A relação entre migrações internacionais e religião é um tema que vem sendo muito debatido na atualidade
Roberto Marinucci*
A relação entre migrações internacionais e religião é um tema que vem sendo muito debatido na atualidade. Várias revistas acadêmicas publicaram recentemente dossiês específicos sobre o assunto.[1] Em 2012 foi emitido o primeiro relatório estatístico sobre deslocamentos internacionais de afiliados às principais tradições religiosas, Faith on the move.[2] As manchetes de revistas e jornais têm relatado numerosos acontecimentos envolvendo, direta ou indiretamente, a dimensão religiosa e as migrações: os debates sobre a inclusão do cristianismo no Preâmbulo da Constituição da União Européia; o assim chamado affaire du foulard e a questão dos símbolos religiosos na França; as reações decorrentes das declarações do papa Bento XVI sobre Islã na universidade de Ratisbona, em 2006; o referendum sobre minaretes na Suíça, em 2009; a proibição das carnes religiosas na Holanda, em 2011; o debate sobre a presença de crucifixos em espaços públicos, na União Europeia; as polêmicas sobe a construção de um centro Islâmico, em Nova Iorque, nas proximidades do Ground Zero.
Trata-se de eventos e debates que alimentaram a reflexão pública sobre a questão religiosa, o multiculturalismo, a integração dos migrantes, a laicidade do Estado, o fundamentalismo religioso. Não raramente, o foco das reflexões sobre o assunto, principalmente na imprensa, tende a ser alarmista e amedrontador. A diversificação do campo religioso produzida pela chegada de imigrantes, por vezes, é vista como uma ameaça para a identidade nacional ou como um sério desafio para a laicidade do Estado. Menos comum é a reflexão sobre as potencialidades da dimensão religiosa na jornada dos migrantes, bem como no processo de integração na sociedade de chegada.
Neste trabalho queremos abordar justamente o tema da dimensão religiosa na vida dos migrantes, ressaltando como a pessoa que possui uma cosmovisão religiosa possa utilizar sua religiosidade como um recurso simbólico para enfrentar os diferentes desafios inerentes à migração.[3] De forma específica, no processo de integração na nova terra o migrante se depara com numerosas situações conflitivas e sofridas. É aqui que a dimensão religiosa pode dar um importante suporte psicossocial, oferecendo proteção diante das adversidades, ajudando o migrante a reinterpretar e dar sentido à sua biografia, resgatando sua dignidade e favorecendo o processo de diálogo e incorporação na sociedade de chegada. Antes que avaliar a plausibilidade e a veridicidade das crenças dos migrantes, nosso objetivo é evidenciar o papel desenvolvido pela “racionalidade religiosa” diante dos desafios da jornada migratória.
Este trabalho será fundamentado em pesquisas realizadas junto a migrantes de várias tradições religiosas e contextos geográficos. Devido à amplitude e à complexidade do assunto, bem como à diversificação das abordagens teológico-pastorais das várias tradições religiosas, não pretendemos exaurir ou abranger a totalidade das temáticas envolvidas, mas apenas focar o fator religioso enquanto fonte de proteção, sentido, dignidade e diálogo com a cultura da terra de chegada. Na última parte apresentaremos algumas reflexões sobre as implicações destas reflexões para o Brasil, país historicamente caracterizado por intensos fluxos migratórios, mas que não conseguiu ainda tematizar de forma aprofundada a relação entre as migrações internacionais e a dimensão religiosa.
1. A religiosidade como recurso simbólico que traz proteção diante das adversidades da jornada migratória
Todo ser humano precisa de conforto e proteção. Segundo alguns pesquisadores, a própria origem das crenças religiosas brotaria do desejo de proteção diante do “temor cósmico”. O migrante em decorrência do desenraizamento social e cultural está ainda mais vulnerável, pois é obrigado a reinterpretar sua identidade, sua cosmovisão, suas opções fundamentais. Esta situação provoca, ainda mais, a sensação de desamparo e insegurança. É neste contexto que a religiosidade pode se tornar um importante recurso.
