transportes, das telecomunicações e, especialmente, na informática, na robótica, na biotecnologia e na tecnologia em geral. Tais revoluções criaram as condições reais para que o sistema capitalista pudesse se tornar efetivamente global, realizando, assim, uma característica que lhe é intrínseca. Característica que leva a estender os fios de uma rede a todos os rincões do planeta, uma espécie de correia de transmissão por onde circulam as relações capitalistas de produção e comercialização. A internet se impõe como o símbolo mais acabado e eloqüente dessa rede mundial da economia.

Há duzentos ou trezentos anos atrás, embora o capitalismo tivesse tendência para abarcar todo o globo, uma série de obstáculos o impedia. A ciência e a tecnologia se encarregaram, nas últimas décadas, de remover definitivamente esses obstáculos. Chegou-se, assim, à era da economia globalizada, ou mundializada. Esse é o fenômeno que se convencionou chamar de globalização. Alguns autores se referem a essa nova dinâmica da economia mundial como “era da informática” ou “sociedade em rede”[3].

Em síntese, desde as primeiras indústrias da Inglaterra, o sistema capitalista de produção revela sua natureza predatória, seja em relação aos recursos da natureza, seja em relação às riquezas acumuladas, seja em relação ao trabalho humano. Aprofunda suas raízes e realiza sua vocação na medida em que o contexto histórico e cultural o permite. O progresso tecnológico faz com que se torne realidade o que era uma potencialidade. Poder-se-ia afirmar que o fenômeno a que chamamos globalização não é senão a visibilidade de uma face oculta do capitalismo: sua tendência a abarcar todo o planeta. O que estava escondido se revela com os avanços tecnológicos contemporâneos. Estes ampliaram até os confins da terra seu raio de ação. Utilizando outra metáfora, o iciberg aparece na sua totalidade, mas sua ponta era visível há muito tempo.

Estas imagens, porém, não dizem tudo. Não se trata apenas de algo oculto e algo revelado. Na verdade, as relações capitalistas de produção, através da ação dos grandes consórcios internacionais e do Estado, se ampliaram numa espiral crescente na rede mundial da economia. É preciso repetir, entretanto, que a expansão do sistema liberal não se dá de maneira uniforme e linear. Na verdade, ela integra novas regiões do globo num processo conflituoso de avanços e recuos, de resistências localizadas, de enormes contradições internas e de significativas diferenças entre, por exemplo, capital financeiro, capital comercial e capital produtivo. O estudo já citado afirma, ainda, que “o fenômeno atual da globalização é resultado de uma tendência inerente ao capitalismo desde seus inícios, e seus componentes têm uma raiz histórica que cobre boa parte da história moderna”[4]. A globalização é apontada como uma nova fase do capitalismo e, ao mesmo tempo, do desenvolvimento mundial.

 

Retrospectiva histórica recente

As últimas três décadas representam um tempo de profundas mudanças. A quantidade delas, sua profundidade e alcance, bem como sua velocidade, sacudiram o final do século XX e início do século XXI. Poucos estudiosos e cientistas ousaram prever a magnitude e a abrangência de um período histórico tão acelerado. Detenhamo-nos sobre as principais dimensões desse imenso processo de transformação.

Do ponto de vista econômico, a globalização avança nesse período de forma avassaladora. Após os anos de ouro da economia capitalista, a crise dos anos 70 reduz sensivelmente a rentabilidade dos empreendimentos. Para reconquistar seus rendimentos, o capital começa então uma verdadeira guerra em duas direções: uma pela conquista e controle de novos mercados e novas matérias-primas, outra contra os direitos trabalhistas adquiridos nos séculos precedentes.

No primeiro caso, consolidam-se os principais blocos comerciais – europeu, asiático e norte-americano – este último avançado para criação da ALCA; assiste-se a uma grande onda de privatizações em todo o mundo; e formam-se os enormes conglomerados econômicos, através de fusões, incorporações e outras formas de concentração de riqueza e poder. Em poucas palavras, aprofunda-se o caminho do neoliberalismo, na implementação do mercado total. Além deste avanço extensivo, o mercado avança também em termos intensivos, criando novas necessidades de consumo, através da industria do marketing.

