Tráfico de Pessoas: breve histórico sobre pesquisas e dados

O Tráfico de Pessoas assombra não só por sua natureza desumana, mas revela também seu potencial como ação geradora em rede, que comporta dimensões cada vez maiores. Seja nos limites nacionais ou por caminhos internacionais, o tráfico vem se avolumando em número de rotas para circulação, vítimas de distintos lugares, movimentação financeira, etc.

 

Eduardo Gabriel[1]

O Tráfico de Pessoas assombra não só por sua natureza desumana, mas revela também seu potencial como ação geradora em rede, que comporta dimensões cada vez maiores. Seja nos limites nacionais ou por caminhos internacionais, o tráfico vem se avolumando em número de rotas para circulação, vítimas de distintos lugares, movimentação financeira, etc. Diante destas principais características iniciais, o primeiro dado que se pode reter é que o tráfico de pessoas, como aponta o jurista Damásio de Jesus, ocupa um lugar de destaque na ação criminal, ficando atrás somente do tráfico de drogas e do contrabando (Revista Consultor Jurídico, 25 de fevereiro de 2003). A tipificação central do tráfico de pessoas é a prevalência da “exploração sexual”, com o envolvimento de 79% dos casos, contra 18% da exploração laboral, segundo estimativas do relatório da agência UNODC de 2009.

Se a exploração sexual constitui a principal matriz para o tráfico de pessoas, a face desta exploração é feminina. Ou seja, é a mulher adulta o principal alvo deste crime. No Brasil, o estudo pioneiro que problematizou esta face feminina do tráfico foi a “Pesquisa sobre o tráfico de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial no Brasil” (PESTRAF), cujo relatório foi publicado em 2002. Esta pesquisa foi coordenada pelo Centro de Referências, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA), de Brasília.

Como geografia do tráfico no Brasil, a pesquisa apontou a existência de 241 rotas do tráfico nacional e internacional da exploração sexual de mulheres e adolescentes. As regiões Norte e Nordeste contêm 76 e 69 rotas, respectivamente. No Sudeste são 35 rotas, seguido do Centro-Oeste, com 33 rotas, e, por fim, o Sul com 28 rotas. Atrelado a esta distribuição de rotas, é preciso acrescentar a proporção de pobres das regiões, conforme apontado pela própria pesquisa: Norte 43,2% de pobres, Nordeste 45,8%, Sudeste 23,0%, Centro-Oeste 24,8% e Sul 20,1%. Portanto, as regiões com maiores rotas são as mesmas com os maiores índices na proporção de pobres. Diante deste cenário, qualquer esforço específico para o combate do tráfico de pessoas deve levar em consideração ações de dinâmicas mais amplas, como o combate à pobreza, ao mesmo tempo.

O rastro do tráfico se torna mais complexo à medida que se diversificam os tipos de redes. O relatório da PESTRAF aponta uma tipificação das redes, que podem ser: a) rede de entretenimento (shopping centers, bares, restaurantes, boates, etc); b) rede do mercado da moda (agências de modelos fotográficas); c) rede de agência de emprego (empregadas domésticas, baby-sitters, etc); d) rede de agências de casamento; e) rede de tele-sexo (anúncios no jornal, internet, etc); f) rede da indústria do turismo; g) redes de agenciamento para projetos de desenvolvimento e infra-estrutura (construção de rodovias, mineração, etc). A construção desta tipificação torna a compreensão das rotas mais inteligível, o que não se pode imaginar é que cada uma destas redes tenha seu seguimento de forma exclusiva. Em suma, estes diferentes tipos de rotas se cruzam na realidade, formando uma complexa malha de vitimização de seres humanos, e que tem como ponto de partida o sonho de uma pessoa em busca de melhores condições de vida, mas que termina com o esfacelamento deste sonho em condições ainda piores das que a pessoa saiu.

Na sequência desta pesquisa, outro importante estudo apresenta alguns dados que confirmam as bases deste cenário do tráfico para exploração sexual de mulheres. Trata-se da “Pesquisa Tri-nacional sobre o tráfico de mulheres do Brasil e da República Dominicana para o Suriname”, coordenada pela associação Sodireitos, de Belém-PA. O relatório da pesquisa publicado em 2008 mostra publicamente o forte esquema de tráfico no contexto mais amplo da América Latina. A especificidade de destino no Suriname está ligada, grosso modo, à atividade mineradora dos grandes garimpos no interior do país. Além disso, a exploração sexual se faz também nos principais clubes de prostituição das cidades, que acabam sendo registrados oficialmente como hotéis, o que traduz o consentimento do poder público do país, e, portanto, se torna o principal conivente com o tráfico. Para as dominicanas, ir para o Suriname pode representar uma ponte para a Europa. No caso das brasileiras, a proximidade geográfica é facilitada pela existência de vôos regulares entre Belém-PA e Paramaribo, capital do Suriname. Outro fator para a grande presença de brasileiras é a existência de um grande número de trabalhadores homens nos garimpos do Suriname.

Na Europa, o tráfico de pessoas pode ser visto com iguais características das já citadas nas pesquisas anteriores. O tráfico para a exploração sexual é a grande representação deste crime. O relatório da UNODC, “Tráfico de pessoas para a Europa com fins de exploração sexual”, publicado recentemente (junho/2010), mostra as principais faces desta dinâmica criminosa na Europa. Segundo este relatório, a distribuição das vítimas na Europa Ocidental tem a seguinte proporção: países dos Bálcãs 32%, países da ex-União Soviética 19%, Europa Central 7%, África 5%, América do Sul 13%, Ásia Oriental 3%, outros países 21%. Estes dados revelam novamente a lógica do sentido do tráfico em escala gradual: de regiões mais pobres para as mais ricas. Para a manutenção da exploração sexual de mulheres, a principal forma de coação é o uso da ameaça de violência. Outras formas de coação são: a violência em si, encarceramento das vítimas, dívidas, retenção do passaporte, ameaça contra os familiares das vítimas, amor enganado, ameaça na revelação da prática de prostituição e práticas de feitiçarias. Estas formas de coação revelam que a prática do tráfico de pessoas se mantém na oscilação entre o uso da força física e a pressão psicológica.