Esta é a conclusão, por exemplo, das pesquisadoras Hagan e Ebaugh[4] que realizaram um estudo junto a maias guatemaltecos pentecostais que migraram para a cidade de Houston, nos EUA. Conforme as citadas autoras, a dimensão religiosa para esses migrantes tem um papel fundamental em seis estágios do projeto migratório: na decisão de migrar, na preparação da viagem, na travessia, no ingresso na terra de chegada, no processo de integração e no estabelecimento de relações transnacionais. Entre eles queremos frisar os primeiros dois: segundo as autoras, embora a migração dos guatemaltecos tenha matriz fundamentalmente econômica, a decisão de migrar depende de conselhos e premonições do pastor. E mesmo após a tomada de decisão, no estágio da preparação da viagem, a liderança religiosa pode retirar o apoio e aconselhar a renúncia ou o adiamento da viagem. Em outros termos, a anuência e a proteção do sagrado são condições sine qua non do começo da travessia.
De acordo com o pastor de uma igreja independente, entrevistado pelas autoras, “…because the investment is so high, the risk so much, and crossing de borders imply uncertainty, the majority of those in our community who make this voyage are focused on seeking divine intervention in their undertaking”[5]. Antes de começar uma jornada tão complexa é fundamental, para esses migrantes e seus familiares, consultar o sagrado, sentir-se apoiados e protegidos nessa desafiadora escolha.
A proteção do sagrado se concretiza também no apoio e refúgio oferecidos pelas próprias comunidades religiosas na terra de chegada. Muitas vezes, o migrante com cosmovisão religiosa é levado a buscar e frequentar lugares de culto, celebrações ou outras atividades promovidas pela sua denominação religiosa. Desta maneira, a pessoa é inserida numa comunidade que, com freqüência, exerce um importante papel de amparo. A proteção de Deus, nesta ótica, não se dá apenas pela consulta da vontade divina, mas também pelo suporte da comunidade dos fieis. Assim, nas palavras de Ambrosini, “l’aggregazione intorno a un’istituzione religiosa può prendere il posto della famiglia estesa, e fornire una base per rapporti di amicizia e scambio sociale”[6]. Nas comunidades religiosas os migrantes podem reviver aquelas relações primárias típicas do contexto familiar, recebendo conforto espiritual e, inclusive, social e material. Essa é a opinião também de uma brasileira evangélica residente nos EUA entrevistada pela socióloga Lúcia Ribeiro: “Quem não tem família aqui tem a Igreja que é a nossa família; os amigos são os nossos parentes aqui. São as pessoas com as quais a gente pode contar”[7].
Diante dessas afirmações, no entanto, surge uma questão: a sensação de familiaridade e amparo é oferecida pela religiosidade ou pela etnia ou nacionalidade comum? É preponderante o fator religioso ou o fator étnico? Não é possível aqui aprofundar o tema. Mesmo assim, cabe destacar como nos EUA seja muito comum, sobretudo no cristianismo protestante, a formação de igrejas étnicas, que unem a dimensão religiosa e a cultural. Já o catolicismo, mesmo admitindo e realizando em vários contextos essa prática[8], entende que a “etnicização eclesial” deve ser entendida apenas como uma etapa de aproximação para a incorporação plena na igreja local.[9]
Seja como for, não há dúvida de que a religiosidade do migrante pode se tornar um recurso importante para amenizar a sensação de insegurança e desamparo que caracterizam a jornada de muitos migrantes. Para que isso seja possível é importante não apenas o apoio da comunidade religiosa, mas também, como veremos a seguir, a reinterpretação da própria caminhada biográfica.
2. A religiosidade como recurso simbólico para dar sentido aos sofrimentos da jornada migratória
Além de proteção, o migrante precisa também de “sentido”: sente necessidade de compreender e legitimar as escolhas feitas, bem como os acontecimentos biográficos que parecem contradizer suas convicções. A religião, nesta perspectiva, conforme a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger, visa “dare un senso all’esperienza soggettiva degli individui”[10]. A religião se torna una bússola, um mapa para a compreensão dos misteriosos acontecimentos biográficos.
O abandono da terra de origem e, com muita freqüência, de familiares próximos, inclusive filhos ou cônjuges, gera, não raramente, nos migrantes um forte senso de culpa, como se estivessem, no fundo, renegando a própria família. Embora racionalmente a viagem possa ser justificada pela necessidade do sustento dos próprios familiares, nem sempre isso é suficiente para eliminar a sensação de culpabilidade. Além disso, muitos migrantes precisam interpretar os sofrimentos, as decepções e as frustrações que frequentemente acompanham os deslocamentos, principalmente quando se torna expressivo o gap entre as idílicas expectativas e a sofrida realidade. A religiosidade, nesses casos, pode ser um recurso simbólico que oferece sentido, inserindo as escolhas e as experiências biográficas no interior do plano divino.