Quanto à relação entre capital e trabalho, expressões como flexibilização das leis de trabalhistas e terceirização ganham amplo espaço, refletindo as novas transformações no mundo do trabalho. Este, a bem dizer, desvincula-se do emprego estável e seguro. Em não poucos países, especialmente no Terceiro Mundo, cresce a economia informal. Como veremos adiante, desemprego, subemprego e deslocamento de trabalhadores encaixam-se neste cenário de novas relações entre capital e trabalho.

Em ambos os casos, verifica-se uma investida do capital para recuperar suas margens de lucros, seja reduzindo o preço das matérias-primas e ampliando o campo das vendas, seja aprofundando a superexploração da mão-de-obra ocupada, isentando-se, ao mesmo tempo dos encargos sociais e da segurança previdenciária. A lei da seleção natural (Darwin) é aplicada à economia até as últimas conseqüências: sobrevivem os fortes, desaparecem os fracos.

Em termos tecnológicos, as inovações em áreas como as tele-comunicações, a informática e a robótica, a micro-eletrônica, a biotecnologia ou a engenharia genética constituem uma revolução sem precedentes. O mundo se estreita, torna-se uma aldeia global, mas, ao mesmo tempo, se aproxima e se afasta. A tecnologia praticamente aboliu o tempo e o espaço, os horizontes se abrem em âmbito planetário. A simultaneidade entre o fato e a notícia, tem conseqüências imprevisíveis para o comportamento das pessoas e para novos desdobramentos históricos.

Entretanto, a imensa possibilidade de novos encontros traz, em seu bojo, o risco de um grande deserto. O deserto da multidão solitária, tão característica das grandes metrópoles. Ali as pessoas se esbarram, tropeçam umas nas outras, se olham… mas não se conhecem e não se encontram. Hoje é muito comum, via internet ou telefone celular, conectar-se com os quatro cantos do planeta, mas ser incapaz de dar um simples “bom dia” a quem mora no mesmo bairro, na mesma rua ou no mesmo prédio. Paradoxalmente, a enorme abertura a novas comunicações e a novos encontros, caminha de braço dado com a solidão e isolamento.

As mudanças no campo da política remetem-nos ao conceito de império, elaborado por Michael Hardt e Antonio Negri[5]. As gigantescas corporações internacionais e a política cada vez mais agressiva dos países centrais, capitaneadas pelos Estados Unidos, recolonizam todo o planeta. Não o colonialismo de tempos passados, mas um novo sistema-mundo, articulado em rede, e comandado por alguns núcleos que controlam o poder e a renda. Os interesses econômicos se sobrepõem às decisões políticas, deixando de lado qualquer imperativo de ordem ética.

Nesta linha de pensamento, é equivocado afirmar, pura e simplesmente, que o Estado-nação está em crise ou está desaparecendo. Na verdade, ele muda a própria função frente à economia de mercado, mas de forma diferenciada: enquanto no Primeiro Mundo torna-se mais forte e influente, no Terceiro Mundo perde soberania. No primeiro caso, adquire não raro o papel de carro-chefe de novos empreendimentos, especialmente no campo da indústria bélica; no segundo, reduz-se muitas vezes a um posto de refém de organismos internacionais como FMI, OMC, Banco Mundial, entre outros.

No caso concreto do endividamento público e seus mecanismos de juros, taxas e serviços da dívida, os governos nacionais acabam muitas vezes constituindo-se numa espécie de intermediários entre a população dos próprios países e os credores que especulam no mercado financeiro. Funcionam como correias de transmissão, carreando a renda do bolso dos contribuintes para as contas bancárias dos mega-investidores.

Na perspectiva filosófico-cultural, atravessamos hoje uma profunda crise de valores. Não é uma época de crise, e sim uma crise de época, ou, se quisermos, uma crise paradigmática, civilizacional. Os debates entre os conceitos de pós-modernidade (Lyotard) conseqüências da modernidade tardia (Giddens) são reflexo deste período de dolorosa transição. Crise e transição fecundas, sem dúvida, mas tanto mais obscuras quanto imprevisíveis são seus desdobramentos futuros[6]. O fato é que os chamados tempos modernos, para utilizar a expressão de Hegel, há muito vêm sendo questionados e a crítica a seus valores ganha terreno durante todo o século XX, aprofundado-se em seu último quartel – Jürgen Habermas, Gadamer, Levinás, Boaventura Santos, Alain Touraine, Castells, entre outros.

