Reunidos no II Encontro Continental sobre Migração, Refúgio e Deslocamento com o objetivo de oferecer nossa contribuição na construção de uma Igreja peregrina e missionária
Contribuição do II Encontro Continental de Pastoral da Mobilidade Humana
CELAM – Junho de 2006
Reunidos no II Encontro Continental[1] sobre Migração, Refúgio e Deslocamento e com a presença do Arcebispo Secretário do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, com o objetivo de oferecer nossa contribuição na construção de uma Igreja peregrina e missionária, partilhamos, uma vez mais, as dores e alegrias de nossos irmãos e irmãs migrantes, refugiados e deslocados, dispersos neste mundo que de grande se tornou pequeno e de distante está sendo cada vez mais nosso.
Conhecedores do documento de participação “Rumo à V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe”, particularmente os números 123[2], 141 e 153[3], referentes à mobilidade humana no continente americano, considerando os resultados do trabalho realizado neste II Encontro Continental da Pastoral da Migração e Refúgio e desejando colaborar com a dimensão missionária de nossa Igreja latino-americana e caribenha, fazemos chegar à V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe as seguintes considerações:
O fenômeno da mobilidade sempre acompanhou a história da humanidade. Na atualidade, estamos diante de uma realidade que tomou proporções mundiais. O processo de globalização que caracteriza o novo milênio, as crescentes diferenças de desenvolvimento entre os países americanos, os conflitos sociais, os desastres naturais e as crises econômicas que muitos povos devem suportar, como também a busca de melhores expectativas e oportunidades de vida, geram e intensificam a mobilidade das pessoas em magnitude cada vez mais crescente e universal. Este fenômeno repercute intensamente em nossos países latino-americanos e caribenhos.
1. Fundamentação teológico-pastoral
Um aspecto muito fecundo do fenômeno da mobilidade humana é sua dimensão religiosa que acaba sendo, na realidade, símbolo de sua densidade humana e consistência ética.
É muito significativo o paradigma migratório, como experiência religiosa de significado universal, que a Bíblia quer transmitir. Assim, a condição de migrante do povo de Deus se faz constitutiva de sua identidade e de sua missão histórica.
Para um cristão, acolher aos demais não é somente um ato de solidariedade; é encontrar-se com Cristo que espera ser acolhido, amado e servido nos irmãos, especialmente nos mais pobres e necessitados. Todo o cristão é portador e herdeiro da memória histórica do caminhar do Povo de Deus, do respeito ao forasteiro e de seu compromisso com a hospitalidade, conforme a Palavra de Deus: “quando um forasteiro vem morar contigo, não o explorarás, trata-lo-ás como um de tua própria terra, como um de vós mesmos, ama-lo-ás como a ti mesmo, pois tu também foste estrangeiro no Egito” (Lv. 19, 33-34). Em Cristo, Deus veio pessoalmente pedir hospitalidade aos homens e mulheres do mundo. Quis nascer em uma família que não encontrou alojamento em Belém (Lc. 2, 6-7). E viveu a experiência do desterro no Egito (Mt. 2,14). Jesus, que “não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20), pediu hospitalidade. A Zaqueu lhe disse: “Hoje devo hospedar-me em tua casa” (Lc. 19,5). E chegou a identificar-se com o estrangeiro que necessita de hospitalidade e amparo: “Fui estrangeiro e me acolheste” (Mt. 25,35), cfr. EMCC[4], 12,18.
A partir desta visão cristã da pessoa, da vida e da história, a Igreja renova seu compromisso de serviço solidário voltado às pessoas em mobilidade, acima de todas as fronteiras geográficas e legislativas, para contribuir na construção de uma humanidade mais justa e fraterna.
A Igreja tem uma sintonia especial com o fenômeno da mobilidade humana, uma vez que existe uma espécie de com naturalidade entre ela mesma e as pessoas em movimento. Ela se define como “Igreja Peregrina”, identifica-se com o próprio caminhar da humanidade. A Igreja não pode estacionar, mas, sim, deve entrar na dinâmica da permanente peregrinação rumo aos “novos céus e nova terra”.
A Igreja, peregrina, sente-se próxima à condição das pessoas em mobilidade e chamada a compreender seus dilemas. Por isso mesmo, é chamada a apoiar as justas reivindicações e a defender a causa das pessoas em mobilidade nos diversos contextos: seja no espaço interno de cada país, buscando promover leis que favoreçam a vida das pessoas em mobilidade e suas famílias e sua inserção na sociedade, seja a nível mundial, urgindo o enfrentamento das causas que provocam os deslocamentos humanos e produzem a situação em que vivem as pessoas em mobilidade.
2. Interpelações éticas e políticas
O fenômeno da mobilidade humana implica a noção de bem comum universal, que abarca toda a família humana, como a base principal para a construção de um mundo fraterno. Todos os homens e mulheres devem poder gozar de um justo direito a migrar assim como a não-migrar, que compreende o direito a viver dignamente com a própria família, a conservar e desenvolver o próprio patrimônio cultural, incluído o patrimônio religioso, e a ser tratado, em toda a circunstância, de forma digna e justa. Eles, por sua vez, têm o dever de integrar-se no país para o qual emigram, de cultivar o próprio idioma, assumir seus valores e trabalhar para seu desenvolvimento, no respeito à própria identidade.