Andrea Althoff[11], num estudo sobre migrantes pentecostais em Chicago, cita o sermão de um pastor que, a partir do episódio bíblico de Abraão, busca – explicita e implicitamente – dar esperança e sentido aos sofrimentos dos recém-chegados. Na ótica do pregador, a presença dos migrantes na nova terra está diretamente relacionada com a vontade divina: mesmo se a situação deles é difícil ou até dramática, Deus estaria realizando sua promessa oferecendo um futuro próspero para seus filhos e, claramente, garantindo para cada migrante a recompensa escatológica. A Sagrada Escritura se torna uma chave hermenêutica para dar sentido às experiências de sofrimentos.
Na mesma esteira, a socióloga brasileira Lúcia Ribeiro[12], na supracitada pesquisa, cita o caso de uma migrante católica que, com seus filhos, teve que acompanhar no país norte-americano o marido empresário. Ela relata que costumava rezar em busca de sinais de Deus, pois só podia aceitar a migração enquanto vontade divina: “Eu vou me entregar nas Suas mãos. Sabe como é difícil para mim ter que deixar tudo, estou chorando. Não vou morar nos Estados Unidos se for por um plano do meu marido, só vou ficar se eu sentir que é por um plano Seu, que eu tenha algo muito importante para fazer lá. E Você vai ter que me dar uma prova disso”. Ela contou também ter encontrado sinais dessa vontade de Deus, o que lhe deu sustento nas várias decisões que tomou. Há casos, no entanto, infere Ribeiro, em que os sinais não são “externos”, mas são encontrados na consciência da pessoa.
Enfim, a experiência migratória já foi interpretada como “theologizing experience”[13]: trata-se de uma experiência que leva o migrante a se perguntar “why are we here?”, a reinterpretar sua visão do mundo, suas prioridades, suas opções fundamentais. O migrante é uma pessoa com identidade radicalmente “em construção”[14]. É nesse âmbito que entra em jogo a dimensão religiosa como precioso recurso simbólico para reinterpretar a realidade, tentando conciliar o presente e o passado, num complexo e sofrido processo de “negociação identitária”.
Portanto, é importante sublinhar como a religiosidade do migrante não se configura apenas como busca de refúgio e proteção, ou seja, quase como uma “fuga” diante da realidade sofrida. Antes que isso, esse capital simbólico constitui um caminho para dar sentido e integrar novas e sofridas experiências. Antes que fuga é um espaço de “enfrentamento simbólico” da realidade.
3. A religiosidade como recurso simbólico de resgate da dignidade do migrante
Além de proteger e dar sentido às novas experiências, a religiosidade pode ser um importante recurso para resgatar a dignidade dos migrantes. Em contextos marcados pela xenofobia e pela criminalização dos estrangeiros, os recém-chegados correm sempre o risco de interiorizar as representações negativas da sociedade que o circunda. Em outros termos, a pessoa que passa pela experiência da rejeição pode chegar ao ponto de aceitar e até justificar a própria vitimização.
Neste contexto, a religiosidade pode ser um caminho que permite ao migrante recuperar a consciência da própria dignidade. Aquele estrangeiro que na sociedade é estigmatizado como sendo “clandestino”, “invasor”, “extracomunitário”, “criminoso” ou até “terrorista”, encontra nas comunidades religiosas espaços de protagonismo e acolhida gratuita. Mediante a religiosidade o migrante pode resgatar a dignidade, a autoestima, a consciência de seu valor.
Esse caminho pode ser trilhado de diferentes maneiras. Otto Maduro[15], num trabalho sobre mexicanos convertidos a grupos evangélicos pentecostais nos EUA, afirma que se na sociedade americana o migrante é “ilegal” e ameaçador, dentro das igrejas é uma “persona importante, absolutamente única, escogida, llamada, elegida, impulsada, bendecida y protegida por Dios; alguien con una misión más importante que la de cualquier millonario, político, estrella de cine, doctor o profesor: ésta es mostrar a quien no lo conozca el camino de la salvación eterna”. O patinho feio da sociedade, nas igrejas se torna cisne. Otto Maduro sublinha, sobretudo, o protagonismo que os migrantes mexicanos assumem nas igrejas pentecostais, onde os ministérios – predicação, educação, missão etc. – podem ser assumidos por qualquer pessoa vocacionada. Em suas igrejas, os migrantes são considerados como sendo “portadores y proveedores de una misión sagrada”, de uma missão que os torna únicos, eleitos, escolhidos e abençoados por Deus.