Conceitos como razão, ciência, tecnologia, progresso e democracia, as quais desde o início da modernidade fazem parte de seu credo otimista, sofreram um tremendo desgaste  no decorrer de um século que passou por duas conflagrações mundiais, dezenas de guerras entre as nações e centenas de conflitos armados nas mais diferentes regiões. Além disso, um século que conheceu os males do totalitarismo, ba bomba atômica, do colonialismo e do holocausto. Do meio desses escombros e dessas feridas é que nascem os medos, as angústias, as dúvidas e interrogações quanto ao porvir histórico, levando os estudiosos à polêmica sobre a pós-modernidade.

 

Conseqüências e desafios da globalização

Os dois olhares retrospectivos mostram um mundo em constante mudança. Semelhantes transformações, combinadas umas às outras, resultaram em consideráveis taxas de crescimento econômico num número expressivo de países. Além disso, trouxeram inegáveis avanços nas áreas mais diversas do conhecimento científico e do desenvolvimento tecnológico. Os maiores destaques estão no campo das tele-comunicações, dos transportes, da medicina, entre outros.

Entretanto, em grande parte do planeta, aprofundaram-se as desigualdades e desequilíbrios sociais. É o que revela, por exemplo, um relatório da ONU – Informe sobre a situação social em 2005 – divulgado em Nova York no final de agosto pp. De acordo com os dados apresentados, “os 20% da população mundial que vive nos países desenvolvidos controlam 80% das riquezas do planeta. Já os cinco bilhões que estão em países subdesenvolvidos dividem os 20% restantes. A renda per capita dos 10% mais ricos equivale a 32 vezes a dos 40% mais pobres”. Diz o texto que “os jovens são duas ou três vezes mais susceptíveis ao desemprego e perfazem 47% dos 186 milhões de pessoas sem emprego no mundo. Quase um quarto dos trabalhadores do mundo não recebe o suficiente para que suas famílias superem a linha de pobreza, que é de um dólar por dia”. A conclusão é que, “as desigualdades na distribuição de renda e de oportunidades não só persistem como, muitas vezes, pioram”. O subsecretário da ONU, José Antonio Campo, afirma que a migração de trabalhadores para o mercado informal e sua conseqüente pauperização “é provavelmente uma das tendências mais significativas e disseminadas”. Dos 73 países analisados, a desigualdade cresceu em 48 durante os últimos 25 anos, permaneceu igual em 16 e diminuiu apenas em nove. Enfim, segundo o informe, o Brasil tem o maior desequilíbrio entre os países da América Latina.[7].

Em síntese, apesar do crescimento e do progresso técnico, verificam-se profundas assimetrias entre os países centrais e os países periféricos, bem como entre as regiões de uma mesma nação. Nem precisaria lembrar que tais desigualdades sociais, como veremos em seguida, constituem o pano de fundo para o aumento dos deslocamentos humanos de massa nas mais diversas direções. Os desequilíbrios de ordem econômica geram os pólos gêmeos de repulsão e atração, especialmente para os jovens que sonham com um futuro mais promissor. Cresce igualmente o desemprego e subemprego, o trabalho informal, escravo ou degradante e a violência em suas mais diversas faces. O lado mais cruel de tudo isso é, sem dúvida, o tráfico internacional de seres humanos para fins de exploração sexual, ao lado do tráfico de armas e drogas.

Diante disso, poderíamos estender-nos por longo tempo sobre as conseqüências das mudanças ocorridas recentemente, mas é impossível apontar todas. Dada a brevidade do tempo, limitar-nos-emos a comentar aquelas que mais se aproximam do nosso tema.