Na Espanha, a identificação das mulheres vítimas da exploração sexual passou das colombianas para as brasileiras e paraguaias. No ano de 2003 houve a exata inversão, pois no ano de 2000 as brasileiras e paraguaias eram de 15% e as colombianas 36%, em 2006 estes dados passaram a ser o de 10% de colombianas e 34% de brasileiras e paraguaias. A Europa, por simbolizar o sonho de uma vida melhor para centenas de migrantes de todas as partes, especialmente da América Latina, acaba se tornando uma importante rota para o tráfico de pessoas, que tem neste ideário da busca de melhores condições, um grande facilitador.

Outra forma de tráfico de pessoas é a exploração para o trabalho. Milhares de pessoas em todo o mundo são submetidas às condições forçadas de trabalho, o que pode ser observado como sendo algo análogo ao trabalho escravo. A maioria destes trabalhadores é de populações migrantes, dada as condições de vulnerabilidade diante da legalização nos países de destino, isto é, vivem ilegalmente, e, para sobreviverem, acabam se submetendo a drásticas formas laborais.

No Brasil, e especificamente na grande São Paulo, a comunidade de imigrantes bolivianos é a mais representativa deste drama do tráfico laboral. Eles estão inseridos nas oficinas de costura, mas como muitos estão indocumentados, acabam trabalhando sem qualquer proteção legal. A maioria já sai da Bolívia com um suposto “contrato” para uma oficina. O artigo de Renato Cymbalista e Iara Rolnik Xavier, “A comunidade boliviana em São Paulo: definindo padrões de territorialidade” (Caderno Metrópoles 17, 2007), apresenta uma avaliação pertinente das condições de trabalho dos imigrantes bolivianos em São Paulo. As oficinas em São Paulo foram controladas pelos coreanos até meados de 1990, e hoje controlam outros postos da cadeia produtiva do vestuário, cabendo aos bolivianos o controle das oficinas. A estrutura física destas oficinas é de grande precariedade – pouca ventilação, espaços pequenos, etc. O preço pago aos bolivianos pelas peças confeccionadas é extremamente baixo – entre R$ 0,15 a R$ 0,30 (centavos).

Esta situação laboral – precariedade do trabalho, trabalhadores ilegais, baixa remuneração, etc. – dos imigrantes bolivianos em São Paulo, teve repercussão na imprensa no final de 2004 e começo de 2005, o que gerou a instalação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara Municipal de São Paulo para investigar tais aspectos críticos envolvendo estes trabalhadores, que foram denunciados pela imprensa. Os resultados desta investigação política foram publicados em fevereiro de 2006 no “Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a exploração de trabalho análogo ao de escravo”.

Como já apresentado nos contextos das redes de tráfico de pessoas para a exploração sexual, a exploração do trabalho em condições análogas à de escravo reafirma o dado fundamental do deslocamento de pessoas de regiões de pobreza, neste caso em particular da Bolívia, para novos contextos em busca de melhores condições de vida.

Outro exemplo de tráfico de pessoas para a exploração do trabalho análogo à de trabalho escravo pode ser observado no deslocamento interno de trabalhadores sazonais para a colheita da cana. O principal sentido deste fluxo tem como origem os trabalhadores da região Nordeste do Brasil que chegam anualmente ao Sudeste para trabalharem no corte da cana no período da safra.

Ainda no contexto da América Latina, se transportamos nossas observações para o México, temos diante dos olhos uma realidade onde o tráfico de pessoas dá seus sinais mais pungentes. O relato mais detalhado sobre o tráfico de pessoas e a situação dos migrantes no México que se pode ter acesso é o documento publicado pela Anistia Internacional em abril de 2010: “Víctimas invisibles: migrantes em movimiento em México”. O principal dado deste relatório é outro aspecto do tráfico de pessoas, que é a exploração do imigrante que estão de passagem pelo México rumo aos EUA. Esta exploração é feita pelos narcotraficantes, que capturam os imigrantes em condições ilegais para trabalharem forçados no transporte das drogas. Desprovidos de todo e qualquer aparato legal e de apoio institucional do poder público, estes migrantes traficados vivem no limite da própria sorte: sua própria vida! Muitos são assassinados, caso não aceitem as imposições dos narcotraficantes. A chacina dos 72 imigrantes noticiada recentemente pela grande imprensa internacional representa o resultado desta ação exclusiva dos narcotraficantes como tráfico de pessoas para a exploração da disseminação de drogas.

Em suma, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, trabalho análogo à de escravo, transporte de drogas, comércio de órgãos, etc., é sempre uma forma desumana que se utiliza de meios para coagir os sujeitos que, vivendo em um contexto desprovido de condições dignas de vida – pobreza, desemprego, fome, falta de moradia, etc., colocam-se a caminho para uma sobrevivência futura com melhores opções e recursos – econômicos, políticos, sociais, culturais. As pessoas vítimas de tráfico acabam, como apontado pelos dados já enunciados, tendo este sonho de vida tolhido pelos agenciadores do crime. Esta é a realidade complexa do tráfico de pessoas que requer esforços contínuos para combatê-lo.



[1] Doutor em Sociologia pela USP, colaborador voluntário do IMDH.