Outro caminho de resgate da dignidade passa pela conscientização dos migrantes em relação a seus direitos fundamentais. Se a sociedade de chegada, em contextos xenófobos, tende a transformar vítimas em culpados, trabalhadores honestos em criminosos, a religiosidade do migrante pode ser um caminho de resgate da própria dignidade caso seja fonte de conscientização em relação aos mecanismos que geram injustiças e exploração. Estamos nos referindo àquelas igrejas e religiões que desenvolvem atividades de advocacy, de orientação sobre direitos e deveres, de organização popular visando reivindicar direitos negados. Não se trata apenas de grupos religiosos que atuam como ONGs da sociedade civil. No caso do cristianismo, por exemplo, estamos diante de igrejas que, seguindo a lógica da Encarnação, “assumem a condição” da humanidade reificada (cf. Fl 2,7) e se engajam no resgate da dignidade inerente dos seres humanos enquanto criados à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,26).
Nos EUA, por exemplo, a Igreja Católica tem tomado posições bastante firmes em relação às políticas públicas restritivas e de criminalização dos migrantes. Durante as manifestações do dia 1º de maio de 2006, segundo Jorge Durand, “el principal aliado de los migrantes y sus organizaciones fueron las iglesias, muy en especial la católica. […]. La oposición de la Iglesia Católica a la hr4437 […] fue, sin duda, un elemento clave para cuestionar la viabilidad del proyecto y su posterior aprobación definitiva”[16].
Mais recentemente, em 2011, diante da proposta de lei do Estado de Alabama, que considerava crime qualquer tipo de ajuda a imigrantes irregulares residentes no território, o arcebispo de Mobile, Thomas J. Rodi, numa carta aos fieis católicos ressaltava os sérios riscos dessa lei, inclusive pela prática da pastoral católica, citando, por exemplo, a que absurdo chega a proposta do Estado: um padre católico – escreve o prelado – não poderá “batizar, confessar, administrar a extrema unção e pregar para imigrantes ou convidá-los à celebração eucarística”. Não cabe à Igreja – continuava o bispo – estabelecer quem pode entrar no país, mas, após o ingresso, “ela tem a obrigação moral, intrínseca na prática de sua fé, de se comportar como Cristo fez com todos”[17].
Na América Latina, também, a Pastoral junto aos migrantes tem trabalhado nesta ótica, junto a migrantes internos, estrangeiros, refugiados e latino-americanos residentes no exterior. No Documento final de Aparecida, da V Conferência do Episcopado Latino-americano e do Caribe, os bispos exigem a “denúncia profética dos atropelos que sofrem frequentemente os migrantes”, bem como “o esforço por incidir, justo aos organismos da sociedade civil, nos governos dos países, para conseguir uma política migratória que leve em consideração os direitos das pessoas em mobilidade”. Mas a ação estrutural e institucional juntos aos organismos políticos não pode relativizar a importância da ação “para acompanhar as vítimas e oferecer-lhes acolhida e capacitá-los a que possam viver de seu trabalho”, assim como a denúncia profética não pode ofuscar o anúncio de “uma cidadania universal na qual não haja distinção de pessoas”.[18]
Enfim, mediante a experiência espiritual, o protagonismo nas atividades eclesiais, a consciência dos próprios direitos e o testemunho solidário de correligionários, os migrantes recuperam aquela dignidade negada ou menosprezada pelos segmentos sociais xenófobos da sociedade de chegada.
4. A religiosidade como recurso simbólico para o diálogo e a integração na sociedade de acolhida
Um momento crucial na trajetória de um migrante é o momento da incorporação na sociedade de chegada. Esse processo de integração, na realidade, possui duas vertentes, que poderíamos chamar de “centrípeta” e “centrífuga”: a vertente centrípeta é a aproximação do migrante à realidade sócio-cultural do país de chegada; a vertente centrífuga é a ação dos autóctones de acolher e “criar espaço” para os recém-chegados. Em outros termos, num exitoso processo de integração há necessidade de mudanças tanto entre os migrantes quanto entre os autóctones.