Antes de mais nada, o rompimento do chamado contrato social que cimentou a trajetória da modernidade. É notório hoje o esgarçamento do tecido social e das relações de solidariedade. Por esgarçamento, entendemos a deterioração de laços essenciais que aproximam pessoas, grupos humanos e povos inteiros. Atualmente, o conceito de bem comum recua diante do avanço dos desejos e interesses imediatos e individuais. Os resultados disso são visíveis por todo lado: a banalização da vida humana, o crescimento da violência em suas mais variadas manifestações, o poder do crime organizado em nível mundial, o tráfico de drogas e pessoas, a morte como espetáculo, com corpos mutilados, torturados, esquartejados, entre tantas outras imagens terrificantes.

Como pano de fundo, emerge com força o individualismo exacerbado e a concorrência desleal de todos contra todos. Evidencia-se em cores nuas e cruas a noção de barbárie, agravada pelas relações nefastas entre o ser humano e a natureza. Felizmente, aos poucos, vamos tomando consciência de que, ou salvamos o planeta inteiro, ou perecemos junto com ele.

Passa-se, assim, a um segundo bloco de conseqüências: a devastação indiscriminada e o uso incorreto dos recursos naturais, bem como a destruição do meio ambiente e da biodiversidade. Mas não é só isso. Além de deteriorar os micro e macro sistemas ecológicos, verifica-se uma utilização extremamente desigual dos bens da natureza, a qual torna uns super ricos e outros miseráveis. Neste sentido, não basta lutar por um desenvolvimento sustentável do ponto de vista ecológico, é preciso que ele o seja também do ponto de vista sócio-econômico.

O ar, as matas, as águas e muitas espécies da fauna e flora sofrem de agonia crônica, como não se cansam de alertar os cientistas e os movimentos ambientalistas. Por trás disso está o conceito ocidental de exploração: exploração dos recursos naturais e humanos e exploração das riquezas culturais acumuladas pelas gerações passadas. Esse tipo de relação com as coisas e as pessoas nos conduziu a um tipo de produtivismo e consumismo insaciáveis, comandados que são pelo mercado total. O grande desafio é substituir essa atitude depredadora por uma nova relação com o meio ambiente e com as outras formas de vida. A preservação, o cuidado, a convivência pacífica deverão prevalecer sobre a marca da exploração. Nesta mudança, será de vital importância despertar o ser feminino que mora em cada um de nós, mulheres e homens. Evidente que a organização e os movimentos de mulheres terão muito a contribuir nesta tarefa de imprimir novos rumos à nossa civilização ocidental.

O terceiro rol de conseqüências vai direto ao núcleo de nosso tema. Trata-se do aumento da exclusão social, da miséria e da fome em todo mundo (cfr. Relatórios da FAO); do desemprego e subemprego generalizados (cfr. Análises da OIT); e, em decorrência, dos crescentes deslocamentos humanos em todas as direções. A marginalidade social e a dificuldade de empregos estáveis constituem duas faces da mesma moeda. Representam a parte visível da deterioração das relações de trabalho. No projeto da cultura ocidental, trabalho e emprego formam um binômio indissociável. Usa-se um e outro termo praticamente como sinônimos. Atualmente ambos enfrentam um evidente processo de divórcio. Grande parte das pessoas continua trabalhando, e muito, mas sem a garantia de um emprego fixo e da carteira assinada. Crescem os “bicos”, os sub-contratos e o trabalho informal.

Por outro lado, ressurgem em várias partes do globo formas de trabalho que haviam sido condenadas pela história: trabalho infantil, trabalho escravo, trabalho do idoso, trabalho domiciliar, trabalho por tarefa, trabalho temporário. Constata-se aqui uma grande contradição do neoliberalismo: convivem, lado a lado, a tecnologia mais avançada e as formas de trabalho mais retrógradas.

A separação entre trabalho e emprego amarra os trabalhadores a um duro círculo vicioso: a instabilidade do emprego agrava a exclusão social, e esta, por sua vez, reduz consideravelmente as possibilidades de uma verdadeira capacitação, com vistas a responder às exigências das novas relações de trabalho. Além do mais, entre os que ainda dispõem de emprego garantido – o que se tornou nos dias atuais um luxo de poucos – aumentam em muitos casos as horas extras e a pressão das empresas. Não poucos trabalhadores atualmente encontram-se 24 horas por dia conectados com a empresa.