Cada vez mais emerge a necessidade de reconhecer a toda a pessoa humana, um direito a uma “cidadania universal”, pelo simples e fundamental fato de ser membro da família humana, portanto, participante da “sociedade humana”, com direito a ocupar seu espaço sociocultural e a contribuir com sua presença e sua ação. O que aqui se diz constitui um desafio para o direito internacional humanitário.
Nos países receptores de migrantes, a desinformação, as dificuldades sócio-laborais dos trabalhadores locais e a defesa exagerada do bem-estar adquirido induzem à tentação da intolerância, da xenofobia, da discriminação das pessoas migrantes e a provocar situações de abuso à sua dignidade humana e aos seus direitos sociais e trabalhistas. Isto gera a necessidade de definir políticas públicas migratórias que possibilitem avançar no sentido de considerar o fenômeno migratório num marco de convivência democrática e eqüitativa entre os migrantes e os nacionais de cada país. Estas políticas devem assegurar uma institucionalidade migratória que permita não só estabelecer mudanças normativas que garantam a tutela dos direitos das pessoas em mobilidade e de suas famílias, mas também que lhes assegure a liberdade pessoal, o direito a residir e permanecer em qualquer parte do país de destino, à não discriminação, à igualdade de direitos e tratamento, à integração nos serviços sociais concedidos pelos Estados, à reunião familiar e o direito à tutela judicial efetiva.
- 3. Compromisso Pastoral
Partindo da concepção de que a mobilidade das pessoas é um sinal dos tempos, um lugar onde Deus revela à humanidade sua condição de família humana, a Igreja reconhece a necessidade de avançar na consolidação de uma cidadania universal e que nesta nova ordem “no há distinção entre judeus e gentios, circuncisos e incircuncisos, bárbaros e citas, escravos e livres” (col. 3,11).
Em sintonia com o tema da V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe – Discípulos e missionários de Jesus Cristo para que nossos povos nele tenham vida – reconhecemos que as pessoas em mobilidade são missionárias de uma nova evangelização em nosso continente. Elas revelam a necessidade de que nossa Igreja integre estruturas de uma pastoral missionária no âmbito da mobilidade humana (cfr. EMCC 89-95).
Confiamos que a Igreja da América Latina e Caribe assumam na V Conferência de Aparecida o compromisso de promover e animar uma pastoral específica da mobilidade humana, integrando as diferentes áreas de ação pastoral (ver, segundo a realidade de cada país e/ou região: migrantes internacionais, refugiados, deslocados, migrantes internos, vítimas de tráfico de pessoas, estudantes estrangeiros, nômades, circenses, feirantes, turistas, peregrinos, trabalhadores do mar, pescadores, tripulantes e usuários de cruzeiros e de pequena cabotagem, trabalhadores e usuários do transporte aéreo e terrestre, aeroportuários, e moradores de rua, principalmente crianças, mulheres e sem teto).
É uma parte da missão da Igreja oferecer critérios de solidariedade, mostrando valores humanos e cristãos que ampliem os horizontes das soluções que necessitam ser encontrada para os problemas concretos que enfrentam as pessoas em mobilidade em nosso tempo.
São as referências éticas que devem guiar os passos concretos das implicações que as migrações suscitam, no âmbito das relações humanas, da integração cultural e das relações políticas, econômicas, sociais e religiosas. À luz dos valores éticos é possível mover-se com segurança no processo humano que as migrações sempre estimulam.
O fenômeno da mobilidade é portador de um significado transcendente para a vida humana. Por isso, é preciso abordá-lo na perspectiva ampla da qual se reveste. Ele não pode ser enquadrado nos limites de estreitos interesses entre países ou sistemas políticos e econômicos.
A Igreja é chamada a exercer a missão do “bom samaritano”, socorrendo as pessoas em mobilidade, oferecendo-lhes uma atenção pastoral específica e sustentando também aos que acolhem estas pessoas. Ela deve servir de fiadora, garantindo que esta acolhida mútua faça a humanidade avançar na realização de seu destino como família humana, que percorre neste mundo o caminho que leva ao Reino onde não haverá mais fronteiras e onde a comunhão será plena e definitiva.
[1] O Encontro foi realizado em Bogotá, de 31 de maio a 2 de junho, e contou com a presença do Arcebispo secretário do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Mons. Agostino Marchetto e de representantes de 16 Países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Panamá, Peru, República Dominicana e Venezuela.
[2] “É crescente a mobilidade humana, tanto interna quanto internacional, nesta era da globalização. Todavia, as pessoas não conseguem se deslocar como os capitais e bens. Isto se deve à incoerência das políticas econômicas que perseguem a liberação nos movimentos do capital, mas não no movimento das forças de trabalho”.
[3] “A Igreja vê com muita preocupação a violência, o maltrato e a violação dos direitos fundamentais dos migrantes, refugiados e deslocados de toda a América Latina e do Caribe. Eles interpelam a Igreja para compreendê-los, recebê-los e valorizar sua cultura e sua religiosidade (…)”.
[4] Erga Migrantes Caritas Christi, (A caridade de Cristo para com os Migrantes) Instrução do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, Roma, maio 2004.