O estágio da integração é um dos mais complexos no interior da jornada migratória. É o momento em que os sonhos, as expectativas – não raramente idílicas – esbarram com a complexidade, as dificuldades e os sofrimentos da realidade. É também o momento da negociação identitária, em que o migrante é chamado a reconfigurar sua cosmovisão. Neste contexto, a religiosidade representa um recurso simbólico para enfrentar o desafio da inserção na terra de chegada.
Esse assunto, na realidade, é um pouco controvertido. A literatura norte-americana, por exemplo, é bastante unânime em afirmar que nos EUA a religiosidade representa um caminho de encontro e integração: os migrantes se tornam americanos mediante a religião.[19] Os recém-chegados adquirem “respeitabilidade”[20] na medida em que assumem compromissos comunitários e religiosos. Deve-se levar em conta, neste caso, que os EUA são um país extremamente religioso, onde a fé em Deus gera antes admiração que desconfiança.[21]
Mas de que forma a religiosidade estaria favorecendo, no sentido amplo, o processo de integração e diálogo com a cultura do país de chegada? Em primeiro lugar, como já acenamos, o migrante ganha o respeito e a admiração da população autóctone. O “clandestino” e “invasor” se torna um respeitável membro da comunidade religiosa. Essa situação favorece o processo centrífugo, ou seja, a disponibilidade por parte da sociedade americana de “abrir espaço” para os migrantes.
Além disso, a comunidade religiosa, com frequência, torna-se uma ponte entre a realidade sócio-cultural do país de chegada e o migrante. Em outros termos, o recém-chegado é encaminhado ao encontro e à interiorização de elementos essenciais da cultura norte-americana a partir da vivência nas comunidades religiosas.
Há vários estudos, sobretudo relacionados com migrantes asiáticos, que revelam como as religiões são procuradas justamente com o objetivo de favorecer o encontro – sobretudo dos membros mais jovens – com a mentalidade norte-americana. Por exemplo, Carolyn Chen constatou, em sua pesquisa sobre taiwaneses confucionistas residentes nos EUA,[22] que muitas famílias tendem a se aproximar de igrejas evangélicas tradicionais e conservadoras dos EUA a fim de proteger as segundas gerações da suposta influência imoral da cultura americana, caracterizada, em sua avaliação, pela excessiva liberdade, pelo individualismo e pela falta de limites. No entanto, há também uma segunda importante motivação: a necessidade de promover o contato e a interiorização de novos paradigmas culturais e comportamentais ausentes na tradição confucionista. De forma específica, muitas famílias taiwanesas acreditam que para favorecer a mobilidade social no país norte-americano, os filhos precisam ser mais “aggressive and competitive”.
Outras pesquisas evidenciam como a religião se torna um recurso das segundas gerações para promover maior independência em relação aos pais e maior incorporação na sociedade de chegada. Fernadez Kelly[23], por exemplo, cita casos de jovens migrantes nos EUA que mudaram de religião buscando “to honor ancestral traditions while at the same time adjusting to mainstream American mores”. A continuidade com o passado familiar está no importante papel que a dimensão religiosa continua tendo em suas vidas, ao passo que a aproximação à cultura da terra de chegada é garantida pela conversão a denominações tipicamente norte-americanas.
Enfim, a comunidade religiosa oferece, ao mesmo tempo, valores tradicionais e incorporação na sociedade de chegada. As relações humanas primárias, de forma específica, além de espaços de familiaridades e conforto, permitem uma aproximação com o way of life americano. A socialização em grupos religiosos, nesse sentido, se torna um caminho privilegiado e gradativo de encontro e diálogo com a alteridade da nova cultura.
Essa abordagem norte-americana – substancialmente positiva em relação ao papel da religiosidade como recurso de integração – não é plenamente partilhada no caso europeu, sobretudo no que diz respeito ao Islã. Neste caso, a adesão religiosa, antes que favorecer a integração e acolhida, pode gerar preconceito e marginalização. Diferentemente dos EUA, na Europa é forte o medo de que a pluralização religiosa e as pretensões dos novos grupos religiosos possam colocar em risco a laicidade do Estado, uma laicidade alcançada após séculos de sofridos conflitos. Nessa perspectiva, o migrante mais aceito e tolerado é o migrante “menos estranho”: preferencialmente um cristão, um migrante que adira a grupos religiosos considerados mais abertos e transigentes[24], ou, finalmente, um migrante não muito “praticante” – que, em alguns casos, é preconceituosamente sinônimo de “fundamentalista”.