 

Novo cenário das migrações

A dificuldade de inserir-se no mercado de trabalho evidencia outra dimensão do círculo vicioso acima referido: a obrigação de migrar. Sair torna-se uma forma de buscar longe da própria região ou país novas oportunidades de vida e trabalho. Um vôo de pássaro sobre a recente Instrução Erga Migrantes Caritas Christi dá uma idéia do volume e dramaticidade das migrações atuais. Segundo o documento, “as migrações hodiernas constituem o maior movimento de pessoas de todos os tempos. Nessas últimas décadas, tal fenômeno, que envolve cerca de duzentos milhões de seres humanos, transformou-se em realidade estrutural da sociedade contemporânea e constitui um problema cada vez mais complexo do ponto de vista social, cultural, político, religioso, econômico e pastoral”[8]. Convém alertar que o número aproximado de duzentos milhões não contabiliza os deslocamentos internos, temporários e limítrofes, os quais, somados, totalizam outras tantos milhões.

Com o documento em mãos, podemos acompanhar a adjetivação de que ele utiliza para descrever os deslocamentos humanos atuais. Três adjetivos ilustram bem o panorama atual das migrações: elas são cada vez mais intensas, diversificadas e complexas. Intensas, pois o número de migrantes que cruzam as fronteiras e percorrem as estradas, em todo mundo, tem aumentado de ano para ano. As causas do aumento são muitas e as mais variadas. Entre elas destacam-se as transformações ocasionadas pela economia globalizada, como vimos anteriormente, as quais levam à exclusão crescente dos povos do Terceiro Mundo e sua luta pela sobrevivência; as guerras, guerrilhas e o terrorismo internacionais ou regionalizados; os movimentos marcados por questões étnico-religiosos; a urbanização acelerada, especialmente nos países periféricos; a busca de novas condições de vida nos países centrais, por trabalhadores da África, Ásia e América Latina; questões ligadas ao narcotráfico, à violência e ao crime organizado; os movimentos vinculados às safras agrícolas, aos grandes projetos da construção civil e aos serviços em geral.

Os deslocamentos humanos são também cada vez mais diversificados. Mudou o rosto das migrações. Verifica-se, por exemplo, uma feminilização do fenômeno migratório em quase todos os movimentos em curso. Dos países pobres para os países ricos, prevalece a migração de jovens em busca de melhores condições de vida. No caso da urbanização, famílias inteiras trocam o campo pela cidade, atrás dos benefícios que a zona rural não oferece. Já as levas de refugiados políticos e econômicos arrastam consigo toda uma população em fuga, procurando escapar dos conflitos armados ou da miséria e da fome. Além disso, embora por motivações distintas, migram pessoas de todas as classes sociais. Uns viajam a turismo ou por causa de trabalho especializado, enquanto a maioria parte por motivos de estrita sobrevivência.

Por fim, as migrações são cada vez mais complexas. Diversos fatores dão conta dessa nova complexidade da mobilidade humana, em âmbito mundial. Podemos sublinhar, entre outros, o fato de os fluxos migratórios não terem mais origem e destino determinados. O que se verifica é um vaivém mais ou menos desordenado, em todas as direções. Não poucos migrantes têm mais de uma origem, outros migram por etapas, para depois retomarem o caminho de volta. Enfim, os migrantes acumulam em sua experiência várias saídas e várias chegadas, numa tentativa constante e praticamente vã de se fixar definitivamente. As trajetórias se repetem, torna-se difícil distinguir idas e vindas. Cada chegada converte-se em novo ponto de partida. A fixação vira uma miragem sempre distante e nunca alcançável.

Não é sem razão que muitos autores falam de migrações pendulares, temporárias, rotativas, circulares, enfim, de um permanente vaivém atrás de uma sobrevivência que sempre parece escapar pelos dedos. Nesta perspectiva, o conceito de migração ganha novos horizontes, para dar conta de um imenso exército de desempregados e subempregados que praticamente vive acampado. Ao menor sinal de abertura de novos postos de trabalho, trabalhadores e trabalhadoras de todos os cantos acorrem aos milhares e milhões, disputando míseras vagas.