Apesar disso, há números estudos que mostram como na Europa também a religião possa ser um importante recurso para a integração dos migrantes. Em primeiro lugar, em alguns casos, o que gera “respeitabilidade” na Europa, antes que a adesão a um grupo religioso é a capacidade do migrante de priorizar as normas da cultura de chegada em detrimento – se for o caso – das próprias normas religiosas. Cabe citar, como exemplo, o caso de muçulmanos na Itália que, em nome de uma maior integração, modificaram profundamente um dos rituais que caracterizam a tradição islâmica: o sacrifício do carneiro, que os muçulmanos celebram em memória do sacrifício de Abraão. Conforme Lucà Trombetta[25], o abate de animais na Itália é regulamentado por rígidas normas higiênicas e sanitárias que proíbem, por exemplo, a execução da prática em lugares não adequados. Portanto, os fieis muçulmanos limitam-se, na Itália, a praticar o ritual distribuindo as carnes dos animais abatidos por profissionais em espaços apropriados, embora de acordo com as orientações islâmicas, renunciando a matar o carneiro e aspergir o sangue derramado nos presentes. Para os migrantes que já participaram da cerimônia tradicional essa alteração representa uma clara ruptura com o passado. No entanto, observa Lucà Trombetta, a celebração do ritual na terra de chegada e, simultaneamente, a aceitação das normas higiênicas e sanitárias da Itália mostram como a religião se reconfigurou para manter seus laços com a tradição do país de origem e, ao mesmo tempo, para dialogar e integrar-se na sociedade de acolhida. O ritual, em outros termos, acaba celebrando a dupla pertença: à terra de origem e à terra de chegada.
Portanto, mediante a reinterpretação ou acomodação da tradição religiosa à cultura do país de chegada os migrantes muçulmanos ganham “respectability” por parte dos autóctones e, ao mesmo tempo, incorporam traços normativos e culturais típicos do país de chegada. Ambos aspectos favorecem o processo integrativo.
Gostaríamos, por fim de destacar outro exemplo muito significativo, pois diz respeito não apenas a uma estratégia para ganhar confiança e consideração por parte da população local, mas de como a dimensão religiosa se torne um recurso simbólico em busca do encontro com o outro. Após o terremoto da cidade de L’Aquila, in Itália, grupos de muçulmanos, sobretudo marroquinos, organizaram-se a fim de doar sangue para as vítimas necessitadas. Esta doação de sangue, conforme Annamaria Fantauzzi[26], não é apenas uma estratégia para cativar os favores dos autóctones, mas representa uma ação simbólica de aproximação e integração com o país de chegada, quase como uma construção de uma fraternidade ou uma aliança de sangue, de uma adoção simbólica do outro. Nas palavras de um migrante marroquino: “noi siamo tutti fratelli sotto Dio e, con il sangue, io divento veramente tuo fratello, come in una nuova famiglia, la nostra, né la mia né la tua”.
A religião torna-se uma ferramenta simbólica para o encontro. O sangue doado gera uma comunidade imaginária de irmãos de sangue. A racionalidade religiosa, longe de criar barreiras, pode promover o diálogo e o encontro com a alteridade, bem como maior coesão social.
Reflexões finais: a imigração no Brasil e a questão religiosa
Este artigo não tem qualquer intenção de esgotar um tema tão complexo como o papel da religiosidade do migrante diante dos desafios dos deslocamentos. Não foi possível aprofundar temas importantes como a função da religiosidade na criação de espaços transnacionais, seu papel na preservação da cultura da terra de origem ou na geração de uma identidade reativa. Mesmo assim, destacamos como a religiosidade, com frequência, pode constituir um recurso simbólico que os migrantes utilizam racionalmente a fim de responder a desafios biográficos, em busca de proteção, sentido, dignidade e integração na sociedade de acolhida. Longe de ser uma fuga da realidade, a religiosidade muitas vezes representa um caminho de “enfrentamento simbólico” da mesma, um instrumento de resistência e de resiliência, uma fonte de humanização diante da xenofobia, da exploração trabalhista e da criminalização dos migrantes. Nesta ótica, em nossa opinião, é impensável analisar as dinâmicas migratórias contemporâneas sem levar em conta o fato religioso.