Se tivéssemos que fazer um mapa das migrações, muitos rostos e muitas rotas se entrelaçariam. Entre os rostos, podemos rapidamente citar os refugiados, os “desplazados”, as vítimas do tráfico de seres humanos e do turismo sexual, os trabalhadores temporários, os que buscam a zona urbana, os técnicos e diplomatas, os marítimos e aeroviários, os jovens e mais recentemente as mulheres, os ciganos, além de soldados, peregrinos, deportados, etc. Quanto às rotas, elas se cruzam e recruzam nas direções mais variadas, formando a rede inextrincável do fenômeno migratório.

Vale concluir este item refletindo sobre a relação entre crise e mobilidade humana. As crises sociais, econômicas, políticas ou culturais costumam “produzir” deslocamentos humanos. Estes são como que um termômetro visível das transformações invisíveis, as ondas aparentes de correntes subterrâneas. Embora fecundas em seus desdobramentos, as crises muitas vezes começam por agravar as tensões e conflitos.

Em tempos de crise, a tendência é criminalizar e satanizar o outro, o estranho, o diferente. Contra ele, erguem-se muros, leis mais rígidas, preconceito, discriminação, racismo e xenofobia. Não é sem razão que os movimentos neo-facistas e ultra-nacionalistas são filhos das grandes crises. O estrangeiro, nestes casos, pode ser visto como o bode expiatório, sobre o qual recai a culpa dos distúrbios sociais. Claro que essa hostilidade se agrava após o 11 de setembro, no clima de combate ao terrorismo e ao narcotráfico. Povos inteiros, especialmente originários dos países do Terceiro Mundo – os árabes em primeiro lugar – acabam sofrendo as conseqüências dessa temperatura elevada, e com freqüência sem perseguidos justa ou injustamente.

Em termos prospectivos, seguindo ainda o espírito do documento citado, surge no horizonte o grande desafio da inculturação. De fato, diante de um mundo fortemente marcado pelo pluralismo étnico, cultural e religioso, como passar de uma convivência pacífica para um mútuo enriquecimento, ou seja, como passar do multi-culturalismo para o inter-culturalismo?. Tal processo de inculturação traduz-s, no documento, em palavras como “fluidez, escuta, compreensão e diálogo”. O texto conclui que, diante dos “mil rostos do outro”, “não basta a tolerância, é necessário simpatia e respeito, naquilo que é possível, da identidade cultural dos interlocutores”[9].

 

O Desafio da Fronteira

Tomo emprestado de Boaventura Santos[10] o conceito de “fronteira”, adaptando-o livremente à uma reflexão de caráter teológico. O migrante é aquele que habita o espaço indefinido da fronteira. Ali, ele não é mais cidadão do país de origem e ainda não é cidadão do país de destino. Neste caso, o termo “fronteira” é entendido não tanto em termos geográficos, mas em termos simbólicos, culturais e até psíquicos. Uma espécie de não lugar, onde mora um não cidadão, que se encontra temporariamente sem documentos. Por isso mesmo, vê sua identidade ameaçada, questionada, fragmentada. Também sua fé se vê abalada. A partir desse não lugar, o migrante é levado a interrogar a Deus e a interrogar o próprio destino. As certezas e referências se desfazem. Como se as estrelas se apagassem no céu e os marcos desaparecessem da estrada. Dúvida, medo e insegurança passam a habitar o coração e a alma. O perigo da solidão, da anomia e do desespero ronda a porta. De acordo com Boaventura Santos, é aí que o migrante vai lançar mão, simultaneamente, de sua herança cultural e da invenção de novas formas de sociabilidade.

De fato, saindo dos países mais pobres em direção aos países centrais, o migrante é a expressão viva do divórcio atual entre o trabalhador e o cidadão. Os governos dos países receptores querem trabalhadores para os serviços mais sujos, pesados e mal pagos, mas não abrem oportunidades para novos cidadãos. De forma contraditória e hipócrita, o sujeito é recebido enquanto trabalhador, mas recusado enquanto cidadão. A porta dos fundos se abre clandestinamente, mas a porta da frente, da legalidade, permanece fechada. Daí o número crescente de imigrantes irregulares em vários países de todo o mundo, utilizados como mão-de-obra fácil e barata.

Entretanto, esse espaço ambíguo da fronteira – esse não lugar – é cheio de novas potencialidades. Se, por um lado, revela o migrante como vítima da ordem mundial vigente, por outro, também o revela como protagonista de um novo tempo. De fato, a experiência de passar pelo não lugar abre perspectivas para buscar um novo lugar. Ou seja, o não lugar torna-se o lugar privilegiado, ideal, para criar as raízes de uma nova noção de cidadania, um terreno fértil para cultivar o conceito de cidadania universal e sem fronteiras. A partir da experiência dolorosa de estar fora da casa e da pátria, engendra-se o anseio por uma casa universal, desvinculada das categorias estreitas de Estado-nação, língua, raça, etnia. O nacionalismo mórbido tende a ser substituído por um universalismo plural e saudável. As fronteiras tendem a ser rompidas, em favor de um intercâmbio enriquecedor. Dom João Batista Scalabrini, bispo de Piacenza, Itália, considerado o “apóstolo dos migrantes”, já sonhava com tal cidadania global ao afirmar que “para o migrante a pátria é a terra que lhe dá o pão”.

Numa palavra, o migrante habita a fronteira de dois mundos ou duas civilizações: de um lado, uma ordem mundial simultaneamente concentradora e excludente, de outro, o sonho de um outro mundo possível. O próprio ato de migrar é, ao mesmo tempo, denúncia e anúncio, num tempo marcado por profundas assimetrias sócio-econômicas. Denúncia da falta de condições reais para sobreviver em sua terra natal e anúncio de que mudanças substanciais se fazem necessárias e urgentes.

Os migrantes são portadores dessa nova utopia mundial. A caminho, eles nos chamam também a caminhar, na construção de um novo mundo de justiça e solidariedade. Tornam-se, a um só tempo, sinais das contradições da globalização neoliberal e porta-vozes de uma nova ordem. O terreno ambíguo da fronteira gera a atitude ambígua da experiência migratória. Nesse não lugar, o migrante se depara frente a uma encruzilhada: entregar-se ao desespero ou abrir novos caminhos. O não lugarconverte-se, assim, em indefinido e escorregadio, mas fecundo, para uma nova reflexão sobre a própria existência, sobre a fé em Deus e sobre a prática solidária para com os irmãos e irmãs. Do ponto de vista teológico, um lugar fecundo para deitar os alicerces do Reino de Deus.



[1] OLEA, Víctor Flores; FLORES, Abelardo Mariña. Idem (grifo dos autores, tradução livre).

[2] SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice – O social e o político na pós-modernidade. Cortez Editora, São Paulo/SP, 1995.

[3] CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. In: A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Vol. 1Editora Paz e Terra, São Paulo, 1999.

[4] OLEA, Víctor Flores; FLORES, Abelardo Mariña. Idem (tradução livre).

[5] NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. Império, Editora Recordo, 2001.

[6] A respeito do conceito de “pós-modernidade”, vale citar: LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. José Olympio Editora, Rio de Janeiro, 1979, 7ª edição; HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. Edições Loyola, São Paulo, 1992; GIDDENS, Anthony. As Conseqüências da Modernidade. Editora Unesp, São Paulo, 1990

[7] Cfr. Folha de São Paulo, 26/08/2005, pág. A 18.

[8] Erga Migrantes Caristas Christi, Potifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes. Edições Paulinas, São Paulo, 2004, Apresentação.

[9] Era Migrantes Caritas Christi. Instrução do Pontifício Conselho da Pastoral para os Migrantes e Itinerantes, Edições Paulinas, São Paulo, 2004, nº 36.

[10] SANTOS, Boaventura Souza. Fronteira, in: Crítica da Razãao Indolente – Contra o desperdício da experiência. Cortez Editora. São Paulo, 2000. Págs. 347-356.