Estas afirmações constituem um grande desafio, sobretudo para o Brasil contemporâneo. Apesar dos intensos fluxos migratórios que caracterizaram sua história, o Brasil resta ainda muito para aprofundar de forma adequada a questão religiosa relacionada com a mobilidade humana. Desde meados do século XIX, quando ingressaram no país migrantes de diferentes continentes, a preocupação de igrejas e religiões direcionou-se, basicamente, ao acompanhamento pastoral dos migrantes, visando à preservação da fé, ao cuidado pastoral e, em diversas circunstâncias, à defesa da dignidade. Para os migrantes católicos o grande desafio era a inserção numa igreja local culturalmente diferente e ainda não suficientemente estruturada; já para os membros de outras igrejas e religiões o desafio era a sobrevivência num “país católico”. Após a separação entre Igreja e Estado, no final doséculo XIX, intensificou-se o pluralismo religioso e suas manifestações públicas.
Com o tempo, o Brasil foi marcado por intensos fluxos internos, principalmente do Nordeste para o Sudeste, o assim chamado êxodo rural. Nesta época, por vezes, a questão religiosa foi abordada e estudada no contexto da integração no mundo urbano: o que acontece com a religiosidade do migrante interno após a migração em grandes cidades da região sudeste? Qual seu papel no processo de integração? Mesmo assim, o principal foco da reflexão de grupos religiosos esteve relacionado com a defesa e promoção dos direitos dos migrantes, numa época de grande opressão, exploração e violência.
Desde meados dos anos 80 do século passado, a intensa saída de brasileiros para o exterior e, mais recentemente, o gradativo, mas significativo, aumento da imigração – principalmente de bolivianos, paraguaios, peruanos, portugueses, chineses e haitianos entre outros, – levantaram novamente a questão religiosa, não apenas como “resgate da dignidade dos migrantes” – dimensão que sempre foi objeto de cuidado por parte do catolicismo brasileiro e outras denominações religiosas – mas também da religiosidade do migrante enquanto recuso simbólico de interpretação biográfica e integração no país de chegada. Surgiram novos desafios, como o cuidado pastoral dos brasileiros no exterior, a integração nas comunidades religiosas de novos membros oriundos de outros países ou, também, o diálogo ecumênico e inter-religioso com membros de novas denominações religiosas.
Nesta perspectiva considera-se da maior importância, no Brasil contemporâneo, um aprofundamento da relação entre religião e mobilidade humana, não apenas com o intuito de “preservar a fé” dos migrantes, mas principalmente de compreender mais corretamente o papel da religiosidade nas dinâmicas migratórias e, a partir disso, colocar-se a serviço da caminhada do ser humano migrante.
* Mestre em Missiologia, consultor do Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH), professor do Instituto São Boaventura de Brasília, diretor da Revista REMHU. E-mail: robertoro66@bol.com.br.
[1] Entre elas, “Les catholiques et les migrations”, Migrations Société, v. 24, n. 139, 2012; “Dinamiche religiose e migrazione”, Studi emigrazione, Roma, ano XLVIII, n. 181, 2011; “Religioni, genere e generazioni in movimento. Uno sguardo europeo sull’Italia”, Mondi migranti, Milano, n. 2, 2010; “Migrazioni e teologia. Sviluppi recenti”, Studi emigrazione, Roma, ano XLVII, n. 178, 2010; “Migração e religião”, REMHU, Brasília, ano XV, n. 28, 2007; “The re-emergence of religion in international public discourse”, Journal of International Migration and Integration, v. 6, n. 2, 2005.
[2] Cf. PEW RESEARCH CENTER. Faith on the Move. The Religious Affiliation of International Migrants. Washington, 2012.
[3] Cf. LUCÀ TROMBETTA, Pino. Religioni e integrazione degli immigrati. Ricerche americane e italiane a confronto. Bologna: d.u.press, 2007.
[4] Cf. HAGAN, Jacqueline; EBAUGH, Helen Rose. Calling Upon the Sacred: Migrants’ Use of Religion in the Migration Process. In IMR, v. 37, n. 4, 2003, p. 1145-1162.
[5] Ibidem, p. 1151.
[6] AMBROSINI, Maurizio. Gli immigrati e la religione: fattore di integrazione o alterità irriducibile? InAMBROSINI, Maurizio. Un’altra globalizzazione. Le sfide delle migrazioni transnazionali. Bologna: Il Mulino, 2008.
[7] RIBEIRO, Lúcia. Religião vivida no processo migratório. 2005. Tradução em inglês em: REMHU, ano XV, n. 28, 2007, p. 71-86.
[8] Há relatos de brasileiros católicos residentes em Massachusetts que encontraram sérias dificuldades em se acostumar com as celebrações litúrgicas não apenas dos norte-americanos, mas também dos hispânicos e dos portugueses. As comunidades manifestaram o desejo de ter acesso a celebrações mais “brasileiro”. Essa e outras situações análogas levaram à formação em 1996, da Pastoral dos Brasileiros no Exterior – PBE – organismo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, encarregado de cuidar das comunidades brasileiras no exterior, inclusive enviando ministros brasileiros para as celebrações litúrgicas.
[9] AMBROSINI, op. cit.,
[10] HERVIEU-LÉGER, Danièle. Il pellegrino e il convertito. La religione in movimento. Milano: Il Mulino, 2003, p. 15.
[11] ALTHOFF, Andrea. Migration and the Transformation of Latino Religious Identities in the US. In Metro Chicago Immigration Workshop, Chicago: University of Chicago, 2007.
[12] RIBEIRO, Lúcia. Religião vivida no processo migratório. 2005. Tradução em inglês em: REMHU, ano XV, n. 28, 2007, p. 71-86.
[13] Cf. WARNER, R. Stephen. Religion and New (Post-1965) Immigrants: Some Principles Drawn from Field Research. In American Studies, v. 41, n. 2/3, 2000, p. 267-286.
[14] Na realidade, a identidade de qualquer ser humano é “em construção”, mas os desafios inerentes à jornada migratória tornam essa tarefa muito mais urgente e sofrida para os migrantes.
[15] MADURO, Otto. Religión y exclusión/marginación. Pentecostalismo globalizado entre los hispanos en Newark, Nueva Jersey. In Revista Cultura y Religión, v. 3, n. 1, p. 37-54, 2009.
[16] DURAND, Jorge. “Otra vez en primavera. Los inmigrantes salen a las calles”. In Migración y desarrollo, n. 9, 1/2007, p. 108-122.
[17] Cf. “Stati Uniti. La Chiesa contro la legge anti-immigrazione in Alabama”. http://www.radiovaticana.org/IT1/articolo.asp?c=509849
[18] CELAM. Documento de Aparecida, n. 414.
[19] Cf. WARNER, Stephen, op. cit.; HIRSCHMAN, Charles. The Role of religion in the Origins and adaptation of Immigrants Groups in the United States. In IMR, v. 38, n. 3 (Fall 2004), p. 1206-1233.
[20] Ibidem.
[21] BERGER, Peter; DAVIE, Grace; FOKAS, Effies. America religiosa, Europa Laica? Perché il secolarismo europeo è l’eccezione. Bologna: il Mulino, 2010
[22] Cf. CHEN, Carolyn. From Filial Piety to Religious Piety: The Immigrant Church Reconstructing Taiwanese Immigrant Families in the United States. In IMR, v. 40, n. 3, 2006, p. 573-602.
[23] FERNÁNDEZ-KELLY, Patricia. The Moral Universe of Fabian Garramon: Religion and the Divided Self among Second-Generation Immigrants in the U.S. The Center for Migration and Development – Working Paper Series # 06-03, Princeton University, 2006.
[24] Cf. SAI, Silvia. I Sikh, immigrati “buoni” e “integrati”? Una riflessione critica su migrazione, religione e integrazione degli indiani sikh a Reggio Emilia. In Religioni e sette nel mondo, v. 5, 2009, p. 129-140.
[25] LUCÀ TROMBETTA, Pino. Le religioni degli immigrati fra integrazione e esclusione sociale. In Religioni e sette nel mondo, v. 5, 2009, p. 15-43.
[26] FANTAUZZI, Annamaria. Fratelli di sangue? Logiche di alleanza e di parentela nelle donazioni di sangue della comunità marocchina di Torino. In Religioni e sette nel mondo, v. 5, 2009, p. 92-109.